No início, era por causa do papel picado. Achávamos uma beleza aquele céu de verão que aparecia por entre os prédios, cheio de pedacinhos de papel esvoaçando, e também o chão coalhado de branco, numa espécie de Carnaval purificado. Havia uma beleza quase triste naquela chuva de papel fora de validade. Era uma beleza de fim, de despedida. De adeus — mas, ainda assim, uma beleza.

Por isso, para ver a chuva de papel, íamos à Cidade todo último dia útil do ano, 30 de dezembro. E aproveitávamos para visitar sebos e livrarias do Centro. Mas — coisa curiosa — sempre nos atínhamos a um dos lados da avenida Rio Branco, a região que chamamos de Margem Direita, ou Rive Droite (o lado do Theatro Municipal, porque a numeração começa na Praça Mauá). Por que escolhíamos essa região? Não sei. Talvez porque já frequentássemos o outro lado o ano inteiro: é na Rive Gauche da Rio Branco que ficam os principais museus e centros culturais, as rodas de samba, a feira de antiguidade da Praça Quinze, a Toca do Baiacu, o Antigamente, o Villarino. A Al-Farabi, a Berinjela. E, claro, nossa querida Folha Seca.

Então, no passeio de fim do ano, íamos sempre pelo outro lado. Começávamos pelo fim da avenida, pela Cinelândia, enveredando pelas transversais até chegar à Avenida Passos, depois voltando até a Miguel Couto e seguindo em direção à Praça Mauá. Tudo para terminar em um lugar que, junto com o papel picado, sempre foi o objetivo central de nosso passeio de fim de ano: o sebo e livraria Elizart, na avenida Marechal Floriano. Porque lá encontrávamos nosso amigo Manel, um dos donos do lugar. E era sempre uma alegria. Manel era uma daquelas pessoas especiais, de uma gentileza tocante, de uma delicadeza rara em nosso mundo tão brutal. E, como já estávamos ali ao lado, terminávamos o passeio almoçando no Paladino, a poucos metros da Elizart.

Durante muitos anos, repetimos esse ritual. Mas, com o passar do tempo, a chuva de papel foi rareando, rareando — até desaparecer por completo. Ninguém mais joga papel picado da janela no último dia do ano. Ficou fora de moda. É politicamente incorreto. Papel é precioso, precisa ser reaproveitado ao máximo. Além disso, sujar o chão da cidade dá multa. Não se deve fazer.

Que era bonito, era. Mas paciência. Acabou. E, nesse meio tempo, nosso amigo Manel também se foi, um dia.

Mas nós não desanimamos. Continuamos fazendo nosso ritual do último dia de dezembro. Sempre pela Margem Direita, sempre entre sebos e livrarias, sempre terminando na Marechal Floriano. Às vezes, ficamos sem coragem de entrar na Elizart. Mas pelo menos ao Paladino, ali do lado, não deixamos de ir. E pensamos em nosso amigo. Hoje é assim, Manel. Nosso passeio de fim de ano tem um gostinho de adeus, de despedida. Nosso papel picado é você.

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