2004

CONTOS MÍNIMOS

2004

 

 

 

Ano Novo

(11/01/2004)

 

 

Era engraçado que nunca tivesse ido. Morava tão perto, não mais do que três ou quatro quarteirões do Posto Seis, ali atrás, na Antonio Parreiras. Era só descer algumas quadras e pronto – estaria na praia. Por que nunca fora? Não sabia. E por que agora resolvera, pela primeira vez, ir assistir à passagem de ano na praia, em meio aos fogos e à multidão de branco? Tampouco sabia. Mas ia. Estava decidido.

Era um homem de mais de cinqüenta anos, corpulento, sempre sorridente porém quieto,de poucas palavras. Morava sozinho, não tinha parentes no Rio. Era de poucos amigos, mas não se sentia solitário. Gostava de sair de manhã, caminhar até a padaria, bater papo com o sapateiro da esquina. Aposentado, tinha um passatempo: fazia bolsas de macramé. Amarrava os cordões no espaldar de uma cadeira e, sentado, ficava horas trançando as linhas, os dedos ágeis dando volteios e fazendo nós. Aos domingos, botava para vender numa barraca da Feira Hippie. Isso ajudava no orçamento.

Olhou-se no espelho antes de sair. Bermuda azul, camiseta branca, tênis branco sem cadarço. Estava pronto. Os foguetes já pipocavam em torno, principalmente na ladeira que ia dar no morro. Estava na hora. Alguém lhe dissera que não devia ir muito cedo, que o bom era sair depois das onze para descer no meio do povo. E de fato ficou espantado, assim que chegou à esquina da Rua Francisco Sá, ao ver o rio de gente. Um rio branco, que descia ritmado em direção à praia, um rio compacto, doce, que escorria sem atropelos, sem sustos. Todos pareciam felizes, todos riam naquele rio humano. Era espantoso. Sorrindo também, o homem foi junto.

Foi e foi e foi. À medida que caminhava, sentia-se cada vez mais parte da multidão, atado a ela. Cercado, acolhido, abraçado mesmo. A cada esquina, espiava para um lado e para outro e via, nas transversais, rios iguais, que também desciam rumo à praia. E quando afinal desaguou na avenida larga que ia dar na areia, o homem de repente se lembrou do que lera no ano anterior, alguém dizendo que o mais bonito do Ano Novo em Copacabana não eram os fogos e sim aquele povo de branco, a mágica de uma noite em que se dava um hiato na violência, um gigantesco armistício, a quase total suspensão das hostilidades. Nessa trégua, quase três milhões de pessoas se reuniam praticamente sem incidentes. Isso, sim, era único. Fora isso que decidira ir ver, não os fogos, não a música, não a festa. Agora entendia, agora se lembrava.

E, deixando-se levar, escorreu com o rio até a beira do calçadão, cujo desenho em ondas estava encoberto pela multidão compacta. Erguendo o rosto, observou a beleza da curva, as luzes da orla, o famoso colar. Viu que suas contas se espichavam num desenho distorcido, borrado. E só então, quando já lhe pingavam docemente no rosto as primeiras gotas de chuva, compreendeu que tinha os olhos cheios d’água.

 

Manifesto

(18/1/2004)

 

Eu já estava sentada à mesa do restaurante quando ele entrou. Entrou e, lançando em torno um olhar soberbo e firme, sentou-se justamente na mesa colada à minha. Como o restaurante estava ainda com várias mesas vagas, achei curiosa a proximidade, mas logo pensei que aquele homem, de ar tão decidido, devia ser um desses fregueses antigos e sistemáticos, que vão sempre aos mesmos restaurantes e se sentam nos mesmos lugares. Era alto, de cabeleira grisalha e vasta como a de um poeta, com um corpo ainda enxuto e a pele curtida de quem tem cinqüenta anos de praia. Achei-o simpático, um tipo bem carioca. E, assim que o garçom se aproximou, preparei-me para ouvir o que ele pediria, por pura curiosidade.

Mas a primeira coisa que fez foi perguntar, com ar insolente:

– Cadê o saleiro?

O garçom ia dizer alguma coisa, mas ele não deixou:

– Fico uma semana sem vir aqui e vocês me desaparecem com o saleiro! Não é possível que até aqui vá pegar essa mania pavorosa de sal em saquinho…

O garçom tartamudeou alguma coisa sobre saúde pública, coisa da Prefeitura, sei lá, mas o homem não quis nem ouvir.

– Mas não é possível! Primeiro foi a mania da manteiga nas malditas caixinhas de plástico, com a tampa difícil de arrancar. Depois o açúcar em saquinho, depois… Ah, não, mas o sal, não! E logo aqui, no meu restaurante de tantos anos? O sal é demais. Você abre o raio do saquinho e cai uma borra de sal na sua batata, e numa só! Não é mais aquela coisa maravilhosa dos furinhos do saleiro, que espalham as partículas de forma delicada e perfeita sobre a comida! Dane-se a higiene! Quem será que inventou essa bobagem?

O garçom ria. Em torno, as pessoas olhavam, mas pareciam concordar com os olhos. O homem percebeu e se empolgou. Começou a discursar em voz alta. Falou mal da pasteurização do mundo, da padronização, da globalização, denunciou as tentativas da União Européia de acabar com o queijo Brie e a galinha-de-cabidela por não estarem dentro dos padrões higiênicos europeus. E acabou concluindo que os verdadeiros culpados de tudo eram os americanos. Disse que eles exportaram para o mundo inteiro o excessivo culto ao corpo, a mania de fazer plásticas, a histeria antitabagista e – pior de tudo – a mania da magreza.

– Eles são neuróticos e exportam loucura! Pena que para nós não tenham exportado uma das poucas coisas que têm de bom: o respeito às leis! – bradou. Aplausos gerais.

E o homem, recebendo da mão do garçom seu primeiro chope, ergueu a tulipa como se antecipasse os vivas que viriam e encerrou em tom triunfal:

– E quero de volta o Rei Momo gordo!!

O restaurante veio abaixo.

 

 

Chamando o sol

(25/1/2004)

Nunca tinha visto um janeiro tão chuvoso. Era uma dessas pessoas que precisam de sol para viver. Nascida a poucos passos do mar, não podia passar muito tempo sem pisar na areia, sem sentir a carícia das ondas nos tornozelos, nas pernas, no corpo todo. Suas narinas ansiavam pelo cheiro do verão, aquele aroma indefinido que emana das pedras quentes, das amendoeiras, da vegetação rasteira que cresce na areia com suas flores roxas. Tudo isso misturado a cheiro de suor, óleo de bronzear, biscoito Globo.

Naquela madrugada tivera um sonho, um sonho feito não de enredo mas apenas de sensações, das quais acordara impregnada. Era numa praia deserta, um lugar onde nunca estivera antes, e ela se deitara de bruços na areia. Ali adormecera, mas, como só acontece nos sonhos, continuara perfeitamente consciente de tudo o que se passava à sua volta. E fora assim – a um só tempo adormecida e desperta – que sentira a aproximação da menina. Mesmo de bruços, com o rosto enterrado entre os braços e os olhos fechados, podia ver-lhe o rosto e logo soube que era ela mesma, ainda criança. Mas não achou nada demais. Apenas esperou, imóvel, para ver o que a menina faria. Andava à sua volta, espiando, e sorria um sorriso de encantamento, logo conspurcado por um ar travesso. Na certa ia fazer alguma brincadeira. Acertou, era isso mesmo. A menina que era ela própria se aproximou e, tomando na mão um punhado de areia, deixou cair bem no meio das costas da mulher que dormia. Mas a mulher não se importou. Ao contrário, teve naquele contato uma delícia, a areia morna e seca contra a pele de suas costas foi uma sensação de verão, de sol, uma alegria em grão que a fez pensar no arroz jogado sobre os noivos.

Acordou do sonho decidida a ir à praia de qualquer jeito. Chegou à janela e suspirou. A chuva fina continuava caindo, a paisagem monocromática, de um cinza esbranquiçado, parecendo querer desafiá-la. Mas não desanimou. Foi assim mesmo.

Pisou na areia molhada com um estremecimento, olhando as ilhas no horizonte, como se envoltasem paina. Estavaquase frio. Esfregou os braços e continuou caminhando areia adentro, até a beira do mar. Sentiu na ponta dos pés a carícia da água, de uma tepidez surpreendente. Depois voltou-se para olhar sua cidade, os morros despontando em meio às nuvens, lá atrás, por cima dos prédios. Tudo cinza. Sentiu tamanha nostalgia do sol que de repente as sensações do sonho lhe voltaram, o contato com a areia quente, a menina e seu sorriso. E lembrou-se de quando era criança e, nos dias de chuva, desenhava um sol no quintal para fazer o tempo abrir.

Nem precisava alisar a areia. A chuva já o fizera. Bastava desenhar. Pegou o chinelo e traçou no chão o grande círculo, em seguida cada um dos raios, bem compridos, o maior que pudesse, pois era assim que devia ser. E por último, entrando no círculo e pisando com cuidado para não estragar o desenho, pintou os dois olhos e a boca do sol sorridente.

E no dia seguinte, ao acordar, antes mesmo de abrir os olhos já teve certeza. O sol tinha voltado a brilhar.

 

Como nós

(1/2/2004)

A mulher atravessou o foyer antigo, de paredes redondas, com o envelope nas mãos. Dentro dele havia uma caixa, e dentro da caixa as jóias de sua avó, que acabara de resgatar do cofre do banco. A mulher desceu os três degraus de granito escuro que iam dar na calçada e olhou para os lados. Precisava tomar um táxi, talvez fosse perigoso andar com aquela caixa pelo Centro da cidade. Fez sinal para um que se aproximava.

Durante o trajeto para casa, teve ímpetos de abrir o envelope e examinar a caixa, mas se conteve. Precisava fazer isto como se fora um ritual, em solidão e silêncio. Tinha das jóias de sua avó uma lembrança vívida, múltipla, colorida. Não sabia se correspondia à realidade, mas era assim que sua memória decretara. Lembrava-se de quando ela e o irmão pediam à avó para manusear as pulseiras, os colares, anéis. A ela, menina, aquelas jóias pareciam um verdadeiro tesouro, principalmente por causa das pedras coloridas. Hoje, adulta, sabia bem que pedras coloridas em geral são semipreciosas e portanto de menor valor, mas quando era criança essa variação de cor é que mais a fascinava.

Quando chegou em casa, sentou-se no chão da sala, junto à mesinha de centro e, com um suspiro profundo, tirou a caixa do envelope. Era uma caixa de laca escura, com um fecho de encaixe, que se abriu com um estalo. E dentro, sobre o forro de um vermelho aveludado, surgiram várias outras caixas, em tamanhos e cores diferentes, além de pequenos volumes de papel de seda, tudo muito bem arrumado de forma a que as jóias não ficassem soltas, batendo-se para lá e para cá. Fazendo espaço na mesa de centro, a mulher começou a abrir as caixinhas e os embrulhos de papel.

Reconheceu quase todas as jóias. A aliança de brilhantes, o anel de água-marinha com o engaste de ouro, meio bruto, sustentando a pedra enorme (embora lhe parecesse menor do que a lembrança que guardava), a pulseira de ouro trançada como pele de cobra, os brincos com gotinhas de rubi, o broche de pedras semipreciosas em várias cores, formando um buquê de flores. Ah, e as pérolas. O colar de três voltas, o anel, o par de brincos. Pegou nestes últimos e, depositando-os na palma da mão, examinou-os. Mas logo viu que havia algo errado: uma das pérolas estava menor que a outra, um tanto fosca, já sem o brilho liso e nacarado que faz o encanto das pérolas.

A mulher ergueu-se com o brinco na mão e foi até o canto do sofá, acendendo o abajur. Era pena. A pérola estava murcha, a superfície se tornara enrugada e sem vida. Lembrou-se então de uma reportagem a que assistira na televisão sobre os cuidados que é preciso tomar com as pérolas. Ao contrário das outras gemas preciosas, capazes de atravessar séculos intactas, as pérolas são suscetíveis à ação do tempo, podem ser arranhadas, perder o brilho, murchar.

Talvez por isso sejam tão especiais, pensou a mulher. Quase humanas. Porque há na beleza das pérolas uma centelha do efêmero. Elas são como nós. As pérolas morrem.

 

Coração

(8/2/2004)

 

Estavam sentados em várias mesas, era um grupo grande. A quadra naquele dia se enchera desde cedo – o carnaval se aproximava. A mulher estava feliz. Essa era a época do ano de que mais gostava. Verão, samba, Rio, não queria mais nada. Observou o teto em arco, de onde pendiam milhares de tiras de papel crepom em duas cores, as cores da escola, e enquanto fazia isso o puxador começou a cantar o samba, mas ainda sem bateria, num andamento lento, cadenciado, o povo cantando junto, uma beleza. A mulher sorriu.

Não queria mais nada.

Mas, sim, queria. A verdade é que queria alguma coisa, algo que faltava e latejava lá no fundo, pedindo. Ou talvez fosse seu coração, batendo com força – por quê? Tomou mais um gole de cerveja, ajeitou-se na cadeira. Observou o brilho sobre os tampos das mesas de metal, a iluminação da quadra incidindo sobre os pequenos lagos formados pelo suor das bebidas. Tudo cintilava, tudo pulsava. Tudo. Seu coração tinha vontade própria, sempre fora assim. Eram amigos, mais nada, não deviam ser mais que amigos. Mas e aquele sorriso? E aquele olhar? A mulher virou o rosto, cantarolou o samba baixinho, tentou pensar em outra coisa.

Mas aí a bateria entrou. E quando os surdos bateram, ela estremeceu. No samba, quando bate o surdo, é como se batesse um coração. O sangue pulsa, dilatam-se as veias, a temperatura sobe, tudo se incendeia. O grande corpo da escola desperta, ganha vida, e cada coração de que ela é feita bate junto com esse coração maior, no mesmo compasso.

Quando é assim, é difícil manter o controle.

O olhar da mulher quase escapava e ela tentando segurar. Ele estava ali, tão perto, ao alcance de um braço, sentado na mesa ao lado. Mas ela não queria, não devia, eram só amigos, seriam só amigos. E os surdos batendo, e o coração batendo, e tudo pulsando num ritmo que se acelerava cada vez mais.

E de repente a luz se apagou.

Um susto, gritos, um princípio de pânico. A voz do puxador desapareceu – o que teria acontecido? Falta de energia na quadra, na rua, no bairro, na cidade?

Medo.

Há sempre uma centelha de medo no ar, à espreita, como se a qualquer momento se fosse acender um rastilho de pólvora. Mas, mesmo no escuro, a bateria segurou o ritmo – e o povo continuou cantando o samba da escola, agora ainda mais alto, em perfeito uníssono, sem atravessar. E o cantar foi crescendo, ganhando corpo, tudo pulsando mais do que nunca, sem freio.

E quase sem querer, por baixo da mesa, eles se deram as mãos.

 

Manhã de Carnaval

(15/2/2004)

 

Desceu a avenida com a camisa vermelha esvoaçando, um sorriso aberto. A brisa marinha varava a rua de um lado a outro, gostosa, fresca. Nem parecia verão e no entanto era manhã de carnaval.

O homem sorriu, satisfeito. Passava um pouco das nove e ele já podia ouvir, ao longe, o rumor do Cordão do Bola Preta. Pelas calçadas, espalhavam-se pessoas fantasiadas, misturando-se aos transeuntes, trabalhadores tardios. A beleza dos carnavais antigos parecia estar de volta, de repente. Era sempre assim, em dia de cordão. O homem tinha a sensação de reviver carnavais que jamais vivera. Fechava os olhos e era como se estivesse vendo o Hotel Avenida, os corsos, os bondes e sua alegre cabeleira de serpentinas, os foliões pendurados nos estribos atirando confete em quem passava.

Apertou o passo, ansioso para chegar logo, se misturar na multidão. Passou diante da parede espelhada de um banco e viu sua própria figura, como uma bandeira rubra. Não, não se vestira de preto e branco, para homenagear o Bola. Tampouco pusera as cores da escola do coração. Por algum motivo, decidira usar vermelho.

Comprou uma lata de cerveja num camelô e seguiu em frente, sentindo em torno dos dedos o gelado do metal, gelado que lhe descia pela garganta em grandes goles.

Quando chegou à Cinelândia, a massa de gente já estava compacta. Ali, sim, fazia calor. Ou porque o sol fosse esquentando, ou porque os corpos se incendiassem, o fato é que naquele ponto o ar estava morno e úmido, carregado de eletricidade. O homem se misturou ao povo e saiu cantando as marchinhas, os braços abertos, a camisa vermelha de algodão indiano já começando a colar no corpo. Sentia crescer dentro de si uma sede de prazer e loucura, um rumor que o carnaval talvez justificasse, mas que no fundo lhe parecia novo, inexplicável.

De repente, do meio da multidão surgiu uma mulher. Olhou para ele com olhos delineados de preto, olhos que brilhavam num rosto suado, sob uma testa onde faiscavam moedas de ouro falso. Sorriu para ele e se aproximou, balançando a saia feita de tiras de pano de todas as cores – todas. Antes que o homem pudesse fazer qualquer gesto, a mulher tirou do cós da saia um lenço preto e amarrou-o em torno da cintura dele.

Ele ainda viu a cigana se afastar em meio a um rodamoinho de cores, antes de baixar os olhos e olhar para si próprio. Estava zonzo. Com a tira em torno da cintura, agora vestia vermelho e preto. Piscou os olhos, a cabeça rodando. As cores do seu time. As cores do povo das ruas, daqueles que andam soltos pelas encruzilhadas, mais do que nunca durante o carnaval. E o homem atirou a cabeça para trás de repente, numa gargalhada estrondosa, que por um instante suplantou o som de vozes, sopros, batuques, uma gargalhada que arrepiou e estremeceu os foliões que estavam por ali. Mas o homem já não via nada. Com um sorriso desvairado, saiu zoando pela avenida.

 

O Carnaval acabou

(29/2/2004)

 

O carnaval acabou.

Quando foi mesmo que essa frase foi dita pela primeira vez? Talvez em 1900 ou 1901, por algum folião saudoso, inconformado com o fim do Zé Pereira, que já não saía às ruas com seu batuque infernal. Ou talvez antes, não sei.

Sempre houve alguém que proclamasse o fim do carnaval, sua descaracterização, o desaparecimento das tradições. Assim como sempre houve quem proclamasse o fim do samba, a decadência do desfile das escolas. Nos anos 70, com o reinado da Beija-Flor, muito se falou da desvirtuação do espetáculo e no entanto os anos 80 nos trouxeram pelo menos três dos maiores desfiles de todos os tempos: Bum-bum paticumbum prugurundum, do Império Serrano, em1982, aKizomba da Vila, em 1988, e os Ratos e Urubus do Joãosinho, no ano seguinte – e olhem que estes dois últimos já foram em plena era do Sambódromo, cuja construção, com arquibancadas altas e afastadas demais, provocou uma enxurrada de comentários decretando que o fim se aproximava.

E o carnaval de rua? Este também, coitado, já teve a morte decretada muitas vezes. Não é tão bom quanto o da Bahia, dizem uns. Tem cada vez mais violência, dizem outros. Mas por onde anda essa gente? O que será que essas pessoas que reclamam fizeram no carnaval? Será que foram ao Suvaco, ao Nem Muda Nem Sai de Cima, será que se acabaram no Largo da Prainha com os Escravos da Mauá? Por acaso foram aos ensaios abertos e democráticos no Sambódromo ou se apertaram no Carioca da Gema para relembrar os sambas do passado? Será que riram com os galhardetes do Simpatia (“Nem Dona Mariza assiste ao espetáculo do crescimento”) e se espremeram diante dos balcões da Casa Turuna, que recebeu numa só manhã mais de mil foliões?

Talvez aqueles que reclamam tenham chegado às lágrimas ao ouvir de novo “Aquarela brasileira” e lamentado – isto, sim! – que os sambas tenham piorado tanto. Ou talvez tenham visto, como eu, um bando de pivetes deitados no asfalto, braços e pernas abertos, como crucificados, sendo revistados por PMs de arma em punho,em plena Bandade Ipanema.

Mas querem saber de uma coisa? Nesta cidade misteriosa e mágica, o horror e a delícia se misturam, deixam um gosto de beijo e sangue na ponta da língua. É o carnaval no fogo, a festa de uma cidade excitante demais.

O carnaval acabou, sim. Mas acabou ontem – ou mesmo hoje de manhã – no Desfile das Campeãs. E embora eu esteja escrevendo esta crônica com uma semana de antecedência, garanto aqui, sem medo de errar, que foi maravilhoso, talvez o melhor dos últimos tempos.

E que ano que vem tem mais.

 

  O caminho das pedras

(7/3/2004)

Era um rapaz quieto, de poucos amigos. Gostava de pescar, mas sempre sozinho. Sonhador, também era. Acalentava sonhos elaborados, que sabia quase impossíveis. Sonhos de um dia ser um grande artista, um pintor, talvez, ou um músico. Quem sabe um maestro. Nada fazia para concretizar tais sonhos, mas tampouco sofria. Talvez se convencesse de que sonhar é melhor do que viver.

Talvez, pela mesma razão, gostasse tanto de pescar. Alguém já disse que pescar é um esporte que consiste de uma vara, com um peixe numa ponta e um idiota na outra. Mas o rapaz achava isso uma injustiça. A pescaria, principalmente se solitária, é um momento em que o pescador se vê propenso às mais profundas reflexões. É um ato de inteligência.

E foi pensando assim que, naquele fim de tarde, pegou seus apetrechos – a maleta de duas cores, cheia de faquinhas, chumbadas, anzóis, e mais a vara de pesca – e tomou o caminho do mirante, beirando os costões de pedra. Caminhou pela amurada estreita, de pedras sobrepostas, vendo o brilho do mar lá embaixo, de um verde escuro, denso, tão diverso do verde aguado do capinzal que se estendia pela encosta. O sol de verão já ia baixo no horizonte, na certa uma bola vermelha, mas dali de onde estava não podia vê-lo, as montanhas impediam. Via apenas o avermelhado do céu no ponto em que este se juntava ao mar.

Queria dessa vez ir pescar num lugar novo e o que tinha em mente era uma ponta de pedra que ficava depois da Gruta da Imprensa, bem na curva. Era um recanto pouco conhecido, de acesso difícil, mas ouvira falar que por ali passavam umas correntes ricasem cardumes. Começoua descer a encosta no ponto indicado, pisando devagar, os pés tocando o chão lateralmente, para não escorregar. Não era um caminho fácil. Mas assim é que era bom.

O caminho das pedras.

Pisando nelas, alcançaria o costão, que certamente ainda guardava o calor de um dia inteiro de sol. Sempre gostara das pedras, de suas irregularidades, de sua aspereza. Era preciso moldar o pé, adaptar-se a elas a fim de vencê-las. Elas eram sempre mais fortes, mais resistentes. Silentes. Eternas.

A educação pela pedra, dissera o poeta.

Mas ele, o pescador, gostava delas por isso mesmo. Aceitava o desafio de vencer seus obstáculos, de buscar as trilhas mais difíceis, os caminhos mais tortuosos.

Chegou afinal lá embaixo. Por um instante, de pé na pedra, sozinho diante do mar, ficou parado, pensando. Por que então tinha medo de tentar vencer os obstáculos da vida real? Por que tamanha falta de ambição? E por que vivia há tanto tempo fingindo que não era importante ir atrás de seu sonho, por mais impossível que parecesse?

Sabia bem a resposta. É que tinha medo de perder.
 

 Colombina tardia

(14/3/2004)

 

Era como você estava, de colombina. Colombina tardia, o carnaval acabado, mas foi assim que você me surgiu. Com aquela colombina de um ombro só, o busto apertado por pences, a cintura justa que se abria de repente numa saia muito ampla. Uma colombina vermelha e branca, em que os vermelhos da saia eram tiras soltas, em ponta, terminando em pompons.

Há anos não pensava nela, que conheci primeiro numa fotografia. Há anos, também, não pensavaem pompons. Masagora lembro de como fazê-los, foi você quem me ensinou. Lembro de suas mãos ágeis segurando a tesoura proibida, aquela que as crianças não podiam tocar para que não se cegasse – a tesoura de costura. Lembro de você com ela nas mãos, cortando o pedaço de papelão depois de marcá-lo com um copo. A roda recebia então um novo corte, interno, também em círculo, e o que restava era um anel de papelão, no qual devíamos enrolar a lã, enrolar e enrolar e enrolar. Quando tínhamos pronto aquele novelo bem apertado, você o tomava de nossas mãos e fazia alguma coisa com a tesoura, alguma coisa que nunca conseguíamos discernir direito. Eram cortes rápidos, nas pontas da lã, e de repente, num passe de mágica, lá estava o pompom, pronto.

Terá sido você quem fez os pompons da colombina?

Há anos não a via em sonhos, aquela fantasia, já nem sabia que um dia existira, sua saia rodada, o corpete de um ombro só, o vermelho e o branco, as anáguas. Por onde estariam, em que misterioso baú se tinham trancado sem que eu me desse conta? E por que você me surgiu vestida assim, no meio da noite? O rosto pintado, os olhos com traços, o batom vivo. O cabelo arrumado em ondas largas, a pinta num canto da boca. As pernas bem-feitas, saindo de sob a saia, os pés calçadosem sapatilhas. Seriamvermelhas, também, como os pompons?

Não sei. Mas sei, sim, que aquela colombina me pertenceu. Um dia você, de mãos sempre hábeis, tirou-a da caixa e anunciou que seria minha fantasia naquele carnaval. Eu não gostei. Queria alguma coisa nova, alguma coisa só minha, mas você insistiu. E quando me olhei no espelho, na primeira prova, o que vi? A colombina vermelha e branca, a colombina de um ombro só, tinha murchado em torno do meu corpo de menina. O corpete perdera as pences, já não havia seios que as justificassem. A saia perdera a roda e sobrara pouco espaço para as tiras vermelhas, que escorriam juntas, os pompons quase se tocando. Faltava o recheio que eu vira na fotografia, de um corpo de mulher. E eu chorei de raiva e inveja de você.

Voltei a chorar, hoje, ao acordar, revendo em pensamento a colombina tardia, costurada com esse tecido etéreo e impalpável, mistério tão próximo da morte, que é o tecido dos sonhos.

 

Na feira

(21/3/2004)

 

A mulher respirou fundo, sentindo o cheiro das verduras. Não é a toa que costumamos chamar de “cheiro-verde” as salsas e as cebolinhas, pensou. Seus odores, assim como o do coentro, são tão ativos que é impossível passar por uma barraca de verdura sem respirar fundo. Sorriu. Gostava das feiras. Apesar da sujeira e da confusão, gostava. Apesar também da própria timidez, que a fazia encolher-se toda quando algum feirante mais atrevido se dirigia a ela com excessiva desenvoltura. Andou mais um pouco, parou à frente de uma barraca de frutas. Ficou olhando as maçãs e as mangas, mais vermelhas do que nunca. Os caquis. Os figos. Os mamões. As frutas-de-conde, que na terra de sua mãe eram chamadas pinhas.

Outro dia, lembrou-se, lera sobre um movimento para mudar uma feira de lugar. Sabia o que era morar em rua de feira e ainda se lembrava do quanto estranhara ao se mudar para lá. As vozes, ainda de madrugada, o barulho das caixas sendo empilhadas. Ficara noites e noites sem dormir. Mas depois se acostumara. Preferia que as feiras não mudassem nunca de lugar. Um dia fizera uma viagem à Alemanha e ao chegar a uma cidadezinha do interior, no noroeste do país, dera com uma feira armada na praça principal. O guia dissera casualmente que aquela feira se realizava ali, naquela praça, havia 600 anos. A mulher ficara espantada. A feira era mais velha do que o seu país.

Continuou caminhando. Adiante, passou por uma barraca cheia de ervas, plantas, especiarias, com sacos de alho e pimentas coloridas em pratinhos de papelão. Em meio àquela miscelânia enxergou uns coquinhos castanhos, que não reconheceu. Chegou mais perto e pegou um deles, examinando-o com mais atenção. E de repente lhe veio à mente a memória de um gosto. Um gosto que estava ligado àquele aroma, um gosto de férias de verão, um sabor de infância. O gosto de uns coquinhos que eram vendidos enfiados, em forma de colar, na estação de trem, quando ela, menina, ia visitar a tia-avó. Era um gosto muito antigo, que agora lhe voltava à memória, como um jato. E junto com ele muitos outros, todos remotos. Gosto de pão com açúcar e manteiga no lanche da escola; gosto de pitanga, serigüela e jamelão, colhidos no sítio de manhãzinha, antes que o sol esquentasse; gosto de doce de jenipapo, moído com açúcar na máquina (havia máquina de moer naquele tempo, de metal prateado, que se prendia com uma rosca na beirada da pia); gosto do arroz cor-de-rosa  que seu avô fazia, refogado e cozido não só com alho e sal, mas também com tomate.

E, sorrindo, ela se lembrou da frase de Nelson Rodrigues, tão deliciosa quanto verdadeira:

O homem só gosta daquilo que comeu na infância.

 

Terra molhada

(28/3/2004)

 

Quando a amiga deixou-a na porta de casa, sentiu que saltava do carro flanando. Desceu os três degraus da entrada e atravessou o pequeno pátio. Ouviu o estalo da tranca eletrônica se abrindo, empurrou a porta de vidro e, virando-se para trás, deu adeus para a amiga, que ainda esperava, sorrindo ao volante. Deu boa-noite ao porteiro e apertou o botão do elevador. Mas fazia tudo ainda com a sensação de estar a poucos centímetros do chão, como aqueles trens japoneses. Sim, flanava. Era quase como se sua alma estivesse a ponto de sair do corpo e precisasse urgentemente de um lastro qualquer para manter-se no chão.

O elevador chegou. A mulher tomou um susto quando se olhou no espelho, que havia ao fundo. Caiu na risada, levando a mão à boca. Estava transtornada. O que é isso, meu Deus? O que está acontecendo?

Passou a mão pelo pescoço e deglutiu, a garganta seca. Virou-se para não ver mais a própria imagem e olhou o mostrador acima da porta pantográfica, o ponteiro antigo caminhando lentamente da esquerda para a direita, rumo ao quinto andar. Chegaria em casa e tomaria um banho morno, um leite morno, qualquer coisa tépida, insípida e inodora que a fizesse acalmar-se. Só queria fechar os olhos e dormir, não pensar mais. O que é isso, meu Deus? – repetiu baixinho. Por que o encontro com aquele homem a deixara tão perturbada, se mal se conheciam, se mal tinham conversado? Fora apenas um cumprimento, um abraço, dois beijinhos formais, só isso. E o resto da noite se passara com aquela sensação estranha, absurda.

Entrando em casa, foi direto para o quarto. Sim, sem dúvida, precisava tomar um banho, um banho morno que a acalmasse. E a primeira coisa que fez foi arrancar o vestido pela cabeça. No gesto, sentiu o cheiro.

Parou, eletrizada.

Ficara impregnado em seu vestido, por um simples abraço.

E então compreendeu. Era isso. Era o cheiro.

Fechou os olhos.

Sim, sem dúvida – era o cheiro. Aquele homem tinha cheiro de mato, de terra molhada. Ao pensar nisso, sentiu um rumor subir dentro do peito, o coração martelando, a sensação de um gancho fincado entre as costelas, qualquer coisa que sangrava e doía mas ao mesmo tempo era bom. Não sabia o que viria, o que estava por acontecer, mas sabia que seria forte e arrasador, uma tormenta. incontrolável. Tornou a respirar o ar vazio do quarto, lembrando com toda a clareza o cheiro do homem. Era, sim, cheiro de mato e terra molhada.

Prenúncio de temporal.

 

 

A casa do passado

(4/4/2004)

 

 

– Eu quero ir embora.

– Quer ir embora?

– Quero.

– Para onde, mãe?

– Quero ir para casa.

– Mas você já está em casa, mãe.

Silêncio.

– Eu quero ir para casa.

– Você já estáem casa. Vocêmora aqui. Nós moramos aqui.

Silêncio.

– Eu quero ir embora. Quero ir para casa.

– Mãe, já falei mais de mil vezes. Esta é a nossa casa. Você não está vendo a sala, os móveis, a paisagem lá fora? É tudo igual ao que sempre foi. Nada mudou.
– Mas eu quero ir para casa. Para a outra casa.

– Que outra casa, mãe?

– A outra. A janela desta aqui é muito larga, pega a parede toda. Dá medo. A outra, não. A outra tinha as janelas mais estreitas, eu sei muito bem.

Silêncio.

– Você não vai me levar para casa?

– Não.

– Por que você faz isso comigo? Vamos embora, por favor!

Silêncio.

– Já está anoitecendo. Eu tenho medo. Por favor, me leva para casa! Eu quero ir para casa antes que fique escuro.

Silêncio.

 

* * *

 

A mulher caminhou até a janela e, apoiando as mãos no parapeito, olhou a paisagem lá fora, respirando fundo. Depois voltou-se para trás e encarou a mãe, sentada no sofá. Tinha um olhar assustado, súplice. Seus olhos baços faziam movimentos sutis, quase imperceptíveis, como se buscassem algo. Um olhar de medo, o de sua mãe. Mas pelo menos estava quieta. Por um instante se calara, parara de suplicar para que fossem embora.

Aquilo vinha acontecendo havia vários dias. No princípio, a mulher ficara intrigada, sem entender que estranho mecanismo entrara em ação na mente senil de sua mãe. Mas agora de repente compreendia, sabia que casa era aquela a que a mãe se reportava. Era a casa imaterial e inalcançável de sua juventude, um lugar que já não havia, que nunca mais voltaria a existir.

A casa do passado.

 

 O fruto da solidão

(11/4/2004)

 

Por causa de algumas reminiscências sobre comidas da infância, uma amiga gentil me presenteou com um saco de serigüelas. Peguei os pequenos frutos e fui colocando-os na boca, um a um, mordendo a casca vermelho-alaranjada, sentindo-lhe o estalo, sorvendo a polpa até chegar ao caroço, do tamanho do de uma azeitona. Depois, satisfeita, saí para fazer umas compras. Ao chegar na porta do supermercado, talvez ainda sob o impacto do gosto antigo, notei de longe umas caixas com frutos vermelhos em forma de coração e pensei: “São jambos.” Cheguei perto, mas não precisei nem tocar nas frutas para ver que me enganara. Não eram jambos e sim pêras vermelhas, uma novidade exótica que nenhuma relação tinha com sabor de infância. Decepcionada, me afastei.

Mas logo descobri que levava os jambos comigo. Pensava neles, recordava. Seu formato, o contraste entre o vermelho de sua pele e a brancura da polpa, seu cheiro – os jambos têm cheiro de rosas. Mas não era só isso e eu sabia bem. Levava comigo, junto com os jambos imateriais, a sensação de susto, de quase pavor. E deixei fluir a lembrança.

Na época com cinco ou seis anos, eu voltava de carro com meus avós do sítio que tínhamos em Jacarepaguá. Íamos pela Estrada Velha do Joá, que em alguns pontos era sinuosa, estreita, sem acostamento ou retorno. Até que avistamos à esquerda um pequeno recuo, sombreado de árvores, onde, numa barraquinha, um velho vendia jambos. Meu avô, muito guloso, imediatamente deu uma guinada e parou no recuo. Decidira comprar um punhado daquelas frutas vermelhas que adorava. Eu, que estava sentada sozinha no banco de trás, decidi saltar também. Enquanto meus avós escolhiam os jambos, dei uns passos, distraída, apreciando a beleza das copas das árvores, o emaranhado de parasitas que escorriam dos galhos como uma barba rala. E, de repente, ouvi o ronco do motor. Ao me voltar, vi o fusca do meu avô tomando o asfalto e, num segundo, desaparecendo na curva.

Eles tinham ido embora sem mim.

Fiquei paralisada. O velho da barraca, arrumando seus jambos, nem parecia ter notado minha presença. E meus avós? Na certa tinham pensado que eu sequer saltara, que continuara no banco de trás enquanto eles compravam as frutas. Sim, fora isso. Eles iam voltar. Eles não iam fazer aquilo comigo.

Foram segundos, minutos, de um medo profundo, uma sensação de abandono avassaladora. Por mais que, racionalmente, eu não parasse de repetir para mim mesma que estava tudo bem. Eles iam voltar.

É claro que voltaram. Demoraram um pouco, embora notassem logo minha falta, mas é que tiveram dificuldade em encontrar um retorno na estrada estreita. Ao vê-los, tentei sorrir – mas, sem saber, já estava marcada. E o jambo, com toda sua beleza, com todo seu cheiro de rosas, ficou sendo para sempre em mim o fruto da solidão.

 


 A conta de gás

(18/4/2004)

 

Era dessas pessoas comodistas, capazes de deixar um assunto pendente durante anos, principalmente se fosse alguma coisa burocrática. Mudar para seu nome a conta de gás, por exemplo. Há quanto tempo estava para fazer isso? Já nem se lembrava. Cinco anos, talvez. Ou talvez mais. De tempos em tempos, alguém lhe pedia um atestado de residência e ela coçava a cabeça, pensando na conta de gás. Ou na de luz. Ou na de telefone. Todas estavam em nome de outras pessoas, que tinham morado no apartamento antes dela. Era uma bagunça. Mas agora isso ia mudar.

Mudou. Nem precisou ir até a companhia de gás. Foi muito mais fácil do que pensava, agora essas coisas são feitas por telefone. E, tudo consumado, sentou-se na poltrona, satisfeita,  com a conta antiga nas mãos. Estava no nome de seu avô, morto havia muitos anos, de quem herdara o apartamento. Uma vergonha. Como pudera ser tão preguiçosa? Virou e revirou a conta entre os dedos. Lá estava o nome. A próxima já viria com o seu. O nome dele – o nome de seu avô – não sairia mais impresso ali, nem em lugar algum.

E de repente sentiu uma agulhada de culpa.

Mexeu-se na poltrona, descruzou as pernas. Lembrou-se então de um conto que lera numa revista americana, falando de um mundo dos mortos, um mundo em que as pessoas viviam em casas, andavam em ruas, faziam tudo o que os vivos fazem – até que um dia desapareciam, se dissolviam no ar. Ninguém sabia se iam para algum outro lugar. Apenas sumiam, mais nada. E a explicação era que, naquele mundo dos mortos, as pessoas só continuavam existindo enquanto houvesse, entre os vivos, alguém que se lembrasse delas. Quando o último traço de sua memória se apagava, elas desapareciam também.

Ficara impressionada ao ler a história. Chegara a sonhar com ela, vira-se caminhando num parque coalhado de folhas vermelhas, outonais, um parque deserto onde avistava, ao longe, um velho. Seguia-o, por puro temor de continuar caminhando só, mas quando estava quase alcançando-o o velho se dissolvia no ar, ante seus olhos, como uma bolha de sabão que estourasse.

Enquanto pensava na história e no sonho, a mulher encostou o pedaço de papel contra o peito, instintivamente. Será que lá, no mundo dos mortos, seu avô se apagaria um pouco, agora que não teria mais o nome impresso na conta? E será que se dissolveria no ar no dia em que ela não estivesse mais aqui para se lembrar dele? Mas acabou dando um suspiro e sorriu, sentindo-se tola. Por culpa de sua imaginação, toda a efemeridade da vida cabia de repente numa conta de gás.

 

 

  Útil paisagem

(25/4/2004)

 

Depois daquele verão quase sem sol, a mulher estava sentindo falta de praia. Olhou pela janela do escritório e por entre os telhados dos prédios e o emaranhado de antenas avistou, lá longe, uma pontinha de mar. É engraçado, pensou. Nós, cariocas, às vezes temos uma tendência a desprezar um pouco toda essa beleza que nos cerca. É que como se pensássemos: ah, a paisagem está sempre ali, ela pode esperar. Mas não deveria ser assim.

A praia, por exemplo. A mulher tinha de admitir que pouco ia à praia, no Rio. Sábado e domingo era cheia demais. Preferia caminhar pelo calçadão. Nos dias de semana, estava trabalhando. Praia, mesmo, para valer, só quando ia Búzios ou a Angra. No Rio, quase nunca. Deu um suspiro, olhando aquela nesguinha de mar lá no horizonte. E se desse uma fugida? Se largasse tudo, desse um pulo em casa e fosse dar um mergulho? Por que não? Fora um verão de tão pouco sol, de tão pouco calor. A verdade é que estava sentindo falta da praia, do contato com a areia, com o mar.

Tomada a decisão, saiu. Adiantou uma coisa e outra, deu uma desculpa e foi atéem casa. Pegouo biquíni lá no fundo da gaveta, com o elástico já meio frouxo. Estava precisando comprar um novo. Nem biquíni comprara nesse último verão. Um fiasco para quem se criara na beira do mar, catando tatuí e nadando até lá fora para tentar enxergar o Pão de Açúcar. Enfiou a saída de praia, os chinelos, e saiu.

Assim que deixou a calçada e pisou na grama rala junto a um quiosque, foi logo sentindo um cheiro bom, que identificou imediatamente. Era o cheiro daquela planta rasteira que cresce na areia e dá flores lilases. Nunca soube seu nome. Mas tinha um cheiro peculiar, era uma marca dessa praia que conhecia tão bem, desde criança. Suspirou, satisfeita, e seguiu em frente, rumo à areia quente.

Atravessou aquele trecho largo de areia seca, os olhos já fixos no mar. Estava uma beleza, com um azul de Caribe, e como o dia amanhecera nublado – o sol surgindo de repente, no começo da tarde – a areia não tinha quase ninguém.

Quando chegou bem perto do mar, a mulher fez um montinho com a saída de praia e os chinelos – e mergulhou. A temperatura da água também estava perfeita. Meu Deus, tornou a pensar, por que nós, cariocas, não fazemos isso mais vezes? Apreciar toda essa paisagem que nos cerca é uma questão de utilidade pública. Isso não pode ser desperdiçado, precisa ser uma missão diária. Assim como na Espanha tudo pára para a sesta, deveria haver entre nós o costume de passar meia hora, uma hora, por dia apreciando a paisagem. Se possível, na praia. A qualidade de vida de todos ia melhorar muito.

 

 

 O hotel

(2/5/2004)

 

Ele só acreditava nos fatos. Era um pesquisador e, como tal, só se interessava por informações concretas, dados palpáveis. Torcia o nariz para qualquer coisa que não fizesse parte do mundo material – objetivo e exato. E era justamente em busca de informações que fora visitar o velho hotel naquela manhã, o hotel hoje um tanto decadente mas que já vivera dias de enorme luxo e ostentação. Parou diante da escadaria, observando a construção imponente, em estilo normando. No céu sem nuvens, o sol varava o ar fino da serra e incidia sobre as paredes pintadas de branco, aumentando o contraste dos detalhes cor de vinho. Era uma beleza.

Subindo os degraus de pedra, o homem entrou e perguntou pelo gerente, com quem marcara a entrevista. Era um senhor que trabalhava lá desde os tempos de glória, mais de cinqüenta anos antes. Foi conduzido por uma jovem de cabelo preso em coque até uma saleta, onde ela pediu que esperasse. O homem esperou. E esperou. Nada do gerente. Começou a se impacientar e, percebendo que havia uma porta ao fundo da saleta, decidiu ver aonde ia dar. Levantou-se e, entreabrindo a porta, espiou.

O que viu foi um salão imenso, de dimensões quase impensáveis, mergulhado na penumbra. Um salão de teto abobadado, todo cravado de colunas, com pé-direito de mais de vinte metros. Deu alguns passos e parou, impressionado. Respirou fundo, sentindo no ar um cheiro antigo, de umidade e abandono. Ali certamente fora um dos salões de jogo. Sabia que no velho hotel tudo era solene e gigantesco, mas não esperava tanto. Chegava a ser opressivo de tão grande, aquele espaço. Caminhou um pouco mais, tomando cuidado para enxergar onde pisava, pois as réstias de luz que se esgueiravam pelos janelões fechados não eram suficientes para lhe infundir segurança. Procurou manter-se próximo à parede, de vez em quando apoiando-se nela e erguendo o rosto para apreciar o teto, pintado de uma tinta escura como um céu noturno. De repente, a mão que se apoiava na parede cedeu e o homem percebeu que estava diante de outra porta, entreaberta. Espiou e viu que dava para outra saleta, semelhante àquela em que estivera à espera do gerente, só que vazia e escura. Sem saber por quê, entrou. E foi imediatamente paralisado por um arrepio. Homem racional que era, continuou parado, sem compreender o que se passava. Os cabelos da nuca eriçados, uma estranha opressão no peito. Custou um pouco a perceber – mas quando isso aconteceu, foi como um jato – que não estava só. Havia alguém ali com ele. Uma presença.

Não teve tempo para refletir. Suas pernas agiram por conta própria. Quando deu por si, estava de volta à saleta onde fora deixado pela moça da recepção, ofegante, pálido. O gerente o esperava. Olhou-o e sorriu. “Já sei onde o senhor estava,” disse. “Aposto que entrou na sala dos suicidas.” O pesquisador olhou-o, tolamente. E o velhinho explicou, um sorriso benevolente. Era a saleta onde as pessoas se trancavam, arrasadas, quando perdiam suas fortunas no jogo. E lá, se matavam.

 

 Esconderijo

(9/5/2004)

Era uma mulher engraçada, espirituosa. Quem convivia com ela, vivia rindo. Sempre fazia observações mordazes sobre tudo e sobre todos, com um humor refinado e inteligente. E ela própria parecia se divertir com isso. Estava sempre alegre, sempre sorridente. Não se deixava abater nem pelos momentos mais difíceis da vida. Enfrentava tudo rindo, brincando. Foi assim até mesmo quando o marido adoeceu. Uma doença difícil, grave, terrível, que se prolongou por muitos anos, abatendo todo mundo que convivia com o casal. Mas a ela própria, não. A ela, nada abatia. Continuava alegre, rindo, animando quem estava em volta.

Um dia, após longo sofrimento, o marido morreu. E ela enfrentou tudo com a maior coragem, os rituais intermináveis, todas as cerimônias do adeus. Os amigos comentavam, sempre observando sua força interior. Era de fato impressionante.

Os anos passaram. A mulher continuou sozinha, é verdade, mas de forma alguma parecia uma pessoa solitária ou triste. Continuava rindo e fazendo rir, sem jamais deixar transparecer sofrimento.

Até que um dia, muito tempo depois, algo mudou. Foi de uma hora para a outra. No início, os amigos sequer perceberam, mas o fato é que a mulher começou a ficar arredia, calada, deixou de atender ao telefone, desapareceu. Só então os amigos se alarmaram, achando que talvez alguma coisa pudesse estar errada. Uma conhecida, das mais chegadas, foi até a casa dela ter uma conversa, tentar saber o que estava acontecendo. E a mulher acabou confessando que não tinha mais ânimo para nada, que sentia uma indolência estranha, um cansaço imenso. Admitiu que precisava de ajuda. Talvez fosse depressão, sugeriu a amiga. Talvez, ecoou a mulher, falando num sussurro. A amiga decidiu que ela precisava consultar um analista, buscar alguma forma de ajuda, fazer uma terapia de apoio. E ela concordou.

Marcada a primeira sessão, sentiu-se aflita, inquieta. Tentou repassar mentalmente tudo o que deveria dizer ao analista, preparou sua fala com antecedência, não esqueceu nada. Dividiu em compartimentos racionais tudo o que sentia e entrou no consultório, já um pouco mais confiante.

Passou boa parte dos cinqüenta minutos falando sem parar, despejando seu discurso bem pensado, bem articulado, sem pontos em branco, sem furos. Deus – ou talvez o diabo – lhe dera o dom da palavra. Mas de nada adiantou tanta esperteza e loquacidade. O analista, que a tudo ouvia em silêncio, esperou que ela terminasse e chegou mais para a frente da poltrona, dizendo:

“Eu só não entendi uma coisa.”

A mulher olhou para ele, fixamente. E então ouviu a pergunta. A pergunta que a fez desmontar como um castelo de cartas, as palavras que ficariam presas em seu peito como se gravadas a fogo:

“Onde é que você escondeu a sua dor?”

 

 

Beleza corrompida

(16/5/2004)

Desde menina era assim. Resplandecente, solar. De uma beleza incomum, que ofuscava tudo e todos à sua volta. Havia cor e luz em seu olhar e uma sensualidade nata que desafiava os costumes. Viu-se, por isso, desde tenra idade, muito só. As outras crianças, e mesmo os adultos, nutriam por ela uma mistura de horror e fascínio, como se tanto esplendor  fosse uma beleza maculada, corrompida.

Mas a menina não parecia se deixar afetar por tamanha solidão. Ao contrário, ela se bastava. Flanava pelos jardins, brincando com as plantas e os pássaros – seus iguais. Como uma deusa ancestral, de rituais pagãos, integrava-se à natureza e sobre ela reinava. Seus pés delicados davam a impressão de estar todo o tempo flutuando a centímetros do chão, linda e livre. Mais livre e mais linda do que se podia suportar.

E foi assim que surgiram, por essa época, os primeiros comentários. Rumores de que ela não era uma menina comum, de que por trás de suas vestes vaporosas cresciam asas, mas não asas de anjo e sim de demônio, asas de um anjo caído que deveria ser combatido, cerceado, se possível extirpado da convivência com as outras crianças, por sua influência perigosa.

E enquanto isso a menina crescia, indiferente a tudo. Sozinha, sempre. E linda. Crescia na companhia de si mesma, e de sua própria beleza se alimentava, num círculo de sensualidade e prazer que fez dela, em poucos anos, a mais bela jovem que se pudesse imaginar. E também a mais invejada. Se todos a admiravam em silêncio, nutriam também por ela um despeito irrefreável.

Os anos passaram. E a jovem se transformouem mulher. Acada vez que cruzava a praça, fazendo esvoaçar a saia com o balanço dos quadris, o mundo parava. Não havia ninguém como ela, ninguém que se lhe comparasse. Os cabelos da cor do sol, agora mais encorpados, desciam-lhe pelos ombros até quase a cintura, em anéis flutuantes. A pele, de um moreno que lembrava o tronco das amendoeiras, brilhava como os fios d’água nas encostas de pedra, depois da chuva. E os olhos, de um verde cada vez mais profundo, mais misterioso, guardavam em seus pequenos círculos todas as montanhas e todo o mar.

E as pessoas em torno, cada vez mais rancorosas, decretaram que era preciso fazer alguma coisa para controlar tanto poder. Aquela mulher era perigosa. Tanta beleza não podia ser divina. Era preciso satanizá-la, sujar seu nome, gritar ao mundo que ela tinha um pacto com as sombras.

Foi o que aconteceu. Mas a mulher resistiu a tudo, enfrentou todas as pedras com o rosto limpo, expondo ainda sua beleza infinda. Esta, ninguém lhe roubaria. Nunca.

E se dela tanto falamos, ainda não lhe revelamos o nome. O nome, que era um estigma e uma bênção, o nome que era a marca de seu destino de beleza e dor. Sim, seu nome – fluvial, ondulante, irrefreável como as próprias curvas de seu corpo – era Rio.

 

 

As pequenas coisas

(23/5/2004)

Desde menina, gostava de coisas pequenas. Quando saía com a mãe, de mãos dadas pelas ruas do Centro da cidade, olhando as vitrines, muitas vezes parava fascinada diante de uma loja de bonecas. E a mãe já sabia que havia ali uma casaem miniatura. Erasua paixão. As paredes dividindo os cômodos, os móveis pequeninos, os quadros, os utensílios. Olhava tudo aquilo e se sentia envolver por uma sensação de prazer, avassaladora e indefinível. Lembrava-se de uma vez em que, passeando pela rua Gonçalves Dias, vira, na vitrine de uma luvaria e loja de presentes, uma casa de bonecas estrangeira, lindíssima, não para vender, mas de enfeite. Ficara extasiada. Havia pequenos lustres de cristal, tapetes bordados, papel de parede e uma mesa posta com minúsculos pratos e travessas de louça azul e branca. Fora um encantamento.

Lembrava-se também de uma coleção de pequenos pesos de balança, uma fileira deles, de diversos tamanhos, mas todos minúsculos, que havia na casa de sua tia. Gostava tanto deles e tanto se admirava com sua perfeição, que a tia, antes de morrer, mandara-os para ela de presente, como uma espécie de herança em miniatura.

Mesmo depois de mulher feita, jamais se livrou daquela mania pelas coisas pequenas. Chegara certa época a tentar fazer uma coleção de miniaturas, mas logo perdera a paciência. Não dava para isso, não tinha alma de colecionador. Não possuía aquele estranho dom que faz todo colecionador viver numa angústia sem fim, imaginando em que canto escondido do mundo estará um objeto da coleção que ainda não possui. Ela, não. Preferia contemplar placidamente as miniaturas, não possuí-las. A simples visão de um objeto em tamanho pequeno a deixava com aquela mesma sensação de plenitude que costumava ter na infância.

E foi talvez por causa dessa afeição pelas pequenezas que, depois de casada, os filhos já crescidos, tomou uma decisão que todos consideraram esdrúxula: decidiu abrir um armarinho. Não é qualquer um que abre um armarinho. É preciso uma vocação especial para lidar com todas aquelas caixas, as gavetinhas de botões, fitas, azelhas, ilhoses, os rolos com as fitas de diversas cores, os infindáveis carretéis de linha, uma coleção de pequenos produtos capazes de enlouquecer alguém que não tenha uma fantástica capacidade de organização. Os filhos foram contra. Acharam que seria uma trabalheira sem fim, que ela já não tinha mais idade para isso. Mas a mulher teimou e não quis saber.

O tempo passou. E ela feliz da vida com seu armarinho. Os filhos acabaram se convencendo de que, afinal, fora uma coisa boa. E foi assim que, num dia das mães, ela recebeu deles um presente. Um livro. De capa colorida, num papel sedoso, bom de passar a mão. Chegou a folheá-lo, mas sabia que jamais chegaria a lê-lo, ela, uma mulher simples, que não era de ler coisas assim, cheias de palavras complicadas. Mas ficou feliz assim mesmo. Pois o nome do livro era “O deus das pequenas coisas”.  E ela compreendeu que aquele presente era um gesto de amor.

 

Umbral

(30/5/2004)

O homem abriu os olhos e – num átimo – descobriu que penetrara um mundo de mistério e negror, insondável. O que era? Onde estava? Não sabia. Mas de uma coisa tinha certeza: não sonhava.

Ficou parado por alguns segundos, ouvindo apenas a própria respiração, pois, curiosamente, as batidas do coração não ouvia, estas pareciam serenadas (talvez até demais). Foi só muito depois que decidiu dar o primeiro passo. Deu a ordem mental aos músculos da perna, a perna direita – naquele mundo desconhecido, não podia se arriscar ao azar –, percebendo com clareza sobrenatural o movimento que se iniciava. E no exato instante em que seu pé direito tocou o chão, a velha se materializou à sua frente. Ou velho, ele não saberia dizer. Tinha os olhos fundos, um nariz enorme, a boca desprovida de dentes aberta num sorriso de escárnio. Por trás dela – ou dele – o homem divisou uma sombra, mas procurou desviar os olhos pois intuiu que era um ser terrível, cuja visão lhe seria intolerável. Ao erguê-los porém não pôde deixar de observar o céu plúmbeo, apocalíptico, que pairava sobre eles. E isto o inquietou ainda mais. Nele, as nuvens tinha tal densidade que seus contornos pareciam pintados a tinta, uma tinta que embora negra trazia consigo uma luminosidade lunar, irreal, fantasmagórica.

O homem suspirou, baixando novamente os olhos. E já não viu a velha à sua frente. Ou melhor, viu – mas ela não estava mais só. Na escuridão que a rodeava, havia agora uma massa de gente, homens, mulheres e talvez até crianças, mas todos mergulhados num negror que os tornava impossíveis de discernir. O homem sabia que estavam ali, era tudo. Mas em verdade não os enxergava. Podia ser um conclave de bruxos reunidos em torno de ruínas circulares ou uma procissão agônica, perdendo-se no horizonte (sem que ele o visse) em veredas que se bifurcavam até a eternidade. O homem sentiu uma gota de suor porejando-lhe da fronte e decidiu mover-se, dar outro passo, virar-se, fazer qualquer coisa que o retirasse dali, instantaneamente, como só acontece nas regiões do umbral, onde tudo é encantamento. Pensou primeiro em erguer o braço e limpar o suor da testa. Deu a ordem mental – mas a mão se recusou a mover-se. E o homem soube, de imediato, que era um prisioneiro do tempo. Caíra, escorregara, perdera-se num lapso entre duas frações de segundo, infinitesimais, de onde jamais talvez pudesse sair. Num esforço supremo, tornou a dar a ordem ao braço para que se movesse – e ouviu um ruído. Um ruído seco, um estalo, como o provocado pelo choque de algo que cai ao chão, do alto, algo como… um livro. E o homem abriu os olhos.

Abriu os olhos e moveu-se sob o sol. Respirou fundo, sentindo o ar da primavera em Madri e, curvando-se sobre o banco de pedra onde se deitara, pegou do chão o livro que estava lendo ao adormecer – “Ficções”, de Borges. Olhou em torno – e só então lembrou-se de onde estava. Nos jardins do Prado, onde pouco antes admirara as Pinturas Negras, de Goya. E com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que – sim – sonhara.

 

 

O amigo do vento

(6/6/2004)

 

Não gostava de vento. Quando era criança, sempre que ventava ela se enfiava debaixo da cama e rezava, na certeza de que o prédio iria desabar. Sua mãe ria. Ela, não. Não achava graça alguma. Tinha horror àquela movimentação dos ares, àquela inquietude do mundo cuja razão não conseguia alcançar.

Mesmo depois, já adolescente, continuou tendo aquela sensação estranha, indefinida, diante do vento. E não precisava ser uma ventania. Bastava que estivesse caminhando e começasse a soprar contra ela uma brisa um pouco mais forte para se sentir atingida, desafiada. Não conseguia evitar o sentimento, por mais absurdo que lhe parecesse.

Um dia, já adulta, leu numa revista que os orgulhosos detestam o vento. Achou que fazia sentido. De fato, quando sentia uma rajada mais forte lhe batendo no rosto, no corpo, tinha a sensação de que havia algo maior do que ela querendo vergá-la, vencê-la. Era isto. Era orgulho.

Pouco mais de uma semana depois, saiu para uma caminhada pela beira da praia, num domingo de manhã. Era bem cedo, ainda, e o calçadão estava quase vazio, pois chovera na véspera e o acinzentado do céu não trazia um augúrio de sol. Mas ela foi assim mesmo. Gostava de mormaço, de dias plúmbeos. Só não gostava de vento.

E foi justamente o que encontrou ao chegar à praia. Das ruas de dentro não se podia ter idéia, mas ali, na orla, soprava um vento forte, inesperado. Era o Sudoeste – sinal de mais chuva. A mulher suspirou. Pensou em desistir, mas afinal decidiu ir em frente, em direção ao final do Leblon. Talvez lá, sob o abrigo dos morros, ventasse menos. Seguiu.

Mas quanto mais andava, mais forte soprava o vento. Por pura teimosia, foiem frente. Remandocontra o ar revolto, o corpo vergado, o rosto baixo, sentindo já as primeiras picadas de areia nas pernas, no espaço entre a meia soquete e a calça de malha, que terminava pouco abaixo do joelho. Estava a ponto de dar meia-volta e ir para casa quando, olhando na direção do mar, avistou um menino. Era magrinho e negro, cabeça raspada, não devia ter mais do que doze anos. Estava na beira d’água, tentando equilibrar-se num disco de madeira que o vento e o mar empurravam sobre a areia molhada. Mas alguma coisa no jeito dele chamou a atenção da mulher. Parecia tão perfeitamente harmônico no cenário inóspito, hostil, que ela parou para observar melhor. Parou e se sentou num banco de pedra, abrigando o rosto com a mão.

Era fascinante. Aquele menino, tão franzino e despojado, parecia – muito ao contrário dela – perfeitamente integrado à natureza. Dava-se ao vento e às ondas para deles tirar proveito, deixando-se levar sem tentar ir contra, mas também sem se abater.

Parecia, visto assim, da calçada, tão parte da paisagem que a mulher não pôde deixar de pensar em si própria, no próprio orgulho que a tolhia e travava. Queria poder ser diferente. Queria ser como aquele menino – livre. Amigo do vento.

 

 

Outro mar

(13/6/2004)

 

O homem cofiou a barba branca, pejada de salitre, e ficou parado por um instante, tentando se lembrar. Quanto tempo fazia?

Muito tempo, muito tempo.

Chegara a pensar que nunca mais se lembraria, mas naquela manhã – naquela manhã com força especial – a recordação o envolvera de repente, sem aviso. Não sabia por quê. Não entendia. Acontecia, às vezes. A lembrança o atingia assim, sem mais nem menos, um despropósito. Não era por causa da pescaria. Pescava sempre, não era por isso. Nos meses de calor mais ameno, sempre acordava cedo nos fins de semana e ia para o costão de pedra com seus apetrechos. Peixe mesmo, quase não levava para casa. Um ou outro, uns bagrinhos. Mas era divertido. Nada havia de novo, portanto, naquela manhã de domingo. Por que, então?

O homem ajeitou-se na pedra. Tornou a passar a mão pela barba, depois pelos cabelos. As pontas de seus dedos calejados tocaram a pele da testa, os sulcos fundos das rugas de expressão. Sim, fazia tempo. Estava ficando velho.

Baixou o rosto e pôs-se a remexer na caixinha de pesca, procurando nos pequenos compartimentos uma chumbada qualquer, que não achava nunca. Na verdade não estava preocupado com a pesca ou os peixes. Queria apenas lembrar. Deixar que a linha se perdesse no fundo do mar enquanto seu pensamento vagasse, perdido também, imerso também. No mar. Outro mar.

Passou a mão no peito, observando a própria pele. Os pêlos também estavam quase todos brancos. Estranho que a lembrança acendesse ali o mesmo ardor de antes, a sensação dos ventos, o gosto do beijo, o cheiro do mar, aquele mar perdido de um junho que não havia mais, a festa de Santo Antônio na aldeia em que crescera, com foguetes estourando junto às pedras do cais. E a menina. A menina que jamais esquecia, o pequeno fantasma que um dia, sem aviso, o assombrava, com uma força desmedida, quase sobrenatural. Outro mundo, outra festa, outro mar.

Passou a manhã toda pescando, pensando. Foi outra vez menino e moço, divagou. Perdeu-se em devaneios, mas as iscas ficaram todas lá. Não pescou nem um bagrinho.

Voltou para casa sentindo um cansaço imenso. Mas foi só depois do almoço, quando se esticou no sofá da sala para ler o jornal e cochilar, que viu a data no cabeçalho. 13 de junho. Dia da festa de sua mocidade, cerne daquela memória que às vezes o engolfava, como onda e espuma. Dia de Santo Antônio.

 

O museu que não se vê

(20/6/2004)

 

As mãos, envoltas em luvas brancas como as de um prestidigitador, abrem o armário de parem par. Eo segredo nele contido se revela: taças, copos, compoteiras, travessas, doceiras – tudoem cristal Baccarat. Aspeças cintilam, como se estranhassem estar expostas à luz. Vivem trancadas ali, naquele armário secreto. Estremeço ao ver que as mãos enluvadas, ágeis, retiram de uma das prateleiras uma pequena taça, de cristal esverdeado, dando-lhe um piparote na borda. O som musical fica ressoando no silêncio da sala. Meu coração se contrai quando imagino o que seria se uma daquelas preciosidades se quebrasse.

Mas continuamos nossa visita. Agora, as mãos enluvadas abrem outro armário, este de louças da Companhia das Índias. Retiram um dos pratos e eu volto a sentir aquele arrepio quando elas manuseiam a peça, exibindo-lhe os detalhes. E a emoção se repete, a cada novo armário aberto. Depois das louças, vêm os leques, arrumados em pequenas gavetas, dois ou três em cada uma delas. E em seguida a indumentária. Nessa parte, de uma das gavetas abertas, as mãos enluvadas retiram um guarda-sol rendado, cujo cabo é todo incrustado de esmeraldas e pérolas. Reclino o rosto sobre ele, contendo a respiração, temendo talvez danificá-lo. Quando vamos a um museu, sempre vemos peças como essas de longe, atrás de cordas, vidros, nunca de tão perto. Isso é o que torna nossa visita tão especial.

Mas essa não é uma visita qualquer. Estamos no Museu Imperial de Petrópolis, mas o que vemos é seu acervo secreto, aquele que permanece guardado, longe dos olhos do público. Não só louças, cristais, roupas, mas também quadros, tapetes, mobílias. E ainda os livros raros da biblioteca, as fotografias e os documentos do arquivo histórico. Essa visita, que é feita uma vez por mês, se chama “O museu que não se vê”.  Nela, o visitante é guiado pelos funcionários do museu através dos departamentos que são, digamos, a espinha dorsal da instituição, mas que normalmente ficam invisíveis. Ninguém imagina que apenas dez por cento do acervo de um museu costumam ficar expostos, enquanto os outros noventa por cento têm de ser guardados em câmeras climatizadas, com temperatura e umidade controladas, precisando ser constantemente limpos, cuidados, espanados por pessoas especialmente treinadas para isso. Uma trabalheira louca. Ninguém imagina o que é a recuperação de uma peça antiga até entrar na oficina de restauração e ver alguém de luvas (sempre as luvas) mexendo na madeira de uma moldura com um ferrinho de dentista. Sim, um ferrinho daqueles de ponta finíssima, em curva. É o que é necessário, tal a delicadeza do trabalho.

Mas de toda a visita a esse museu invisível, nada me impressionou mais do que a dedicação das pessoas que trabalham lá. São tão poucas. Certamente vivem tão atarefadas. Mas nos olhos de todas elas vi um brilho especial, um cintilar como o dos cristais: o brilho da paixão pelo que fazem.

 

A linha

(27/6/2004)

 

Não houve qualquer aviso.

Foi de repente. Fechei os olhos e quando tornei a abri-los, pronto – estava lá. Nada teve de gradual. Ao contrário, foi instantâneo e por isso mesmo surpreendente, fascinante e aterrador.

Sim, foi como aconteceu. E agora aqui estou.

Olhoem torno. Assombras, as formas, os mistérios, tudo o que pressinto hoje à minha volta, tudo o que me cerca é real, palpável, disso estou certa. Mas desconheço como vim parar aqui, não sei qual a causa imediata desse transporte. Só sei, com absoluta segurança, que há vida deste lado. Quase posso enxergar os fantasmas translúcidos movendo-se na penumbra, ouço seus rumores, sua respiração.

E agora que aqui estou – só agora – vejo, retrospectivamente, que durante anos me preparei para esse encontro, essa passagem. Por toda a vida estive, sem saber, a um passo de cruzar a linha e chegar aqui. Para começar, eu ouvia vozes. Desde menina. Sempre falei com eles. Mal acordava e já podia pressentir sua presença, seus sinais. Conversavam comigo, sussurravam-me coisas, às vezes sem sentido, em outro momentos com enorme clareza e lucidez. Mas nunca pensei que fossem fortes a ponto de me arrastar, de me levar assim – para o outro lado.

Por isso, repito: eu nada pude fazer.

E agora, sabe o que vejo? Vejo homens e mulheres, de olhar perdido, velhos de faces encovadas, espiando através de frestas. Vejo meninas brincando na relva, de mãos dadas, e sei que num desses rostos gêmeos há um sinal – uma delas está marcada. Vejo florestas, casas abandonadas, gramados crescidos. Pântanos, lodaçais, vastidões assombradas. E também imensos espaços mortos, desertos e planícies onde monumentos de pedra se erguem para um céu alienígena, com nuvens cor de sangue. Neste lugar há espelhos, portas, labirintos. Há noite, paixão e morte. Há medo. Acima de tudo, medo. E loucura. Aqui mora o desconhecido, o incontrolável. E por mais que eu me faça senhora deste reino, sei que estou condenada.

            É verdade. Não há retorno para os que pisam este lado da fronteira. Nunca mais. Não poderei, sob pena de não ser eu mesma, não poderei outra vez cruzar o umbral e me instalar confortavelmente do lado de lá, do lado onde sempre estive, do lado onde tudo é calmo e acabado. Onde não há inquietação. Assim como Perséfone que, tendo provado uns gomos de romã, o fruto do inferno, condenou-se a viver no mundo dos mortos, eu sei que também permanecerei aqui, para sempre.

Você sabe onde estou? Sabe que fronteira é esta de que falo?

É a linha atravessada por aqueles que escrevem.

 

 

Aqui e agora

(4/7/2004)

 

O deserto. Assim se chama um texto de Camus com o qual me deparo, num livro que recebi há muitos anos de presente de uma amiga. O livro tem o título de “Noces”, que significa “Bodas”. É composto de três pequenos textos fascinantes,em que Camusfaz reflexões aparentemente banais, ligeiras, mas que no fundo são daqueles textos que têm camadas e mais camadas, como um conto assombrado de Borges. Sempre que me vem à mente aquela pergunta tola que por vezes nos fazemos sobre que livro levaríamos para uma ilha deserta, concluo que, muito mais do que um livro, seria melhor levar apenas um conto, um texto curto porém desses que nos inquietam, nos fazem pensar e que, depois de lidos, permanecem dentro de nós por muito, muito tempo.

Assim é esse texto a que me refiro, chamado “O deserto”. Nele, Camus reflete sobre a vida e a morte, como grande filósofo que era. Um filósofo livre, sem amarras, sem compromissos, muito mais livre do que Sartre jamais foi. Leio – com dificuldade, é verdade, pois para mim é difícil ler Camus em francês – e me deixo embeber por suas palavras, ainda que às vezes tenha a sensação de não lhes penetrar inteiramente o sentido. De repente, meus olhos param diante de uma frase, que tentarei, canhestramente, traduzir:

“O corpo ignora a esperança. Ele só conhece o pulsar do próprio sangue, mais nada. A eternidade lhe é indiferente.”

Há muito, aí. Vinte palavras, apenas, mas uma imensidão de significados, uma porta aberta por onde entro, passeio, olho em torno, reflito. Sinto a inquietação, o chicotear das areias. De repente, estou com Camus nesse deserto, um deserto simbólico que talvez remeta à condição do homem, sozinho em sua casca, vagando pelo infinito. Suas palavras, essas vinte palavras, dançam e dançam dentro de mim.

Dizem que o homem padece de angústia porque sabe que vai morrer. Os animais irracionais, não. Para eles, só existe o presente. Não esperando nada, nada têm a perder. O corpo de que fala Camus seria assim um animal que nada espera, que só conhece o aqui e agora.

Aqui e agora.

Hoje é domingo e leio deitada na cama, junto à janela, por onde penetra um raio oblíquo de sol, pois é cedo ainda. A meu lado, parado nesse raio, está meu gato Zulu, seu pêlo negro ganhando tonalidades de cobre ao faiscar ao sol. Será que ele é assim? Será que, como o corpo de Camus, meu gato ignora a esperança e conhece apenas o pulsar do próprio sangue? Nesse instante, pressentindo meu olhar, ele se vira e me encara, a pupila apenas um traço pela ação da luz. Irmão da eternidade, meu gato parece conhecer muito mais do que o presente. Parece conhecer tudo. E de repente me sinto uma tola, filosofando deitada na cama, num domingo de manhã.

 

O piano

(11/7/2004)

 

Quando ela e o marido visitaram pela primeira vez o apartamento, ainda ocupado pelos antigos proprietários, a mulher viu logo o piano na sala principal. E acima dele, na parede, uma pintura a óleo mostrando uma senhora de porte majestoso, vestida de gala, com o cabeloem coque. Ficouolhando o retrato, presa de um estranho fascínio. O dono do apartamento então aproximou-se e contou-lhe que a mulher no retrato a óleo era sua mãe, morta havia muitos anos.

“O piano era dela”, acrescentou.

Imediatamente a mulher imaginou aquela senhora dedilhando as teclas, acompanhando a si própria com sua voz de soprano, talvez para afastar a solidão, para não pensar no passado ou, quem sabe… E foi despertada do devaneio pelo marido, que a chamava para ir embora.

Acabaram comprando o apartamento. E, com ele, o piano, pois os antigos proprietários não podiam levá-lo. Mas um dia, poucos meses depois, o marido se abaixou junto ao pé do instrumento e ficou examinando o chão, com o cenho franzido. Depois, passou o dedo no assoalho e olhou para a mulher com olhos esgazeados: “Cupim!” disse. A mulher não quis acreditar, mas o marido insistiu. E deu início à guerra. Sempre muito zeloso de seus livros e estantes, concluiu que a permanência do piano na casa era uma ameaça. E depois de muita discussão foi afinal decidido que ele seria desterrado. O marido combinou tudo com a empregada: ia doá-lo a uma igreja.

No dia acertado, a mulher preferiu sair de casa, não quis nem ver os carregadores chegarem. Gostava do piano, embora fosse pequeno, de parede, sem nada de especial. Era curioso, porque nem ela nem o marido tocavam qualquer instrumento. Mas a mulher se afeiçoara a ele. E não conseguia deixar de pensar na senhora do retrato, a quem um dia o piano pertencera. Depois de passar algumas horas fazendo compras e apreciando vitrines,  voltou para casa. Sentiu uma pontada no coração ao ver o espaço vazio junto à janela, a marca no chão. O marido explicou que o instrumento fora carregado para a garagem, mas que ainda estava lá, pois a caminhonete da igreja só viria no dia seguinte. E a mulher logo pensou na solidão dele, largado ali num canto, no meio dos carros. Mas deu de ombros. Não havia jeito. Procurou não pensar.

No dia seguinte, ao sair cedinho para o supermercado, estranhou o olhar do porteiro. Cumprimentou-a de um jeito arrevesado, parecia pálido. “O que foi, seu Antônio?” O porteiro se levantou e falou baixinho, olhando para os lados, desconfiado. “O piano, dona. Todo mundo ouviu. Não fui só eu. Ele tocou durante a noite. Fui lá na garagem espiar e não tinha ninguém”.

E ao ouvir aquilo a mulher deu uma gargalhada de triunfo, saindo da portaria a passos largos, vitoriosos, enquanto gritava “Bem feito!”

Seu Antônio não entendeu nada.

 

Três paletós

(18/7/2004)

 

Ao dobrar uma esquina, distraída, eu dei com eles. Lá estavam, os três. Pendurados num fio, cada um em seu cabide, levemente mexidos pela brisa matinal – três paletós. Um cinza, de tecido brilhante, o outro azul-marinho e o terceiro marrom, talvez de linho, não sei. De diferentes cores e texturas, irmãos apenas na situação em que se encontravam, pendurados,  expostos na esquina, lá estavam os três.

O que faziam ali?

Observei melhor. A poucos metros, sentado na calçada, encurvado sobre si mesmo e absorto numa tarefa manual que não pude muito bem distinguir, estava um homem. Na certa o dono dos paletós. Na certa o dono de tudo o mais que se espalhava por ali, pela calçada, junto a uma jardineira com seus tubos pintados de verde. Sim, porque no chão de pedras portuguesas havia um quadrado de plástico azul e sobre ele uma série de objetos de tamanho e aparência diversos. Era uma espécie de bazar ao ar livre. Até livros havia. Mas de tudo que ali estava, nada prendeu meu olhar mais do que por um instante, apenas os três paletós. E eles, ali pendurados, sacudidos pela brisa, fizeram surgir dentro de mim uma pergunta:

Por quem esperam os paletós?

Quem será que virá para acolhê-los, tomá-los para si, vesti-los, depois de todos os caminhos que percorreram até parar ali? Quem terá coragem de tê-los, a esses paletós solitários e sem dono, que acabaram num bazar de rua?

Dei alguns passos, cheguei mais perto. O homem sentado no chão, absorto em sua tarefa (que parecia ser a de consertar um rádio de pilha antigo), nem deu por minha presença. Continuou com a cabeça baixa, o cenho franzido. Pude ficar à vontade, sozinha em minha observação dos três paletós, enquanto a pergunta dentro de mim insistia:

Por quem esperam os paletós?

E de repente comecei a pensar, outra vez,em Camus. Hápoucas semanas, um leitor me lembrava (porque eu escrevera sobre Camus) uma frase do escritor em “O mito de Sísifo”: “O homem é triste por duas razões: porque ignora ou porque espera”. Toquei na manga de um dos paletós, mas nem assim o homem me olhou, tão entretido estava em seu conserto. E nesse instante o vento terral que varria a cidade desde a madrugada soprou uma rajada mais forte, agitando os paletós em seus cabides. Era como se eles me respondessem, interagissem comigo. Por quem esperam? Por ninguém. Por nada. Apenas aí estão – como nós, como todos nós, tristes ou não. Como eu. Eu também espero.

 

 

Santana

(25/7/2004)

 

 

A mulher salta do carro, no alto da colina, e observa a Armação lá embaixo, com suas luzes de presépio. No mar calmo, os barcos dormem um sono de rede e ao fundo, longe, há a mancha escura e redonda de uma ilha. Mas na orla da baía há muita luz. Guirlandas, enfeites, barraquinhas, gente caminhando para lá e para cá, como numa festa de igreja. A mulher torna a entrar no carro. Talvez vá até lá.

Dirigindo pela ladeira de paralelepípedos, por um instante perde de vista a curva da baía e sua festa noturna. Mas, alguns minutos depois, ao fim de uma ruazinha estreita, desemboca diante do mar. Pára o carro novamente e salta. Engraçado. Não sabia que havia festa na cidadezinha naquela época do ano. Deve ser uma quermesse, conclui. Mas é uma coincidência. Logo nesse fim de semana, o fim de semana de seu aniversário, em que ela viajou sozinha justamente para não comemorar, para não ver ninguém.

Ainda assim, sente-se compelida a participar da festa que lhe é alheia, de se misturar com aquele povo simples. Começa a caminhar lentamente por entre as barracas, meio zonza em meio ao burburinho de gente. Ao fim da curva onde foram erguidas as barraquinhas, avista a ladeira que vai dar na igreja, também toda iluminada. Decide ir até lá em cima.

Começa a subir a ladeira, pavimentada com pedras lascadas, irregulares, o que torna a caminhada difícil. Está ofegante. Sente-se de repente muito cansada, sem entender por quê. Quando chega no alto da colina, seu coração bate como louco, na garganta. Passa a mão pela testa, seus dedos estão trêmulos. Estranho, estava tão bem. É verdade, a decisão de passar o aniversário sozinha foi muito bem pensada, não tem do que se arrepender. Olhaem torno. Háali, junto à igreja, um largo forrado de grama, com pequenos bancos de pedra e um coreto no meio. Está cheio de gente, mas a mulher avista um lugar vago na ponta de um dos bancos. Vai até lá e se senta. Precisa descansar.

Fica quieta, respirando fundo, tentando se recompor. Sem querer, começa a ouvir retalhos das conversas das pessoas que estão por ali. E é então que ouve alguém falarem Nossa Senhorade Santana. Então é isso. É claro. Sua avó queria que ela se chamasse Ana por ter nascido no dia da santa. Esta só pode ser a festa de Santana. Acaba de pensar essa frase – ou talvez a tivesse pronunciado em voz alta – quando vê, de pé à sua frente, a poucos passos, uma velha parada, olhando-a fixamente. Tem alguma coisa nas mãos. A mulher sente o coração bater como louco ante aquele olhar. A velha, sorrindo, dá uns passos em sua direção e lhe estende o objeto que tem nas mãos. É um colar de ossos. Um suor gelado brota da testa da mulher instantaneamente, enquanto ouve da velha uma estranha frase:

– Salúba, Nanã!

E então sente a vista escurecer.

 

Paisagem atemporal

(1/8/2004)

 

Tenho diante de mim dois quadros a óleo.

Um deles retrata uma Copacabana de 1890, pintado sob a inspiração de uma fotografia de Marc Ferrez, e mostra em primeiro plano uma pedra, depois um areal cercado de morros e mato, a areia de vários tons abraçando o mar com sua curva sensual, tudo em meio a uma leve névoa, uma luminosidade que se reflete na praia e no céu.

O outro quadro é uma paisagem muito semelhante, também praia deserta e imensa, morros, mato, pedra, areia e água. Mas esta é Grumari como a temos hoje, uma paisagem nova, do Rio de agora. Quase não há diferença entre os dois quadros. A Copacabana do passado sobrevive na Grumari de hoje, surge de dentro dela, permanece, como se fosse mágica, um jogo de espelhos.

Assim é o Rio.

Há uma perenidade nas montanhas, no mar que nos cerca e é essa centelha de eterno que nos faz diversos, a todos nós que aqui vivemos. Se tomarmos a paisagem do Rio ao longo dos séculos e a compararmos com a que vemos agora, encontraremos inúmeros ângulos em que há pouca ou nenhuma diferença. Ficaremos surpresos em ver como apesar de tudo – de tudo o que se fala, de tudo o que se faz de ruim, de tudo o que se degrada pela mão do homem – o Rio se mantém de certa forma intacto ante nossos olhos.

É difícil precisar o que faz o espírito desta cidade. Sua longa convivência com o poder, o fato de ser um porto, a mistura de gentes de todas as partes, o cosmopolitismo e até mesmo o perigo – que sempre existiu – de se morar aqui, tudo isso junto forma uma estranha argamassa de beleza e horror, compondo a alma do Rio. São coisas difíceis de definir, mas creio que a permanência da paisagem está em sua essência.

E não falo apenas de beleza natural. Porque a sensação de perenidade não está só na curva das montanhas, na cobertura verde das florestas, no mar que nos cerca por toda parte, mas também pode se revelar onde menos esperamos, num beco, numa ladeira de pedra, num beiral, numa servidão, na torre de uma igreja, numa trepadeiraem flor. Noespelho d’água da Lagoa, de dia ou de noite, com seus reflexos e luzes, na curva majestosa dos Arcos, no chão coalhado de folhas vermelhas simulando um outono que mal conhecemos.

Por isso, o Rio não apenas encanta, surpreende. E é, apesar de tudo, uma cidade para se amar. Uma cidade para ser apreciada e não depreciada.

Paisagem atemporal, anacrônica, crônica de uma beleza permanente e eterna. Que é de todos nós.

 

Cavalgada

(8/8/2004)

 

Quanto tempo faz? Quanto tempo? Ah, ela já nem se lembrava mais. Da última vez, era pequena, talvez adolescente, não tinha certeza. Mas o certo é que fazia muito, muito tempo. Será que teria coragem?

Ficou pensando. Estava tentada a aceitar o convite. Mas não tinha certeza. Talvez estivesse com medo.

Pensou e pensou, enquanto olhava a paisagem que se descortinava à sua frente. Sentada no deque de madeira junto à piscina, enxergava apenas montanhas, por toda parte. Dali, de onde estava, quase não via sinal da presença humana. Era só morro e mais morro, todas as encostas recobertas por uma vegetação rasteira, de um verde brilhante. Era bom estar ali, longe da cidade. Respirou fundo e sentiu aquele cheiro de mato, tão característico das manhãs de sol em regiões de montanha.

Passou a mão pelos cabelos compridos, cor de cobre, sentindo na ponta dos dedos o contato sedoso. E tornou a pensar no belo animal que acabara de ver no estábulo. Não chegara a tocá-lo, não deslizara a palma por seu dorso de seda, mas podia imaginar a maciez daquele toque. Sim, ia voltar lá. Diria ao amigo, dono do sítio, que aceitava a proposta. Ia sair para uma cavalgada.

Em poucos minutos, estava pronta. Teve um déjà vu ao enfiar o pé direito no estribo e dar a volta com a outra perna por cima do dorso do cavalo castanho. E sentiu uma euforia, de repente. Agora sabia que ia ser muito bom. Já não tinha medo.

A princípio, foram passos tímidos, gestos cuidadosos, de parte a parte, como se ela e o animal se reconhecessem aos poucos. Mas assim que fez a curva na estrada de terra e se viu sozinha diante do descampado de vegetação rasteira, ladeando o morro repleto de eucaliptos, o trote aos poucos se foi transformandoem marcha. Elogo a marcha já era um galope franco, onde não havia mais qualquer freio.

Correu e correu, contra o vento.

Semicerrava os olhos e por entre os cílios a paisagem cheia de sol lhe chegava como um quadro impressionista, sem formas delineadas, apenas retalhos de cor e luz. No rosto, recebia a pancada do vento frio, serrano, mas seu corpo fervia com o calor irradiado pelo animal. Em pouco tempo, suava. Entreabriu os lábios, sorriu (quase sem perceber que o fazia) e o vento lhe congelou o sorriso, que assim ficou perene, enquanto minúsculas gotas de lágrimas lutavam no canto de seus olhos. Com a respiração cada vez mais ofegante, deixou-se levar por aquela sensação de êxtase que conhecera havia muito, da qual já quase se esquecera. Agora, mulher e animal eram um só corpo.

 

Interferência

(15/8/2004)

            Não faz muito tempo eu falava aqui da paisagem do Rio, de sua perenidade. Pois bem. É justamente toda essa beleza, e também esse sentido de eterno, que pode ser a maior tentação para o artista. Explico. Todo artista tem dentro de si a ilusão de ser um deus. Não adianta negar. Isso acontece em todas as formas de arte. Porque a arte é uma tentativa de burlar a morte, de enganar o tempo. E é também, como ato de criação, uma reprodução em miniatura da idéia que se faz de Deus. No fundo, o que o artista quer é intervir, deixar sua marca, sua pegada – permanecer.

Ora, dependendo da arte de cada um, de sua forma de expressão, isso se faz de inúmeras maneiras. Mas algumas são mais evidentes, mais gritantes. Aparecem mais. É o caso das obras de arquitetos e escultores, que quando ganham as ruas (quase sempre, no caso dos primeiros, e algumas vezes, no caso dos segundos) ficam à vista de todos nós. Por isso, a tentação de permanecer – de deixar a marca – pode ser perigosa.

O Rio, por exemplo. Em seu livro “Carnaval no fogo”, Ruy Castro conta que o respeitadíssimo arquiteto Le Corbusier, ao ver a beleza natural de nossa cidade, confessou ter-se sentido impelido “por um desejo violento, louco talvez” de disputar uma partida com a natureza. E com isso imaginou um projeto grandioso, algo que deixasse sua marca e de alguma forma suplantasse a beleza natural da cidade. Imaginou um imenso viaduto-prédio que se estenderia como gigantesca serpente pela orla do Rio, do Centro ao Leblon, por onde passariam carros e morariam nada menos que 90 mil pessoas.

E vejam que estamos falando do ano de 1929, época em que ninguém nem sonhava em falar em preservação, tudo o que havia era uma necessidade de progresso, de modernização. Já pensaram se o projeto tivesse saído do papel? Não dá arrepios?

Por isso, acho que precisamos ter muito cuidado quando a questão é a paisagem do Rio. O artista se vê tentado a aparecer, a deixar sua marca – a concorrer com a beleza da cidade. É sempre um perigo.

Aplaudo a criação dessa comissão que analisa as esculturas espalhadas pela cidade, retirando muitas que são consideradas inadequadas. Está certíssima. Não sou especialista no assunto, mas tenho de admitir que algumas das obras mencionadas ferem os olhos, não necessariamente por serem feias, mas por aparecerem demais, como se o artista tivesse cedido à tentação de concorrer com a paisagem. No Mirante do Morro Dois Irmãos, por exemplo. Poucos meses atrás, andando pela orla do Leblon, olhei para cima e em meio ao verde da encosta vi um volume branco, qualquer coisa que antes não estava lá. Era algo deslocado, excessivamente visível. Aquilo me incomodou. E só mais tarde fiquei sabendo que se tratava de uma escultura. Era portanto o típico exemplo da arte como presença gritante, quebrando uma harmonia que existia antes. Isso não pode acontecer. É uma interferência na paisagem.

Copacabana

(22/8/2004)

 

Copacabana me enganava, não engana mais. Copacabana agora me recebe, com seus múltiplos braços. E se, antes, dela eu via apenas a orla, o colar, o degradê das montanhas ao fundo, com a luz da manhã, hoje vejo muito mais.

Durante anos, estivemos distantes. Durante anos, passei apenas de carro por suas artérias principais, que me pareciam de uma sujeira visual intolerável. Do bairro que durante a minha infância era símbolo de sofisticação e cosmopolitismo, já quase nada restava. O que eu via, de um lado e outro da rua, eram muitas lojas sem charme, quase só bancos e farmácias, camelôs, um comércio degradado. Aquilo me entristecia. E eu suspirava de saudade da vaca preta no balcão do Cirandinha (que por incrível que pareça ainda existe) depois de um filme no Art Palácio ou no Metro, dos passeios pela Sloper, dos sanduíches estranhos do Gordon. E acima de tudo lembrava do coração batendo sob a roupa de domingo quando subia as escadas de veludo e cobre da Colombo, para um sorvete chique no segundo andar. Mas tudo isso, ou quase tudo, era passado enquanto eu passava apressada pela Avenida Copacabana, espremida numa das pistas da esquerda, em meio a um número infindo de táxis e ônibus que pareciam dispostos a me engolir.

Foi assim, durante muito tempo. Dissimulada, ela me enganava. Agora, não mais. Agora tudo mudou. Redescobri Copacabana.

Um dia, por causa de uma amiga que se mudara para lá, pisei seu território a pé, desarmada. Pela primeira vez em muito tempo, caminhei por uma de suas ruas internas, arborizadas, a Leopoldo Miguez – e entendi tudo o que havia esquecido.

Não saberia dizer por onde começou. Talvez pelo sorriso do porteiro, dos porteiros, todos muito íntimos, muito conhecidos, parecendo amigos de infância deles próprios e de todo mundo. Talvez por causa do mendigo da esquina, que me cumprimentou sem pedir nada. Ou pela agilidade dos senhores e senhoras, entrando e saindo do prédio a todo instante, com suas roupas esportivas. Ou mesmo por causa do chaveiro, que estava bem do outro lado da rua quando o procuramos. Onde será que tem um chaveiro? Aqui. Tudo em Copacabana é assim, está à mão, se oferecendo. Copacabana tem tudo, eu ouvia dizer quando criança. É verdade, ainda. Copacabana tem tudo. E por isso fervilha e transborda nesse seu espaço entre montanhas e mar, uma democracia anárquica, um país em miniatura do qual já quase me esquecia.

E concluí que talvez não haja nenhum lugar mais carioca do que esse. Porque Copacabana traz preservada sua alma de bairro que nasceu cosmopolita, uma deliciosa mistura de confusão e delícia que é o  próprio espírito do Rio.

Poesia e música

(29/8/2004)

 

Dizem que João Cabral de Melo Neto não gostava de música. Seu amor às palavras talvez fosse tão absoluto que não restasse lugar para mais nada. Ou talvez sua alma, educada pela pedra (imagem criada por ele próprio), fosse tomada pela secura – embora secura de indescritível beleza. “No Sertão a pedra não sabe lecionar/ e se lecionasse não ensinaria nada,/ lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ uma pedra de nascença, entranha a alma”.

No outro extremo, sei de um músico – João Donato – que não tem o menor interesse pelas palavras. Seu mundo é a melodia, o ritmo, o som, mais nada. Muitas de suas músicas, lindas, deliciosas, trazem, em vez de letra, um palavreado que nada significa mas que se harmoniza à melodia de forma perfeita.

Há uma beleza nessa radicalização, nos dois casos. Mas eu, de minha parte, não consigo imaginar a vida sem uma coisa nem outra. Vivo das palavras, delas me alimento desde criança. Lembro de quando, ainda menina, pousei pela primeira vez os dez dedos sobre o teclado preto e dourado de uma velha máquina de escrever. Nesse dia, nesse instante, tive uma forte sensação de reencontro, de reconhecimento, que levei anos para compreender. Durante muito tempo, achei que aquela sensação se devia à minha vontade de tocar piano, nunca realizada. Mas décadas depois, quando finalmente comecei a escrever, entendi que ao pousar os dez dedos sobre as teclas da máquina pela primeira vez eu estava intuindo minha razão de viver.

Mas, se vivo das palavras, por outro lado tenho a música como permanente companheira. E foi por causa dela que outro dia vivi um momento inesquecível, assistindo a um show de Durval Ferreira, esse grande compositor da bossa-nova que não é tão conhecido quanto devia (uma injustiça). Era uma noite de festa, para convidados, e o clima era caloroso, acolhedor. Mas o que primeiro me chamou a atenção foi a quantidade de músicos presentes, no palco ou na platéia. Cinco saxofones tocando ao mesmo tempo é algo de uma força impressionante. E lá pelas tantas já havia quase vinte músicos tocando juntos, todos parecendo irmanados por um sentimento de amor à música, tomados por uma alegria espontânea, rara. De repente, quando Leny Andrade subiu ao palco e começou a cantar ao lado de Durval Ferreira, reparei que os dois tinham algo em comum: uma brejeirice no olhar, um sorriso tão sapeca, que era como se fossem dois meninos se divertindo, fazendo algo proibido. E eu entendi tudo. A música os fazia – a todos ali – novamente crianças.

Foi uma festa linda. Só faltou nosso querido Juarez Araújo, com seu sax e seu sorriso. Aliás, pensando bem, não faltou não. Juarez também estava lá.
 

Os segundos

(5/9/2004)

 

Aconteceu outro dia, ainda durante os Jogos. Eu estava sozinha em casa, num fim de tarde, diante da televisão, assistindo a um jogo, não importa qual. O que importa é que perdemos. Perdemos o ouro e ficamosem segundo. Fiqueientão observando as fisionomias daquelas pessoas no pódio, o travo de tristeza que havia por trás dos sorrisos, e pensando em como a prata dói mais do que o bronze. A prata vale mais, sem dúvida. Tem todo o mérito do mundo. Mas ela é sempre recebida num momento de derrota. O bronze, não. Nas competições, o bronze é fruto de uma vitória, há sempre um jogo ou uma luta valendo o terceiro lugar. E foi nesse instante, quando eu refletia sobre isso, que aconteceu.

“Sou como eles. Sempre cheguei em segundo”.

Era uma voz, que sussurrava atrás de mim.

Fiquei imóvel. Tinha ouvido a frase com toda a nitidez, não havia engano. Mas não me virei, continuei como se paralisada. Sabia que estava sozinhaem casa. Quempoderia estar falando comigo?

“Os verdadeiros derrotados são os segundos”, insistiu a voz.

Com um arrepio, afinal virei-me – apenas para encontrar a sala vazia, o silêncio. Fechei os olhos. Não sentia medo, apenas perplexidade. Porque tinha reconhecido aquela voz.

Os segundos se passaram e nada tornou a acontecer. Afinal, lentamente, ergui-me do tapete, onde estava sentada, e fui até a estante apanhar um livro meu. Meus dedos correram suas páginas e, num instante, encontraram o trecho que procuravam:

“Meu ódio e minha mágoa me contaram que nunca serei a primeira. E tampouco a última. O último lugar é digno, símbolo de luta e persistência. A verdadeira derrota é estarem segundo. Marcadossomos todos nós – essa imensa confraria de anônimos e esquecidos – que ficamosem segundo. Algunsestiveram perto, tão perto que chegaram a arranhar a história com seus nomes. Há muitos anos eu coleciono suas vidas, numa caixa que mantenho no fundo do guarda-roupa. É a Caixa dos Derrotados. Quando abro a tampa, quase posso ver os fantasmas esvoaçando, deslizando junto às paredes, tocando-me de leve a pele do rosto.”

Lá estava, na página 27. Fora então dela mesma aquela voz. Há tempos eu não pensava naquela mulher estranha, que durante anos me acompanhara, me perseguira. Como era mesmo seu nome? Lídice. Ou Lídia, eu nunca soube ao certo. E agora ela estava novamente ali, me rondando, sussurrando coisas. Não havia dúvida de que era ela.

Mas logo dei de ombros. Os escritores são mesmo assim. Têm alucinações, ouvem vozes. Sofrem de uma espécie de esquizofrenia, quase sempre benigna. E às vezes acabam sendo assombrados pelos fantasmas que eles próprios criaram.

 

 Através do espelho

(12/9/2004)

 

A mulher postou-se diante do espelho. Era um espelho antigo, desses com a moldura de madeira fazendo volteios e vidro biseauté, que herdara da avó. Gostava dele. Colocara-o na parede da sala que ficava de frente para a janela. Assim, nele se espelhava toda a luz, toda a paisagem que durante anos se descortinara de sua janela. Para além dos prédios baixos, o espelho da Lagoa, a linha das montanhas, as matas, os paredões de pedra por onde em tempos de chuva escorriam cascatas efêmeras. E, acima de tudo, a figura solitária e querida do Cristo, em torno do qual, nos domingos de sol e céu azul, voejavam helicópteros e asas-delta como se fossem mariposas cercando uma lâmpada.

Era o que tinha a mulher diante de sua janela. E tudo isso, toda essa paisagem, penetrava em sua sala, estabelecia-se nela, através do espelho. Era como se o espelho lhe desse de presente, todos os dias, um pedaço do Rio.

Era. Tinha. Os verbos estão no passado. Por quê?

Porque diante da janela da mulher cresce agora uma construção. Brota como um cogumelo. A mulher procura não olhar, não chegar na janela, mas sente que as lajes se vão sobrepondo com uma rapidez quase inacreditável. Há os ruídos, o permanente inferno, a poeira, com os quais a mulher vem convivendo há tempos. Ela sente que eles estão cada vez mais próximos, cada vez mais presentes. Outro dia, quase sem querer, leu alguma coisa no jornal sobre a construção. Seus olhos tentaram desviar-se, mas não foi possível. Quando viu, já estava lendo. A construção teria34 metros, a altura de um prédio de onze andares. E então? E então sua paisagem está condenada.

Mas se evita chegar à janela, a mulher não pode deixar de olhar o espelho quando passa diante dele. E através do espelho a verdade lhe chega. Há cada vez menos luz. A paisagem vai sendo engolida pela mancha de concreto que cresce, inexorável. Sabe que não falta muito para o dia em que não mais verá o espelho d’água, as matas, as montanhas.

Nesse dia, no dia em que seu espelho não trouxer mais para dentro da sala a beleza da cidade – como será?

Não sabe. Não pode sequer imaginar. Mas já sente como se a escuridão fosse aos poucos tomando conta da casa, espalhando-se pelos aposentos, aderindo às paredes. Porque talvez pior do que perder a paisagem é perder a luz. A luz do Rio, essa luminosidade tão única, tão especial, que há tantos anos vinha penetrando por sua janela, fazendo parte de sua vida. Como poderá viver sem ela?

E parada diante do espelho a mulher canta, quase sem querer, uma canção de adeus.

 

Síndrome do claustro

(19/9/2004)

 

Era a primeira vez que eu entrava naquele sebo na Rua Joaquim Silva, na Lapa. Subi as escadas do velho casarão e comecei a passear por entre as estantes empoeiradas com aquela sensação de sempre – a de estar entre amigos. Não necessariamente amigos encarnados, mas sim cercada dos doces fantasmas que habitam essas livrarias. Porque, na hipótese de haver vida depois da morte, tenho certeza de que é nos sebos que a alma dos escritores vaga pela eternidade. Quase posso sentir seus espectros esvoaçando a cada velho livro aberto, tenho mesmo a impressão de ouvir o chiado de seus corpos translúcidos em contato com as estantes, as paredes.

E foi precisamente envolta nessa sensação de contato com os fantasmas dos escritores que reencontrei um deles. Num livro, é claro. Lá estava, na terceira estante, de baixo para cima. Meus olhos pousaram na lombada e reconheci de imediato o título. “O escafandro e a borboleta”. Um título um tanto estranho, devo admitir. Já o conhecia, embora não soubesse que tinha chegado a ser traduzido no Brasil. Tirei o livro da estante e comecei a folheá-lo. A primeira coisa que vi foi a foto do autor, na orelha. E foi como se seu fantasma sorrisse para mim.

Seu nome é Jean-Dominique Bauby. Um jornalista (como eu), nascido em 1952 (como eu). O livro conta sua história. Um homem comum, que trabalhava na revista “Elle” francesa e que um dia, ao ir buscar o filho na casa da ex-mulher para passar com ele o fim de semana, teve um derrame cerebral que o deixou paralisado. Mais do que isso. Deixou-o completamente paralisado, sem conseguir mover um músculo do corpo, embora continuasse consciente, lúcido. É o que alguns cientistas chamam de “Síndrome do claustro”. Uma pessoa aprisionada dentro do próprio corpo. Foi o que aconteceu com Bauby – exceto por um detalhe: ele conseguia mover um dos olhos. E foi com esse piscar de olho, com a ajuda de uma enfermeira que lhe apontava as letras do alfabeto (ele piscava na hora da letra escolhida) que Bauby pôde dar seu testemunho. E escreveu, letra por letra, piscadela por piscadela, ao longo de vários meses, seu livro “O escafandro e a borboleta”. A borboleta é seu espírito, sua mente. E o escafandro é o corpo que o mantém aprisionado.

Tinha ouvido falar de sua história, mas jamais vira o livro até tê-lo nas mãos naquele dia, no sebo. E agora olhava para a foto de Bauby, para o sorriso simpático daquele francês nascido no mesmo ano que eu, tentando imaginar por onde andaria seu fantasma. Sim, porque o livro não diz, mas eu sei (porque na época do lançamento a história saiu na imprensa): uma semana depois de terminar o livro, Bauby morreu. Sua missão estava cumprida.

A vida real é as vezes muito maior do que a ficção.

As portas de Santa

(26/9/2004)

 

Todos os anos, sempre em setembro, Santa Teresa abre suas portas. Quem quiser, pode não só passear pelas ruas, por becos e largos, mas também penetrar nos  estúdios, nos ateliês desse bairro tão artístico e tão ímpar. Sempre que posso, vou. Não só para ver as obras de arte ou espiar como trabalham os artistas, mas também para poder ver por dentro os casarões, os detalhes de suas portas, os beirais, as trancas, a fabulosa vista que se descortina das janelas.

Porque Santa Teresa é assim – um bairro cheio de segredos. Pára-se diante de um prédio de três andares, por exemplo. Bate-se à porta. Entra-se. E só então descobre-se que o prédio na verdade tem dez andares, dos quais sete estão abaixo do nível da rua, escondidos, debruçados sobre uma ribanceira. E que das janelas de seus apartamentos se avista quase todo o Rio.

Mas isso não é tudo. Mais do que segredos, Santa Teresa tem detalhes. Aqui e ali, eles vão surgindo. Um muro onde se derramam buganvílias, uma fachada de azulejos portugueses, um beiral de madeira trabalhada que mais parece renda. Pedras antigas que calçam uma ruela, por entre as quais crescem tufos de capim. Portas esculpidas, colunas, escadarias, vitrais. São delicadezas que estão por toda a parte, é só ter olhos para ver.

Acredito que os bairros – assim como as cidades e mesmo os países – têm um espírito, uma alma peculiar, que é só deles. O espírito de Santa Teresa é feito de delicadezas, de detalhes e descobertas. Por isso os artistas gostam de lá. E talvez não haja delicadeza maior do que o bonde, esse bonde tão pequeno, tão frágil em sua casca amarela, mas que, heróico, vem resistindo ao descaso e à transformação dos tempos.

Outro dia, estava eu sentada num daqueles simpáticos restaurantes que ficam ao rés da rua, perto do Largo do Guimarães, quando o bonde parou à nossa porta. Sendo ali a calçada tão estreita, as pessoas penduradas nos estribos quase podem tocar aquelas que estão nas mesas mais próximas da rua. E foi então que o motorneiro, um preto simpático, meio gordinho, enxergou um amigo que estava no restaurante. Começaram a conversar. Perguntou o que o outro estava comendo e, ouvindo que era uma caldeirada de frutos do mar, começou a falar de uma deliciosa receita de caldinho de sururu, coisa tradicional, de família. E os passageiros esperando. Não só esperando, mas também participando da conversa, dando palpites, rindo. Ali não havia lugar para mau humor, reclamação, pressa. Era o espírito de Santa Teresa em sua melhor expressão.

 

  

O bêbado e a equilibrista

(3/10/2004)

Como numa letra de Aldir Blanc, o bonde de Santa Teresa, frágil, quase etéreo, equilibra seu amarelo no fio da navalha dos Arcos e vai passando, lentamente, vencendo o aqueduto que um dia foi gigantesco e que hoje se apequena entre prédios e aberrações. Há qualquer coisa de feminino em sua aparição, como uma bailarina, uma equilibrista de circo com sua saia rodada em paetês e canutilhos amarelos, que desafiasse a altura e brincasse, solta, leve, tendo acima da cabeça as varetas de uma sombrinha.

Enquanto passa, devagar, toda a Lapa parece calar-se em reverência, como se temesse romper o equilíbrio sutil e provocar um desastre. No largo que guarda a aridez de um deserto, eu também paro – e espero.

Os minutos escorrem devagar, como o suor que me desce pela nuca, na tarde abrasadora, Rio 40 graus. Só torno a me mover muito depois, quando a muralha dos Arcos já está outra vez vazia, é só cimento e cal e curva e um céu imenso por trás. Agora, novamente, me ponho a caminho.

Atravesso a rua, a mesma rua que se bifurca e é engolida pelas arcadas centenárias, e sigo ladeando os casarões, meus pés saltando os vãos de terra de onde se soltaram as pedras portuguesas. Observo as fachadas das casas, com suas balaustradas trabalhadas, suas torres, seus gradis de floreios art-nouveau. São belas, ainda, embora quase desfeitas, maculadas por pichações (essa incrível prova da estupidez do homem!), por madeiras tapando as janelas onde os vidros se desfizeram, pela tristeza das roupas penduradas na varandas.

Passo pelas portas de mola do velho Cosmopolita e subo por uma das transversais que vão dar na Joaquim Silva. Sigo pela calçada da Flor de Coimbra e logo me vejo diante da escadaria do convento, onde Selarón ladrilhou seus sonhos e pesadelos, transformando-os em colorido, em beleza,em arte. Eé ali, junto a uma daquelas banheiras que se transformaram em jardim, que eu o vejo – o bêbado.

Sua aparência imediatamente me faz parar. Há algo de incomum em seu olhar vidrado, um olhar que parece trespassar tudo que toca. Seu rosto vermelho, tendo ao centro o nariz redondo e leguminoso, lembra a face melancólica de um palhaço. Ao ver que eu o observo, ele sorri e é um sorriso de maus dentes, que lhe repuxa o canto dos olhos úmidos. Mas apontando a escadaria ladrilhada de Selarón, ele solta uma frase de lucidez assombrosa:

– A arte é a transformação da dor.

 

Semente da memória

(10/10/2004)

 

Nasci na Rua Faro, a poucos metros do Bar Jóia, e muito antes de ir morar no Leblon o Jardim Botânico foi meu quintal. Era ali, por suas aléias de areia cor de creme, que eu caminhava todas as manhãs de mãos dadas com minha avó. Entrávamos pelo portão principal e seguíamos primeiro pela aléia imponente que vai dar no chafariz. Depois, íamos passear à beira do lago, ver as vitórias-régias, subir as escadarias de pedra, observar o relógio de sol. Mas íamos, sobretudo, catar mulungu. Mulungu é uma semente vermelha com a pontinha preta, bem pequena, menor do que um grão de ervilha. Tem a casca lisa, encerada, e em contraste com a pontinha preta seu vermelho é um vermelho vivo, tão vivo que parece quase estranho à natureza. É bonita.

Era um verdadeiro prêmio conseguir encontrar um mulungu em meio à vegetação, descobrir de repente a casca vermelha e viva cintilando por entre as lâminas de grama ou no seio úmido de uma bromélia. Lembro bem com que alegria eu me abaixava e estendia a mão para tocar o pequeno grão, que por causa da ponta preta tinha uma aparência que a mim lembrava vagamente um olho. Disse isso à minha avó e ela riu, comentando que eu era como meu pai, sempre prestava atenção nos detalhes das coisas. Acho que já nessa época eu olhava em torno com olhos mínimos.

Mas a grandeza das manhãs se media pela quantidade de mulungus que me restava na palma da mão na hora de ir para casa. Conseguia às vezes juntar um punhado, outras vezes apenas dois ou três. E é curioso que nunca tenha sabido ao certo de onde eles vinham, de que árvore ou arbusto caíam aquelas sementes vermelhas. Apenas sabíamos que surgiam no chão ou por entre as folhas e sempre numa determinada região do Jardim Botânico. Mas eu jamais seria capaz de reconhecer uma árvore de mulungu.

Um dia, procurei no dicionário e descobri que mulungu é o mesmo que corticeira e que também é conhecido pelo nome de flor-de-coral. “Árvore regular, ornamental, da família das leguminosas, originária da Amazônia e de Mato Grosso, de flores vermelhas, dispostas em racimos multifloros, sendo as sementes do fruto do tamanho de um feijão (mentira!), e vermelhas com mácula preta (isto, sim)”, dizia.

Mas há ainda um outro detalhe estranho: é que não me lembro de jamais ter visto uma dessas sementes láem casa. Dealgum modo, depois de catadas elas desapareciam e hoje me pergunto se não era minha avó que as guardava e tornava a despejá-las nas folhagens todas as manhãs, sempre que não estávamos olhando, só para que tivéssemos o prazer de encontrá-las. O fato é que não me sobrou nenhuma e elas ganharam, talvez por isso, uma aura de magia, uma natureza impalpável. Dos mulungus, só me ficou a memória – essa memória mínima.

 

 

Espelho encantado

(17/10/2004)

 

Gosto das lagoas. Gosto sobretudo de águas paradas, do cheiro de lodo que delas emana, mesmo nas lagoas mais limpas. É um odor que vem do fundo, de um sedimento que ali vive, adormecido, e que – dizem – guarda fantasmas. Talvez seja isso, esse encantamento das águas estagnadas, aquilo que me atrai.

Há pouco tempo, morreu um rapaz na Lagoa Rodrigo de Freitas. Mergulhou para pegar uns documentos que lhe haviam escorregado do bolso, subindo em seguida para respirar. Depois tornou a mergulhar – e desapareceu. Parece absurdo morrer assim, em águas mansas, rasas, de aspecto tão inofensivo. Sempre que leio uma notícia dessas fico pensando nas histórias que ouvia, quando era pequena.

Diziam que havia no fundo da Lagoa seres encantados, divindades ou sereias que usavam seus longos cabelos para enredar quem mergulhasse. De preferência, homens. Cheguei mesmo a saber de relatos de alguns que voltaram, que conseguiram escapar no último instante e que deram seu testemunho, afirmando que as águas lodosas, pesadas, quase sólidas, os tinham envolvido, segurado. Que pisavam no chão e afundavam, que a lama parecia querer tragá-los como areia movediça. E que tinham tido a impressão de se ver atados por fios compridos que talvez fossem algas – mas que pareciam cabelos de mulher.

Não sei se isso chegou a sair no jornal. O mais provável é que alguém me tenha contado essas histórias. Não importa. Com elas, compus para mim mesma a mística da Lagoa, alimentando o fascínio por suas águas vidradas, seu fundo lodoso. Essa lagoa carioca, Sacopenapã, essa Rodrigo de Freitas em cujas águas límpidas nadou o Tom menino.

Hoje, quando passo por suas margens, a pé ou de carro, quando a espio de longe, de algum lugar alto, ou mesmo quando me sento num recanto, esperando a tarde cair só para ver a solidão dos remadores rasgando a superfície espelhada, sempre penso nas iaras misteriosas que talvez habitem suas águas.

Será por isso que acho a Lagoa encantada?

Talvez. Ou talvez seja por causa de tudo que a cerca. Porque a Lagoa é o espelho mágico no qual se debruça nossa cidade, essa mulher vaidosa, curvilínea e sensual que, consciente da própria beleza, sempre sorri ao se ver refletida na água.

 

Em sonho

(24/10/2004)


A mulher se espreguiçou e, levantando-se da mesa do café, sentou no sofá para ler o jornal. Folheou-o de trás para frente, como costumam fazer as mulheres, e em poucos segundos parou – na página de ciência. A palavra “sonho” no título lhe prendera a atenção. Os cientistas tinham descoberto a região do cérebro responsável pelos sonhos. Estudando o caso de uma paciente que sofrera um derrame cerebral, constataram, espantados, que ela havia parado de sonhar. Fizeram-lhe uma ressonância magnética e viram que a área afetada era a região posterior do cérebro, através da qual assimilamos todas as emoções visuais, imagens, rostos, paisagens.

Ao ler aquilo, a mulher imediatamente soube que tinha sonhado. Sonhava muito, mas quase sempre com a característica de que, amanhecido o dia, já de nada se lembrava. Às vezes, na tentativa de fixar os sonhos, fazia anotações no meio da noite, garranchos que nem sempre conseguia decifrar no dia seguinte. E tudo isso porque os sonhos lhe deixavam apenas sensações, como se nela se imprimissem através de sentimentos, não da razão. Deles não tinha, jamais, uma lembrança lógica, linear. Guardava às vezes um susto, uma angústia, outras vezes a recordação de um gosto ou uma carícia.

Carícia, pensou a mulher mais uma vez, enquanto fechava o jornal, a palavra lhe ecoando no cérebro, batendo de uma parede a outra. Levantou-se, foi até a janela. Carícia. Uma brisa, um cheiro de mato, a maciez do pêlo de um cavalo. Uma pradaria cheia de luz.

Por onde andara naquela noite?

Aos poucos foi sentindo aumentar a estranheza. Uma sensação imprecisa, difusa – que a levou como sonâmbula até o quarto, à mesa de cabeceira, ao papel dobrado que havia sobre ela.

Então, sim – sonhara. E, sonhando, escrevera. Com a mão trêmula (pois tinha a impressão de que o papel lhe traria uma revelação), desdobrou-o. E leu:

“Um rei medieval, sobre os ombros largos o peso de malhas de ferro, de armaduras, de mantos de veludo debruado em arminho, o peso de todo um reinado, de incontáveis batalhas. O perfil de guerreiro Cruzado, nas mãos a bandeira sagrada, as mesmas mãos que erguem a lança e seguram as rédeas, mãos reais, de alvura e perfeição, ricas de anéis.”

E, o papel pressionado contra o peito, a mulher se deixou cair para trás na cama, sorrindo. Não sabia onde estivera, que reinos percorrera, mas de uma coisa tinha certeza: ao menos em sonho, se apaixonara.

 

No meio da rua

(31/10/2004)

 

Era um homem comum, caminhando num dia comum. Um começo de tarde no Centro da cidade, de céu acinzentado como os prédios. Nada era excessivo, nem mesmo o calor. A hora do almoço acabava e as pessoas voltavam para seus escritórios, muitas delas de vista baixa, os olhos grudados nas pedras da calçada, no meio-fio, no asfalto. E foi por isso, por causa daquela tarde tão banal, que ninguém reparou no homem.

Mas lá estava ele, na ponta da calçada, esperando o sinal abrir. Parecia concentrado, os olhos fixos à frente, imóvel, as mãos caídas junto ao corpo, uma delas segurando com força a pasta de couro preto. Escuro era também o terno que usava, de um modelo um pouco antiquado. Mas os sapatos estavam muito limpos, lustrosos, como se ele tivesse acabado de se levantar de uma daquelas cadeiras de engraxate que são tão comuns no Centro da cidade. Sim, lá estava ele. E se continuava imóvel, com o olhar parado, seus lábios, ao contrário, se moviam. Era um movimento mínimo, quase imperceptível, como se rezasse ou contasse em voz baixa o número de segundos que se passavam, à espera de que o sinal abrisse.

À sua frente, do outro lado da rua, a sinalização feita para os pedestres exibia uma diminuta mão, de um vermelho desbotado, querendo dizer “Pare”. Logo o sinal ficaria vermelho para os carros e aquela mão se transformaria num homenzinho verde, caminhando, o que significaria “Siga”. Ao lado do homem, muitas pessoas esperavam. E também do outro lado da rua. Na verdade não era rua, mas uma avenida larga, histórica, a principal artéria da cidade. De um lado e outro, as pessoas esperavam, as vidas suspensas, os olhares perdidos, uma ou outra conversando entre si, mas quase todas sozinhas. E o homem, aquele homem comum, mais sozinho do que todas.

E então o sinal abriu. As duas massas de pessoas, de cada uma das calçadas, avançou. O homem também. Deu um primeiro passo, depois outro, a sola de seus sapatos lustrosos tocando o asfalto. Caminhou. Mas se no início pareceu andar no mesmo ritmo de seus companheiros de calçada, logo foi diminuindo o passo. Aquela lentidão inesperada provocou um pequeno tumulto atrás dele. O fluxo de pessoas, nos dois sentidos, foi aos poucos se abrindo e contornando o homem, cujos passos estavam mais e mais lentos. Andava como se algo o retivesse, como se uma corda invisível o puxasse para trás.

E de repente parou.

Em plena rua, no meio do asfalto, um estorvo para quem tentava atravessar a avenida. Parou e ficou imóvel. Agora, nem mesmo os lábios se mexiam. Alguma coisa dentro dele se partira, havia uma peça deslocada. Dentro de poucos segundos, o sinal ia abrir. E o homem ali – fechado para balanço.

 

 

Folhas na água

(7/11/2004)

            A mulher ia passando pela ponte sobre o canal quando, de repente, parou, sem qualquer motivo. Era um dia cinzento, abafado, um dia de primavera mas de céu quase plúmbeo. Não havia no ar aquela leveza tão característica dessa época no Rio, cidade onde os intervalos que separam inverno e verão são sempre marcados por um ar fino e limpo, através do qual enxergamos até as silhuetas das árvores no topo das montanhas. Naquela tarde, não. Naquela tarde, embora primavera, a atmosfera pesava, ainda sob o efeito de uma ventania matinal que vergara as palmeiras e desfolhara as árvores.

Talvez tenha sido por isso que a mulher parou. A tarde abafada a deixara sem fôlego, enquanto atravessava a pé aqueles poucos quarteirões. Parou e se recostou na amurada por um instante, ofegante. Olhou para cima e reparou que por entre as folhagens o céu cinzento escurecera ainda mais, ameaçando chuva. Depois, baixando a vista, observou as folhas que, na certa arrancadas pelo vento da manhã, flutuavam na água. Encostou-se mais à amurada, debruçou-se. E olhando para o leito do canal deu com a própria imagem lá embaixo.

Num segundo, ficou como hipnotizada. Isso já lhe acontecera antes. Quando se olhava num espelho sem querer ou via por acaso a própria imagem refletida num vidro, numa vitrine, sentia-se invadir por uma estranheza. Era o que acontecia agora. Sua projeção na água lhe dava de repente a impressão de ser alguém duplo, fragmentado.

Fechou os olhos, deixou que a sensação viesse por inteiro. Estava ali, mas ao mesmo tempo não estava. Sentia nas mãos o cimento do parapeito, mas parte de seu eu ganhara vida própria e, sozinha, se deslocava. Mergulhara no canal e, junto com as folhas, descia agora por seu leito, boiando, em abandono.

Não durou mais do que alguns segundos. Quando o momento passou, a mulher abriu os olhos e, já recomposta, afastou-se da amurada. Deu um último olhar para as árvores desfolhadas e recomeçou a caminhar. Ainda que apenas por um instante, vivera a sensação de ser uma folha flutuando no canal. Mas não estava impressionada, isso já lhe acontecera antes. E afinal, pensou, não somos todos um pouco assim? Nesta vida maluca, cujo sentido nos escapa, somos talvez isto mesmo – como folhas na água.

 

Estante mutante

(14/11/2004)

 

As estantes são mutáveis, não estanques. Nunca imóveis, estáveis. As estantes são mutantes.

As frases surgiram na cabeça da mulher desse jeito, com uma certa cadência, e ela riu, pensando: “Fiz um versinho”. Era o que sua filha dizia quando era pequena, toda vez que sem querer fazia uma rima. A mulher estava deitada no sofá, enroscada com o gato preto e branco de olhos chineses, observando o marido à sua frente. E ele arrumava a estante da sala.

Era enorme, a estante, com uns bons cinco metros de comprimento, tomando a parede toda. Ali, ele guardava seus livros mais queridos. Era a centésima vez que a arrumava. Ou melhor, não deixava nunca de fazer isso. Volta e meia, passava em frente à estante, olhava para ela – e achava que alguma coisa não estava onde deveria estar. Subia então na escadinha de dois degraus e começava a trocar livros de lugar. Agrupava-os por assunto, mas como vivia comprando novos volumes eles precisavam ser constantemente rearrumados. Além disso, havia sempre o problema das diferentes alturas dos livros, que às vezes teimavam em não caber numa determinada prateleira para a qual estavam destinados.   No início, a mulher ainda se dera ao trabalho de colocar na estante uns poucos enfeites, uma caixinha antiga, um tinteiro, um porta-retratos, dispostos num ou noutro espaço que sobrava entre os livros. Mas foraem vão. Logo, os espaços tinham desaparecido, tragados pelos novos livros que não paravam nunca de chegar. E os pobres enfeites, a caixinha, o porta-retratos, foram sendo deslocados, espremidos – até finalmente serem expurgados das prateleiras.

Estante é para livro, não para enfeite, argumentava o marido. A mulher voltou a sorrir, lembrando da frase. Ele tinha razão. No fundo, ela até gostava de apreciar aquelas prateleiras lotadas, com livros antigos, de lombadas gastas, livros manuseados, lidos. Livros que não estavam ali só para enfeitar. E gostava também de acompanhar aquelas mutações. Com isso, a estante lhe parecia um ser vivo, inquieto, que a cada dia apresentava uma novidade e diante do qual ela jamais se entediava. Talvez por isso a encarasse com tanta ternura. Ou talvez fosse por causa do marido. Era comovente ver a dedicação dele aos livros, a maneira como os tocava, com reverência e cuidado, o tempo que dedicava à restauração dos mais antigos, compradosem sebos. Elesempre fora assim. Fora ele, pensou a mulher, que lhe ensinara a ter um amor especial pelos livros. Como se fossem, assim como a estante, seres vivos. Como se tivessem alma.

E quem disse que os livros não têm alma?

 

 

Jornada noturna

(21/11/2004)

 

 

Outro dia, numa noite de temporal, voltei ao lugar onde nasci.

Era madrugada e o céu, até pouco antes muito escuro, se acinzentava com uma rapidez espantosa. Eu estava sozinha, mas não tive medo. Subindo a rua inclinada, de paralelepípedos, dei com o pequeno prédio, de dois andares, a fachada branca e as duas janelas frontais do segundo andar, fechadas, escuras, dando-lhe a aparência de um rosto pálido de olhos mortos. Na luz do fim de noite, parei diante do muro baixo e em seguida, dando um passo, toquei no portão de ferro, que se abriu. Cruzando a passarela que ia dar na porta principal – e ainda sem qualquer temor – entrei. Percorri o longo corredor da entrada e comecei a galgar as escadas, tateando na penumbra. Sentia os degraus sob os pés, agarrava o corrimão de pedra, mas quase nada enxergava. E só então um movimento mais brusco das cortinas, provocado pelo vento, me trouxe de volta.

Acordei assim, devagar, sem susto. Suavemente. Mas de tal forma impregnada do sonho que me sentei para escrever, anotar o que sentira. “Os sonhos têm carnadura própria. São por vezes enganosos, excessivamente reais. Formados por um tecido espesso, que cega e engana, rompem as linhas delicadas que nos mantém lúcidos. Somos todos loucos quando sonhamos”.

E acabei pensando no livro A louca da casa, de Rosa Montero. Nele, ela descreve o instante em que, parada num sinal de trânsito, olha casualmente para o lado e dá com o letreiro de um asilo de loucos. Num segundo, sua mente abandona o corpo e abre o portão do sanatório. Começa a subir a escadaria devagar, em pânico, pois sabe por que está ali – sabe que enlouqueceu. No segundo seguinte, o sinal abre e o momento se desfaz. Mas por um longo e pavoroso instante, ela viveu a sensação de ser uma mulher que subia a escada de um asilo de loucos para se internar. “Agora vivi isso, e se algum dia tiver que descrever num livro, saberei fazê-lo, porque uma parte de mim esteve lá e talvez ainda esteja”.

Percebi então a semelhança que havia entre minha jornada e a dela, seu caminho imaginário pela escadaria do asilo e minha visita noturna ao lugar onde nasci, à penumbra daqueles corredores, à escada onde nunca mais pisei. Sonhar é assim, é percorrer caminhos que já não existem ou que nunca existirão, viver a vida e as sensações de pessoas que não somos, que nunca seremos. E escrever também. Ambos são, um pouco, como enlouquecer.

 

 

22 rubis

(28/11/2004)

 

Era muito detalhista, o homem. Dessas pessoas que prestam atenção em coisas que ninguém mais repara. Gostava de ficar observando os erros de continuísmo no cinema, tinha paixão por coisas do tipo Jogo dos Sete Erros. Folheava as revistas com olhos tão críticos e rastreadores que reparava até na hora dos relógios nos anúncios. E tinha descoberto que eles sempre marcam dez e dez. Sempre. Uma ou outra vez, marcam dez para as duas, mas isto já é raro. E mais difícil ainda é ver um relógio de anúncio marcando outros horários.

Agora, o homem folheava uma revista que tinha um encarte especial só com anúncios de relógios. Fez a festa. Deu-se inclusive ao trabalho de contar: foram 43 anúncios de relógios marcando dez e dez, contra apenas 18 marcando horários diferentes (estranhamente, nenhum marcava duas e dez naquela revista). Quando terminou a contagem, suspirou, satisfeito. Orgulhava-se de ter confirmado sua teoria.

Ele era assim. Aliás, talvez por isso, por ser detalhista, é que gostava tanto de relógios. Não só de seus anúncios, mas de relógios propriamente ditos. Uma vez, quando criança, tinha tirado um relógio da mãe de um porta-jóias e aberto o fundo para saber como era por dentro. Ficara encantado em ver todas aquelas pequenas engrenagens funcionando, salpicadas por pedrinhas minúsculas, que mais tarde ele iria saber serem rubis. O relógio da mãe tinha 22 rubis. Os relógios de antigamente tinham pedras preciosas nas engrenagens. Para quê? Isto, o homem nunca chegara a descobrir.

Hoje os relógios na certa já não têm rubis, pensou com desgosto. Agora os relógios nem fazem mais tique-taque. Alguns fazem só tique, outros taque, outros nem isso. Uma pena, mesmo.

Fechou a revista e, ainda pensativo, levantou-se. Depois de se aposentar tinha ficado assim meio melancólico, principalmente quando a noite caía. Tinha uma saudade dos velhos tempos, que sua mente detalhista ajudava a recordar em minúcias cruéis. Decidiu espairecer um pouco, foi até a janela.

Dali olhou o trânsito lá fora, pesado àquela hora da noite. Na rua que se estendia à sua frente, fazendo uma curva, as luzes traseiras dos carros enfileirados brilhavam. E o homem tornou a pensar no relógio, nos 22 rubis. Aqueles pontos vermelhos que cintilavam na rua eram também parte de uma engrenagem, a engrenagem dos que voltam para casa depois de um dia de trabalho. E ele sentiu de repente uma saudade imensa, quase intolerável, sem saber de quê.

 

 

 

Passos no corredor

(5/12/2004)

 

Era já bem tarde quando eles chegaram. A mulher foi abrir a porta e sorriu ao dar com o casal de amigos. Estava à espera deles. Moravam no interior e uma ou duas vezes por ano vinham com os dois filhos passar uns dias em sua casa, para aproveitar a praia. Mas se surpreendeu ao ver como tinham o ar cansado. Mais do que isso – pareciam destruídos. Cada um, marido e mulher, segurava uma criança adormecida nos braços, embora os meninos já fossem bem crescidos (tinham 5 e 7 anos).

A amiga foi logo explicando por que estavam daquele jeito. Um dos meninos, o menor, viera fazendo bagunça no carro o tempo todo, uma coisa exaustiva. Fora uma viagem infernal. Até que afinal ambos tinham adormecido.

Enquanto contava isso, a amiga se inclinou e, com cuidado, depôs o menino que carregava – o mais novo, justamente o tal levado – no sofá. O marido fez o mesmo com o outro, também cuidadosamente. Temiam que se eles acordassem nunca mais tornassem a dormir. A amiga continuava falando:

“Nunca vi coisa igual. Às vezes acho que esse menino… sei lá, é meu filho, nem devia dizer isso. Mas às vezes ele fica assim. Parece que está possuído.”

A dona da casa deu risada. Era uma mulher cética, ao contrário da amiga, sempre dada a essas imaginações.

Deixaram as crianças dormindo na sala e foram até a cozinha tomar um café. Pouco depois, a dona da casa deixou o casal amigo na mesa da cozinha e foi até o quarto pegar uns hedredons, pois tinham decidido que o melhor mesmo era deixar as crianças dormirem na sala, para não correr riscos.

Depois de tirar os hedredons do armário, a mulher voltava pelo corredor comprido. Dobrados, os dois hedredons formavam um volume tão grande que com eles nos braços ela mal enxergava o que havia à sua frente. Foi quando ouviu o som de passos vindo da sala em sua direção. Parou. Passos infantis, corridos. Ouviu-os com clareza. Teve mesmo a impressão de sentir o deslocamento de ar quando cruzaram com ela no meio do corredor. Gritou imediatamente para a amiga, que continuava na cozinha:

“As crianças acordaram!”

Mas a amiga não respondeu. E a dona da casa, ainda atrapalhada com os dois hedredons na mão, chegou à sala. Chegou e viu os meninos. Dormiam a sono solto, como dois anjos – os dois. E os pais conversando na cozinha. A mulher virou-se, olhou o corredor vazio e, sentindo ainda o eco daqueles passos imateriais, deu de ombros.

Há coisas que é melhor nem tentar explicar.

 

Cheiro de cerveja

(12/12/2004)

            O homem entrou em silêncio e fechou a porta atrás de si. Seu coração batia como louco, atiçado pela noite. Eram duas da manhã. Na sala escura, deu um primeiro passo, mas alguma coisa rangeu alto e ele parou. Fora talvez seu sapato, no contato com as tábuas enceradas, mas o ruído lhe parecera um grito, como a noite sendo violentada. Por um instante ficou ali, imóvel, sem saber o que fazer, até afinal decidir-se a tirar os sapatos. Foi o que fez.

Deu os primeiros passos com os sapatos na mão, sentindo-se ridículo por viver aquele clichê, o homem casado chegando tarde em casa e entrando pé ante pé para não acordar a mulher. Teve vontade de rir alto. Sabia que não era nada disso. Apenas não queria acordá-la, ainda – só no momento exato.

Seguiu, o coração saltando cada vez mais, à medida que enveredava pelo corredor e se aproximava da porta do quarto. Entre as paredes que se estreitavam naquele ponto, sentiu com nitidez os próprios cheiros, uma mistura de suor e cerveja, sobretudo cerveja, aquele odor macerado, gasto, que faz pensar em noites acabadas, em madrugada e dissipação.

Quando afinal chegou à porta do quarto, depôs os sapatos no chão, junto ao portal, e tirou a camisa. Depois foi até a janela e, enquanto caminhava, sentiu como se o ar escuro raspasse em seu corpo. Lentamente, correu as cortinas de brim, torcendo para que não gemessem nos trilhos. Precisava da claridade da noite, da luz incerta dos anúncios luminosos que pulsavam lá fora, vermelhos. Queria ver o rosto dela quando chegasse a hora.

E só então caminhou em direção à cama.

Atirou-se sobre ela sem rodeios. Foi todo braços, pernas, membros ardentes que se fecharam e apertaram, foi boca e língua e saliva – e foi sobretudo cheiros. Cheiro de cerveja. Entre um beijo e outro, entreabriu os olhos e percebeu que a mulher sorria. Ela sentira o cheiro e compreendera tudo. Estava acontecendo outra vez. Por isso, o sorriso.

Ela sabia.

Sabia que o teria agora como nunca, que ele se entregaria à dissipação e à loucura todas as noites, mas que de madrugada voltaria e se daria a ela com paixão maior – por uma razão simples, que ambos já conheciam, pois acontecera antes.

Ele estava apaixonado por outra mulher.

 

 

A feira sumiu

(19/12/2004)

 

Ela gostava de rituais, de festas. E, dentre todas, sua predileta era o Natal. E o Natal incluindo tudo: a confusão nas ruas, o trânsito engarrafado, as lojas cheias, as festas no trabalho e na academia, a bobagem do amigo oculto. Tudo. Não discriminava nada. Se era para celebrar, que fosse de forma completa – e tradicional. Fazia dieta durante dois meses para comer todas aquelas comidas maravilhosas. Comprava folhas de papel celofane colorido e fitas para embrulhar os presentes. Armava árvore de Natal com pinheiro de verdade e só bolas vermelhas. Deixava para comprar os presentes na última hora porque achava que “assim é que tinha graça”. Seus amigos diziam que ela era maluca. Não entendiam que para ela todo o burburinho de fim de ano era parte do ritual. E ela, como já dissemos, gostava de rituais.

Já no primeiro dia de dezembro, abria a janela do apartamento onde morava e respirava fundo. A mudança era claramente perceptível. Bastava entrar dezembro e o ar se modificava, parecia pejado de uma eletricidade estranha, que incluía novos sons e cheiros. Calor úmido, um aroma de frutas, vozes várias oitavas acima do normal, buzinas. Ah, ela adorava tudo isto. Maluca, insistiam os amigos. Ela dava de ombros, achava graça. “Sou mesmo”.

Embora gostasse de deixar as compras para a última hora, havia coisas que fazia logo no início do mês. Por exemplo, listas. Adorava listas. Fazia uma só de presentes, outra só de “coisas a fazer” e uma terceira com os ingredientes para a ceia de Natal. A outra coisa que gostava de fazer desde os primeiros dias de dezembro era caminhar pelas ruas para olhar as lojas (só olhar, comprar depois). E nessas caminhadas – quase sempre por Ipanema – havia também algo que era parte de seu ritual natalino: passear pelas barraquinhas da feira de livros, na Praça Nossa Senhora da Paz.

Foi o que saiu de casa para fazer, logo na primeira semana de dezembro. Mas chegando na praça tomou um susto. Ela, tão tradicionalista, tão acostumada a cumprir a mesma rotina de Natal todos os anos, se viu de repente diante de algo novo: a praça vazia. Vazia de livros, pois plantas e gente e carros, tudo o mais havia. Menos livros. A feirinha, sua querida feirinha de livros que sempre se armava ali em dezembro – tinha desaparecido. Indagou daqui e dali e soube, vagamente, que a empresa que cuidava da praça, um banco, tinha decidido não deixar armar a feira, acabando com uma tradição de 30 anos ou mais. Ninguém sabia explicar direito por quê.

E a mulher que amava os rituais voltou para casa triste, com a sensação de que perdera alguma coisa neste Natal. Pior: com a certeza de que em nosso país o livro nunca é prioridade.

 

Gato e sapato

(26/12/2004)

 

Tenho pensado muito nele, nesse meu amigo. Certas pessoas são assim, muito tempo depois de mortas, continuam conosco, nos fazem companhia. É o que acontece com esse meu amigo. Olho para algum objeto, ouço uma música – e imediatamente penso nele. É quase como se estivéssemos juntos outra vez, dando risada. Porque dávamos muitas risadas. Ele era muito, muito engraçado. E era também uma pessoa sutil, de uma delicadeza rara. Talvez por isso os gatos gostassem dele.

Todas as vezes em que ele ia em minha casa, a primeira coisa que fazia era tirar os sapatos para que minha gata se deitasse neles. Não sei se eram sempre os mesmos sapatos (provavelmente não), mas o fato é que minha gata era apaixonada pelos sapatos dele. Isso não acontecia com mais ninguém, só com esse meu amigo. Assim que ele entrava lá em casa e botava os sapatos a um canto, a gata se chegava, cheirava-os, depois começava a se esfregar e terminava por dormir abraçada com eles. Nós dávamos risada. Nós sempre ríamos muito.

Talvez a gata percebesse através de seus sapatos a delicadeza que havia em meu amigo, essa sutileza de que já falei. Meu amigo tinha uma suavidade de gestos que os gatos sempre apreciam. Os gatos gostam de pessoas que falam baixo. Gostam de pessoas caladas, calmas. Os gatos são, eles próprios, extremamente sutis.

Por exemplo: vocês não vão acreditar, mas eu tenho outra gata (esta, mora no meu escritório) que adora João Gilberto. Eu própria custei a crer, no começo. Estava um dia sentada no computador, trabalhando, e botei para tocar um disco do João, aquele gravadoem Tóquio. Agatinha veio, subiu no balcão onde fica o computador e ficou imóvel, prestando uma atenção enorme. Achei engraçado, mas não liguei. Aí, no dia seguinte, aconteceu de novo. E de novo. Toda vez que eu botava um disco dele para tocar, ela vinha para perto das caixas de som e ficava sentada, paradinha, ouvindo. Até que não tive mais dúvida e concluí: minha gata gosta de João Gilberto.

Mas eu sei por quê. É pela mesma razão que a outra gata se sentia atraída pelos sapatos do meu amigo. É por causa da delicadeza.

Delicadeza, vocês lembram? Isso que anda tão em falta em nosso mundo, este mundo de cantores que cantam xingando, de baixarias expostas na televisão como postas de carne no açougue, de jornais que estampam corpos mutilados em suas páginas para nos fazer companhia no café da manhã.

Ainda bem que existem os gatos e o João. E ainda bem que, apesar de tudo, a delicadeza insiste em sobreviver dentro de nós.