A mulher tirou da estante o livro velho, de lombada gasta, e com ele nas mãos foi se sentar em um tamborete vermelho, que contrastava com o chão de ladrilho hidráulico, preto e branco. Ela estava em um sebo de livros no Catete, escondida num canto da casa onde ninguém podia vê-la, lá atrás. Havia no ar um cheiro de mofo e umidade, mas isso ela achava bom. Estar entre livros velhos, em um recanto sombrio e silencioso como aquele, dava-lhe sempre uma sensação de acolhimento. Estava entre os seus – embora, é claro, cercada de fantasmas.

As livrarias antigas, os sebos e bibliotecas, são sempre lugares assombrados. Mas bem assombrados. Há presenças ali, disso não se pode duvidar. Embora sempre presenças benignas. Não há nada a temer, pensou a mulher. Nesse mesmo instante ouviu um som atrás de si. Isso sempre acontece. Virou-se devagar. Era uma gata cinza, de olhos azuis, com uma pinta de formato estranho no nariz. Observou a mulher com seus olhinhos vesgos e depois desapareceu por trás de uma pilha de livros. Fantasmas.

A mulher sorriu. No fundo, sabia que sua inquietação não vinha de coisas simples como fantasmas. Vinha de percepções mais amplas, indagações profundas, perguntas que a perseguiam desde pequena, e que, às vezes, ardiam no peito. Havia dias em que acordava assim – e hoje era um deles. Não tinha jeito. Ia carregar, pela tarde e pela noite, o tempo todo, aquela sensação colada na alma.

Baixou os olhos e observou o livro que acabara de retirar da estante. O cego de Ipanema. Paulo Mendes Campos. O sol amarelo no alto da capa, contrastando com a parte de baixo, toda preta. Luz e escuridão. Infinito. Perguntas. Talvez naquele livro encontrasse, se não respostas, ao menos alívio, uma digressão qualquer que a ajudasse a fugir de suas inquietações tão antigas. Foi o que pensou. Mas estava enganada.

Abriu o exemplar ao acaso, sem escolher a página (como gostava de fazer), e deu com o parágrafo final do conto-título. Leu:

“O cego de Ipanema representava naquele momento todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A poesia se servia dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam na turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado como qualquer um de nós. A agressividade que lhe empresta segurança desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com o seu sol opaco e furioso. Naquele instante ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, a bengala espetava o chão, evitando a queda. Voltava assustado à certeza da parede, para recomeçar momentos depois a tentativa desesperadora de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no caos.”

 

 

 

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