AMARÉCOMPLEXO. Em letras maiúsculas, era o que dizia a faixa, estendida acima do muro colorido. Amar é complexo. A Maré Complexo. Pois bem, lá estava eu: domingo, fim de tarde, chuvinha fina e, enquanto Flamengo e Vasco disputavam o título do Campeonato Carioca, eu chegava à Penha Circular. Soube que ali pertinho havia uma sede da UPP, mas não vi polícia, nem carros blindados, nem armas – nada. Os únicos tiros que ouvi foram os estampidos dos foguetes na hora do gol do Vasco e, depois, no que daria o campeonato ao Flamengo.

Estava na Penha, mais exatamente na Arena Dicró, para a apresentação da minha peça, “O lugar escuro”, sobre a doença de Alzheimer. No final da peça, o texto fala sobre a esperança de encontrar um pouco de luz na escuridão, lembrando que, no 11 de setembro, nos subterrâneos das Torres Gêmeas, os bombeiros descobriram uma vitrine cheia de copos de cristal – intactos. Pois era exatamente nisso que eu pensava ao chegar ali, àquele espaço de cultura criado pela Prefeitura. Um lugar de luz. Naquele ponto da Penha, cercado de comunidades com tantos problemas, tanta violência e tanta pobreza, a Arena Dicró é uma beleza de espaço, limpa, colorida e bem cuidada, um teatro com todos os equipamentos funcionando à perfeição, camarins, arquibancadas, ar condicionado, sistema de som, varas de luz. Do lado de fora, no pátio, há um lugar para crianças brincarem, espreguiçadeiras, jardins. E um restaurante de mesinhas cobertas de chita, com bancos de madeira tosca e luminárias feitas com ralos de cozinha, onde também funciona uma pequena biblioteca. Dali a pouco, o público começou a chegar, mais de cinquenta pessoas. Um público atento, que se emocionou em silêncio, muito diferente das mais de 400 pessoas – das quais 300 eram jovens estudantes – que na semana passada se amontoaram na Lona Elza Osborne, em Campo Grande, outro lugar fantástico.

“O lugar escuro” está há algumas semanas fazendo o roteiro das arenas e lonas culturais do Rio e tem sido, para todos nós da equipe da peça, uma experiência e tanto, que inclui coisas boas e ruins. Há as falhas de gestão, os espaços mal cuidados, mal aproveitados, muitas vezes quase vazios. Há as lonas mal localizadas, cercadas por ruas barulhentas, onde carros de som anunciando produtos obrigam os atores a interromper o texto. Há a visão desanimadora dos subúrbios favelizados, quilômetros e quilômetros de comunidades enchendo o horizonte de um lado a outro, até perder de vista. Há os valões imundos e as carcaças de carros abandonadas que vemos pelo caminho. E há o trânsito. O trânsito que para nós era uma noite, duas noites, mas que para milhões de pessoas é uma realidade diária, na ida e na volta do trabalho. Numa noite de temporal, a van com nossa equipe levou duas horas e meia para chegar à Pavuna; três horas e quinze para chegar a Campo Grande. Como falar em mobilidade urbana numa cidade assim?

Mas, apesar de todas as dificuldades, a simples existência dessas arenas e lonas nos deixa repletos de uma esperança feliz. Não só pelos espaços, mas também pela beleza que é a participação do público. As crianças de menos de dez anos que assistiram à peça em silêncio e entenderam tudo (a peça é para maiores de 12 anos); as pessoas que me abraçaram chorando depois da peça, contando que tinham visto suas vidas no palco; o jovem que me apertou a mão e disse que estava indo ao teatro pela primeira vez. Tudo isso é um começo, e um começo imenso. São pontos de luz.

Texto meu publicado na página de Opinião do jornal “O Globo”, em 16/04/2014 

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