CONTOS MÍNIMOS
2005
No meio da noite
(13/2/2005)
Talvez tenha sido culpa do carnaval.
A verdade é que ela acordara sentindo uma ânsia estranha, uma inquietação. Ainda ouvia, pelas ruas, os últimos ecos dos blocos, do desfile – ou talvez fosse impressão, talvez escutasse apenas os murmúrios comuns da madrugada. Mas não podia dormir. Levantou-se e caminhou até a janela. Na cama, o sono do marido parecia profundo.
A mulher correu devagar a cortina de pano encorpado, deixando apenas a de voile, que filtrava a claridade da noite. E, por uma fresta, espiou lá fora.
O asfalto da rua estava úmido. Chuva ou sereno, difícil saber. Mas havia uma umidade morna, que subia do chãoem golfadas. Eno céu havia lua, a mulher tinha certeza. Não podia vê-la – o céu de verão fora tomado por nuvens espessas, compactas –, mas sabia que a lua estava lá. Sentiu um arrepio. Há algo de sobrenatural nessas paisagens noturnas em que nuvens escondem a lua. A claridade filtrada projeta sobre a vegetação uma luz estranha, que parece feita da mesma substância etérea e fugidia dos fantasmas.
De repente, a mulher percebeu um murmúrio qualquer sob as amendoeiras. E logo viu surgir por entre as folhas a figura de uma mulher fantasiada de cigana. Da janela, não podia ver-lhe o rosto, mas ficou prestando atenção naquela figura que, solitária, era como a representação do carnaval acabado. Tinha um pano vermelho amarrado nos cabelos e uma saia colorida, feita de tiras transparentes, com moedas ou guizos que tilintavam enquanto ela andava. Ao chegar na encruzilhada, a cigana abaixou-se e tocou o chão com a ponta dos dedos. E em seguida, soltando uma gargalhada, dobrou a esquina e desapareceu.
Da janela, a mulher continuou olhando a rua, enquanto a sensação em seu peito crescia. Sentia os joelhos frouxos, as pernas liquefeitas, calor e frio. Virou-se. Teve a impressão de que a respiração do marido, antes regular, denotando sono, agora sofrera uma modificação. Qualquer coisa em seu padrão mudara, talvez ela o tivesse acordado. Chamou seu nome, baixinho. O marido respondeu. Então de fato o acordara. Caminhou de volta e sentou-se na beirada da cama, pensando em se desculpar, mas sem saber bem o que dizer. E foi quando o marido falou, a voz rouca:
– Estava linda, sua silhueta, contra a cortina fina.
A mulher estremeceu.
O silêncio que se seguiu pareceu reverberar no quarto, como um eco.
E, longos segundos depois, quando ele a puxou para si, a mulher compreendeu que o que sentia era desejo, um desejo louco, desenfreado. Um desejo de carnaval.
Big bang
(20/2/2005)
Como descrever? Aconteceu de repente. Muitas coisas acontecem de repente em nossas vidas, mas aquilo foi tão súbito que ela ficou parada por alguns segundos, sem acreditar, só sentindo, sentindo.
Era um dia comum, como comuns são os dias, nossos dias, quase sempre. A mulher estava fazendo uma arrumação de gavetas, dessas que fazemos geralmente em dias de chuva. Mas naquela manhã (foi de manhã que aconteceu) não havia chuva e sim um sol gostoso e forte. E lá estava ela, assim mesmo, arrumando as gavetas, aproveitando a semana meio morta, depois do Carnaval.
Verdade que o quarto estava impregnado com um cheiro de passado – e isso talvez tivesse contribuído para o que iria acontecer –, mas era algo muito sutil, apenas um leve aroma, desses que se desprendem das gavetas quando são arrumadas. A mulher estava sentada diante de uma cômoda antiga, feita com madeira de demolição, com quatro gavetões pesados e puxadores de metal escuro, onde guardava seus papéis, incluindo-se aí cartas, cartões, contas pagas, fotografias, tudo.
Rasgava papel velho, separando coisas que não lhe serviam mais. Gostava disso, do movimento e do ruído dos papéis sendo retalhados, dos fragmentos se empilhando na lixeira. Mas, na agitação, começou a sentir calor – e decidiu abrir a janela.
Abriu.
Depois tornou a sentar-se, a vista baixa, concentrada na segunda gaveta, aquela em que guardava as contas pagas e que era a parte mais difícil da arrumação, pois precisava prestar atenção e só rasgar as muito antigas.
E de repente aconteceu.
Pela janela, junto com a brisa, entrou um cheiro estival, um cheiro bom de frutas. E, junto com ele, como no quarto de Proust, um mundo de lembranças, um verão inteiro. Respirando fundo, a mulher ergueu a vista e viu o pedaço de céu azul recortado pelo quadrado da janela. E ficou imóvel, o coração batendo, temendo perder o momento. Porque sabia – sabia, com a mais absoluta certeza – que naquele instante estava outra vez apaixonada. E, ao sentir de novo o amor adolescente, espantava-se em sabê-lo tão forte. Tinha ficado dentro dela feito um grão, uma semente. Algo pequeno, infinitamente pequeno, mas ao mesmo tempo com tal concentração de energia e matéria que era como a primeira partícula condensada que um dia explodira e dera luz ao universo inteiro, no dia do Big Bang.
Rendeiras
(27/2/2005)
Eu estava diante da televisão, esperando a hora do noticiário, quando, passando de um canal para outro, dei com duas mãos de velha no centro da tela, em primeiro plano. Parei e fiquei olhando. Por alguns segundos, não havia narração, não havia música, nada. Era só o silêncio – e aquelas mãos se movendo.
Mãos de velha. Uma vez escrevi aqui esta palavra – velha – e um leitor reclamou, por não ter achado politicamente correto. Estranhei, pois para mim essa palavra soa muito bem e nada tem de depreciativa. Ao contrário, há força e beleza nela. O primeiro conto que escrevi na vida se chamou “As velhas” e fico imaginando o que seria se ele tivesse se chamado “As idosas”. Sendo assim, repito – mãos de velha. Lá estavam. Mãos calejadas, de veias saltadas e azuis, cheias de manchas senis em seu dorso. Mãos como raízes ou troncos, cheias de nós, que de repente se fizeram senhoras da minha tela de TV.
Agora se moviam. E vi o que faziam, aquelas mãos: renda de bilros. Minha avó, que morou no Ceará, sabia fazer renda de bilros. Tinha uma almofada azul, cheia de alfinetes espetados, com aquelas linhas em cuja extremidade havia uma espécie de carretel de madeira – o bilro. Os alfinetes ficavam espetados numa tira de papelão e formavam o desenho que a renda teria quando ficasse pronta. Era uma coisa tão complexa, tão intrincada e difícil, que eu olhava as mãos de minha avó tecendo devagar e tinha certeza de que a renda não ficaria pronta nunca. Não ficou mesmo. A almofada de renda de bilros de minha avó acabou jogada num canto do guarda-roupa, rolou para lá e para cá e, afinal, numa mudança, desapareceu.
Mas aquelas mãos na televisão eram muito diferentes. Tinham uma agilidade impressionante, movimentando os bilros e seus fios como se agissem por conta própria, a despeito de quem as estivesse comandando. Tinham vida, parecia impossível detê-las, ou fazê-las errar. No instante seguinte, o plano se abriu e apareceu também a dona das mãos, seu rosto marcado pela passagem do tempo, os olhos miúdos. E enquanto eu observava aquele rosto, a narradora do documentário me deu uma informação curiosa: é muito comum surgirem comunidades de rendeiras onde há atividade de pesca.
Por que será?
E logo pensei na resposta: imaginei mulheres com os olhos perdidos no mar, esperando a volta dos pescadores, tecendo a renda para vencer o medo, cruzando e descruzando linhas para aplacar o coração impaciente, fiando e fiando como Cloto, a velha mitológica que fia o destino dos homens.
A revolução pela alegria
(6/3/2005)
Da janela, observo o catador de papel. Na calçada, ele separa os pedaços de papelão, que vai empilhando e amarrando em grandes feixes, com todo o critério. Parece extremamente concentrado. Há dignidade em seus gestos. E eu, olhando. Uma cena urbana cada vez mais comum, esta de catadores de papel, vidro ou lata trabalhando. Vendo a cena, começo a pensar no Brasil. Este nosso estranho país.
O Brasil é um dos campeões mundiais de reciclagem de lixo. O que é louvável, sem dúvida, só que não foi a conscientização ecológica que fez isso acontecer – e sim a miséria. A necessidade de catar papelão ou lata – por falta de outra opção para o sustento – transformou um imenso contingente de miseráveis em defensores do meio ambiente. Não é incrível?
Continuo pensando. É igualmente estranho que um país pobre, tão cheio de miseráveis, tenha sido também um campeão em matéria de doações para as vítimas da tsunami na Ásia. E que uma cidade como o Rio, tão assolada por mazelas urbanas e pelo medo da violência, seja a mais solidária e a mais cordial do mundo. Essa capacidade de mobilização, essa energia criativa – é uma marca nossa. É disso que falava Joãosinho Trinta quando mencionava o potencial do brasileiro de fazer “a revolução pela alegria”. A expressão é dele, desse nosso grande filósofo popular, que não por acaso se tornou célebre por sua participação no frenesi anual chamado Carnaval. Tive um amigo suíço que vinha aqui de férias duas vezes por ano e não se cansava de admirar essa nossa capacidade. E havia uma coisa que ele admirava em especial, algo que a nós nos parece corriqueiro, desimportante: a facilidade com que nos tocamos. O brasileiro não tem medo do abraço.
Claro que tudo isso – essa nossa criatividade, esse jogo de cintura – é também o que nos leva ao desrespeito às leis, a parar em cima da faixa de pedestre, a se aproveitar do Estado como se fosse uma grande mãe, a não parar no sinal vermelho, às pequenas espertezas – à corrupção,em suma. Masprecisamos acreditar que se pode aproveitar essa energia para coisas boas. Fazemos isso, às vezes. Numa era cada vez mais mecanizada, pasteurizada, de relações frias, virtuais, distanciadas, bem que às vezes conseguimos dar ao mundo uma lição de sol, de colorido e solidariedade. Uma lição de abraço. Com os olhos no catador de papel lá embaixo, fico pensando se não é por isso que nossa estética de cores vibrantes – verde e amarelo – está tão em moda na Europa.
Mas de repente tomo um susto.
Hoje era dia de escrever um conto mínimo e eu fiquei aqui – filosofando na janela.
Janelas
(13/3/2005)
Um leitor me pergunta afinal que lugar é esse onde vivo e que janelas são essas, as minhas, que ora dão para montanhas e lagoa, ora para apartamentos onde vivem casais felizes e infelizes, ora parecem estar quase ao rés do chão, permitindo-me observar de perto os transeuntes e os catadores de papel. Tem razão, o leitor. Que janelas são essas? Onde vivo? Pois respondo. Vivo em vários lugares e são muitas, de fato, minhas janelas, sendo múltiplas as visões que descortino.
Uma é estreita, de vidro canelado, e por ela apenas espio os telhados dos prédios que me rodeiam, com suas telhas de amianto, as caixas de cimento, os pára-raios, antenas e fios. Mas por cima desse emaranhado cinzento e triste vejo um pedaço de céu, nem sempre azul, mas sempre bem-vindo, por estreito e raro. Nesse pedaço, correm nuvens. Nesse pedaço, sopra um vento sudoeste que tem cheiro de mar. E é por isso que ele, esse pedaço sem graça, me traz toda a beleza da praia de Ipanema, das pedras do Arpoador, das Cagarras – porque nada disso é visto, e sim imaginado.
Outra janela é ampla, uma janela francesa, como diriam os ingleses. Dessas de vidro, do teto ao chão. Dá para um terraço de onde – dali, sim – posso ver o mar e as montanhas e o Cristo. Mas dessa janela, paradoxalmente, costumo observar não a natureza, mas a natureza humana, pois dali enxergo também um prédio que se me afigura como a boca de cena de um teatro, cujo cenário tenha sido dividido em pequenas caixas. Em cada uma se desenrola uma vida, uma história. E delas me alimento e a elas reinvento como se me pertencessem. Mas não é só gente que vejo dessa janela, não. Vejo também pássaros, muitos pássaros. Porque é exatamente em cima dessa minha janela que passam os bandos de biguás voando em suas formações perfeitas, em cunha, principalmente nas manhãs, indo em direção à Lagoa e vindo de algum ponto que imagino ser as Ilhas Tijucas, onde eles têm seus ninhos.
Tenho ainda uma janela triste, uma janela assassinada. A janela da minha infância, de onde por mais de quarenta anos vi se descortinar a vista da Lagoa e das montanhas e que a construção odiosa de um shoppping acaba de emparedar. Aquela beleza toda virou apenas uma lembrança, um retrato e – sim, Drummond – dói muito.
Mas de todas, há uma janela que é minha preferida – esta diante da qual estou agora. Às vezes é clara, às vezes escura, mas tem o dom de me levar aonde quero, com a rapidez do pensamento. Esta janela dá para uma paisagem que não tem fim, dá para o mundo inteiro. É a janela que quando apagada se transforma em espelho, me deixa ver meu próprio rosto: a tela do computador.
Farnese
(20/3/2005)
Eu já o conhecia do livro, o belo livro da Cosac & Naify cuja visão um dia, numa livraria, me paralisou. Ia eu passeando por entre as estantes quando dei com dois exemplares colocados de pé lado a lado numa prateleira, um mostrando a capa, o outro a contracapa. E foi justamente esta última que me fez parar. Porque ali estava, diante de mim, o rosto da boneca de biscuit da minha infância, virado de cabeça para baixo, olhando-me com seus olhos muito abertos – que pareciam mortos. Aqueles olhos de cristal, as pestanas pintadas na louça, a boca vermelha entreaberta deixando entrever os dentes pequeninos (que sempre me pareceram feitos da mesma substância dos botões), tudo ali me fez voltar no tempo, enchendo meu coração de horror e fascínio. Só depois de alguns segundos, tirei o livro da estante e comecei a folheá-lo. E descobri um universo inteiro, um mundo inquietante, feito de retalhos, de restos, um mundo que é o estranho reflexo do nosso mundo, este mundo do cotidiano pequeno e insignificante, pelo qual tanto lutamos – inutilmente.
Estou falando de Farnese de Andrade. E se o livro reproduzindo suas obras me fascinou a ponto de ter escrito aqui sobre ele, volto ao assunto agora que fui ver a exposição no Centro Cultural Banco do Brasil.
Farnese. A estranheza do nome se estende à pessoa, que afinal conheci no documentário sobre ele. Logo na primeira sala da exposição, atravessando a porta pesadíssima de um cofre (que idéia sensacional fazer dos velhos cofres do banco salas de projeção), o filme me mostrou seu rosto e sua voz, a personalidade deslocada num mundo incompreensível, talvez hostil. Nele, Farnese confessa que gosta de gatos, mas não de gente e que jamais se imaginaria tendo filhos, o que me fez pensar imediatamente em Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas”: “Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Farnese está morto e, como Brás Cubas, não deixou descendentes. Mas deixou, sim, como legado essas obras ímpares, únicas, essas composições reunindo gamelas, armários, cadeiras, caixas, vidros, mas reunindo sobretudo restos, memórias, fragmentos de vidas. São obras que nos deixam marcas. Saímos de lá com elas. Porque em meio a conchas, imagens de santos e pedaços de ossos, cada boneca de olhar perdido ou corpo calcinado, cada rosto que nos mira dos retratos desbotados parece nos gritar sempre a mesma e angustiada pergunta: por que estamos aqui?
Palmeiras imperiais
(27/3/2005)
Passando esta semana pela Praia de Botafogo, reparei naquele centro empresarial dividido em dois prédios e que tem ao centro um vão. Havia ali – e foi só por isto que a construção foi erguida em dois blocos separados – uma fileira de palmeiras imperiais. Hoje, elas não estão mais lá. Estão mortas.
Morreram de repente, todas elas, no ano passado, por uma causa qualquer que li no jornal e não entendi bem, algo como uma enchente que lhes encharcou e apodreceu as raízes. Estavam ali havia tanto tempo e de repente uma chuva as matou, pensei na época. Achei aquilo sem sentido, quase inacreditável. E agora, ao passar por lá e ver o vazio, sentia de forma ainda mais aguda a falta que elas fazem. O vão entre os prédios está mais vão do que nunca, o que há entre as duas construções é um deserto, uma ausência enorme, uma lacuna de palmas e troncos.
Sofro com as palmeiras imperiais. Sofro porque sei bem o quanto lhes custa crescer tanto. E sei o tamanho do desastre que significa a morte de uma delas. Trabalhei anos dentro do Palácio Itamaraty, cujo lago é cercado de palmeiras imperiais, e vi algumas serem abatidas por causa de doenças nos troncos. No lugar delas eram plantadas mudas (o que ouço falar que será feito no centro empresarial de Botafogo), mas estas levavam anos, muitos anos, para crescer poucos centímetros.
Outro dia um amigo meu, passeando no Jardim Botânico, parou para ver o lugar onde foi plantada a Palma Mater, a primeira “roystonea oleracea”, que foi presenteada a Dom João VI e da qual descendem todas as palmeiras imperiais do Brasil. E ele me confessou que quase chorou ao ler sua história.
Ela também está morta. Foi fulminada por um raio em 1972, quando já tinha mais de cem anos e quase quarenta metros de altura. Chamaram uma “junta médica” para examiná-la, mas a morte foi atestada. Não havia o que fazer. Seu tronco seco, calcinado, está exposto no Museu Botânico. E em seu lugar foi plantado outro exemplar, que recebeu o nome de Palma Filia. Verdade que esta cresceu mais depressa que as outras em redor, como se alimentada pelo simbolismo que a cerca. Mas, ainda assim, a história é permeada de uma poesia triste. E me deixou pensando na palmeiras imperiais, em como, mesmo elas, em toda sua beleza, têm de morrer um dia.
Nisso, são um pouco como todos nós.
Fruto da paixão
(3/4/2005)
Sentada na beirada de pedra que dava para a praia, a mulher sentia nas coxas o atrito da areia. A cada mínimo movimento de seu corpo, os grãos se faziam presentes, entre ela e a pedra, elementos intrusos, quase hostis. Era uma sensação ao mesmo tempo boa e ruim, como bom e ruim era aquele homem a seu lado.
Olhou-o.
Há pouco ele fora comprar uma bebida e agora, de volta, seus olhos estavam perdidos em algum ponto do mar, talvez na traineira que passava devagar, fazendo um barulho ritmado de motorem marcha-lenta. Omar já não tinha o azul transparente de antes, agora era todo prata, um mar como os mares de mentira no teatro, com ondas de papel-alumínio, porque entardecia e o sol oblíquo enchia as ondas de tremulina, de fogos de artifício. O homem a seu lado olhava aquela paisagem com atenção, como se esperasse alguma coisa ou estivesse prestes a tomar uma decisão importante. No rosto másculo, os maxilares de vez em quando se contraíam, num tique nervoso, realçando as faces azuladas pela barba que começava a despontar. A boca, mesmo vista assim, de perfil, era sensual.
Sensual.
A mulher virou o rosto, desviando-o do homem para o mar, o mesmo mar que ele tão fixamente observava. O mar de prata. Tentou pensar no horizonte, tentou pensar nos fogos de artifício daquelas águas, mas sentia dentro de si um ponto incendiado, um ponto feito de lava vulcânica em ebulição.
– Você quer?
A pergunta puxou seus olhos e ela tornou a olhar o homem. Ele sorria. Um sorriso largo, quase debochado, um sorriso que tinha qualquer coisa de maléfico.
– Quero, respondeu a mulher. E ele lhe estendeu o copo.
De olhos fechados, ela sorveu o líquido, também feito de fogo, de um amarelo vivo onde boiavam pequenas sementes negras. Era doce, mas queimava. Bom e ruim, mais uma vez. Batida de maracujá.
– Fruto da paixão, disse a voz a seu lado.
Ela fez que sim, sem olhar para ele, ainda sentindo o calor que descia pela garganta, escorrendo por todo o corpo, buscando talvez o outro ponto de irradiação. E, num segundo, viu tudo com clareza. Não saberia dizer se por efeito da bebida, do sol, do fogo no mar, dos grãos de areia que lhe arranhavam as coxas – ou ainda se pelo olhar selvagem que mais uma vez a chamava. Mas teve certeza de que estava perdida.
Três cenas
(10/4/2005)
Outro dia, folheando os jornais, dei com um anúncio de aparelho de DVD, que apresentava sobre uma mesa um boné de lã, um par de óculos e um joguinho qualquer, supostamente pertencentes a um velho. Não lembro bem como era o texto do anúncio, mas sei que era um convite para que aquele senhor largasse seu jogo e fosse assistir a um filme no aparelho de DVD. Ou seja, o anúncio partia do princípio de que, de um velho, espera-se apenas uma vida passiva, dentro de quatro paredes, jogando ou vendo TV. Aí me vieram à mente três cenas que presenciei recentemente.
Cena 1: Domingo de chuva, muita chuva. O calçadão de Ipanema e Leblon fechado, inutilmente. Ninguém passeando, ninguém. Mas de repente, através da água que escorre pelo vidro do carro, vislumbro uma figura solitária. Sozinho de pé, no meio do asfalto da rua interditada, está um homem velho, sem camisa, fazendo embaixada. Levemente curvado para melhor se dedicar à tarefa de manter a bola flutuando no ar, ele tem as costas nuas expostas à chuva. Só então o reconheço. É aquele mesmo senhor que costuma fazer embaixada no gramado do Maracanã, antes de começarem as partidas de futebol. Só que agora está ali, sozinho, no meio da chuva. Mas esta não o intimida. Ao contrário, parece divertir-se. E faz aquilo por puro prazer, não se importando em não ter público. Joga para si próprio, feliz da vida. Como um menino
Cena 2: Dia de semana, meio de tarde. Dia nublado, muito calor. Sempre nas minhas andanças de carro, estou engarrafada na Avenida Atlântica, ali na altura do Posto Seis. Com o trânsito parado e estando eu na pista junto ao canteiro central, vejo que estou parada bem em frente àquela grande tenda onde grupos de senhores e senhoras se reúnem para jogar. Lá estão eles, parecendo muito concentrados. Nem parecem ligar para o calor. De repente, um deles faz um gesto qualquer – talvez arriando uma canastra real – e se joga para trás numa boa gargalhada. Nessa hora, o trânsito anda. E eu vou embora pensando: como se divertem esses velhinhos do Posto Seis.
Cena 3: Sábado de sol, dia lindo, nem uma nuvem. O cenário é o mesmo da cena 1, só que com toda a luminosidade de um dia ensolarado de outono no Rio. Desta vez estou a pé. E vejo o Moraes, o velho vendedor de sorvetes, atravessando a rua com sua carrocinha. Cumprimenta um freguês, responde alguma coisa, abre o maior sorriso. Também parece contente, também parece menino. Dá a impressão de que vender sorvete é para ele pura diversão.
Não sei, não. Mas acho que quem fez o tal anúncio não conhece os velhinhos do Rio.
Tema
(17/4/2005)
Hoje meu tema são os olhos.
Olhos que me ficaram de lembrança daquele dia. Tudo o mais desapareceu, mergulhado em memórias posteriores de outros encontros e despedidas, de prazeres e dores renovados. Mas dos olhos jamais esqueci.
Lembro-me que era um domingo, embora isso não tenha qualquer importância. Mas sempre repito a mim mesma que era um domingo, para que a lembrança daqueles olhos não se transforme numa abstração, mera sensação de dor. Não. Por trás daqueles olhos havia um mundo real. Era domingo. Mais que domingo, era um dia de sol, um dia de outono em que o céu sem nuvens brilhava, radiante, e em que os rumores do mar se faziam ouvir por toda parte. Calor, bem-estar, doçura. O mundo parecia acolhedor naquele dia, enquanto o universo seguia seu curso silencioso. E, no entanto, foi justamente o domingo escolhido para ser o dia dos olhos.
Olhos que sabiam demais.
Olhos que eram verdes, de um verde largo, alagado. Suas pupilas se tinham recolhido a pequenos pontos e a superfície em torno era muito mais que um aro, era quase um lago, quase um mar.
E foram eles que me fizeram viajar. Foram eles que me levaram a um passado que eu própria desconhecia.
Vi a menina, em seus trajes de escola. Vi quando prendeu a respiração e caminhou até a grade que separava o pátio da rua. Era hora do recreio. Do outro lado da grade, um garotinho pobre olhava para ela com olhos enormes, famintos. A menina então pegou o lanche – pão com manteiga e açúcar, preparado pela mãe – e dividiu com ele. O menino pegou o pedaço e sorriu. A menina sorriu de volta. E aqueles olhos – os dela, verdes, os dele, negros – ficaram por um instante presos um no outro, brilhando.
Foi esse o retalho de passado que me surgiu naquele instante, enquanto olhava a dona dos olhos, seu sorriso frágil, que parecia inundado já pela lassidão da dor. O que estava diante de mim, naquele quarto, era um ser etéreo, como os sonhos, as recordações. Um ser que de material tinha apenas os olhos.
Por isso eles são hoje meu tema. Porque no domingo de sol, flutuando à tona do verde aguado daqueles olhos – vi uma centelha de adeus.
Areia e água
(24/4/2005)
Quando aconteceu, ela se lembrou do caldo de cana. Do caldo de cana de sua infância, no sítio. Num trecho do quintal, um gramado atrás da cozinha, ficava a máquina de moer cana. Ela, menina, tinha um prazer estranho em ver o talo de cana, duro como um bambu, ser enfiado naquela moenda e, com uma sucessão de estalos, sair esmagado do outro lado, deixando todo o sumo – o delicioso sumo, verde, doce, opaco – pelo caminho. Mais do que do gosto, a menina apreciava aquela transformação. A rigidez do talo se liquefazendo dava uma sensação de relaxamento que, somada ao cheiro de melaço e grama, ao calor do sol de verão que quase sempre lhe ardia na cabeça nessa hora, lhe ficara para sempre em algum recanto da memória.
E foi por isto que pensou no caldo de cana na hora em que aconteceu.
Estava sentada na cama em posição de lótus, tentando relaxar. Acordara no meio da noite, como agora quase sempre acontecia. Às vezes era assim, de hora em hora. Às vezes só uma vez ou duas. Geralmente tornava a dormir em seguida, mas nem sempre. E naquela noite, ficara completamente desperta. Lembrara-se das aulas de expressão corporal e resolvera fazer um exercício de respiração, tentar relaxar. E foi quando aconteceu.
Ao rolar o pescoço sobre os ombros, de um lado para o outro, ouviu nitidamente os estalos. Sua nuca fazia um barulho de algo sendo triturado. Parecia que as articulações do pescoço estavam cheias de areia. Foi um som tão claro, aquele som arenoso – que ela ficou atônita. Tornou a fazer o movimento e o som se repetiu, com a mesma intensidade. Mudou a direção, rolando o pescoço agora no sentido contrário – e lá estava, muito claro, o ruído de cana triturada. E mais do isso. A sensação de que – como naquele quintal de sua infância – algo se liquefazia.
Parou um pouco. Esperou.
Depois recomeçou a rolar a cabeça devagar, mais uma vez. O som arenoso continuava lá, mas talvez um pouco mais fraco. E a mulher percebeu que, à medida que diminuía o ruído, aumentava a sensação de liquidez. Era a tensão, pensou. A tensão, concentrada na nuca, que agora se dissolvia, escorria pelo pescoço abaixo, pelos ombros como se fosse água.
Água, uma carícia mínima na face. Passou a língua nos lábios e sentiu a umidade, o sal. Sim, algo se dissolvera, sem dúvida, concluiu.
E só então percebeu que chorava.
Mudança de tempo
(1/5/2005)
O sábado foi assim, um dia perfeito. Um calor de verão, embora fosse outono – mas só no sol. Na sombra, principalmente perto da praia, soprava uma brisa outonal, mais de acordo com a época. E a mulher sorriu, pensando: é outono no Rio.
Muito já se cantou e falou sobre esta época do ano, em que o verão parece depurar-se. Os ingleses não acreditam se dissemos isto a eles, mas o outono nos atrai tanto – a nós, cariocas – porque em março já estamos cansados de sol. E olhe que este ano nem fez tanto calor assim. Mas quando chega o outono há sempre no ar uma delicadeza nova, uma brisa sutil. O sol parece mais lânguido, mais deitado, e as cores – já não sendo ofuscadas por ele – ganham tonalidades fortes. As formas se delineiam melhor, principalmente o perfil das montanhas. Nunca como no outono podemos enxergar os desenhos minúsculos das copas das árvores no alto dos morros, cada uma delas, com impressionante nitidez.
Pois foi assim, naquele sábado. Um lindo dia de sol outonal. E a mulher pensou que no dia seguinte, bem cedo, iria aproveitar o começo da nova estação e fazer um de seus passeios favoritos: ir ao Rio dos anos 40 – isto é, à Urca.
Passearia a pé pelas ruas internas, que circulam as pequenas praças. Iria até à amurada espiar os pescadores ou subiria uma das escadarias que vão dar na Avenida São Sebastião. Talvez fosse antes à Praia Vermelha, para subir a trilha que beira o Morro da Urca. Fosse como fosse, ficaria pela região o dia todo. Talvez até terminasse o dia subindo ao Pão de Açúcar para ver o pôr do sol. Pode haver programa melhor para um carioca comemorar a chegada do outono?
Sim, faria isto. Estava decidida. Poderia ter ido logo, pois a tarde mal começava. Mas achou melhor deixar para fazer o programa no domingo, porque assim teria o dia inteiro. Foi seu erro. Não pensou que haveria a transformação.
Quando acordou no domingo, mal abriu os olhos e ouviu o barulho de água. Uma enxurrada. Ainda vagando naquele torpor entre o sono e a vigília, chegou a pensar por um instante que era um vazamento, um cano estourado em algum lugar. Só depois, ao se sentar na cama, foi que lhe ocorreu que o barulho poderia ser de chuva.
E era. Chuva, chuva e chuva. Um dia cinzento, tão escuro que a mulher teve de acender a luz da cozinha para tomar café. Lá se fora seu passeio. Deu de ombros. Já devia saber. O Rio é assim. Quando menos se espera, de um sábado de sol surge um domingo plúmbeo, fechado. E acontece sem qualquer aviso, nem mesmo um Sudoeste soprando. Por isto, o carioca tem de estar atento: não deve deixar nada para o dia seguinte. O Rio convida ao existencialismo.
Urca
(8/5/2005)
Agora, sim. Na semana anterior, acabara perdendo o passeio planejado por causa de uma mudança de tempo. Mas como o novo sábado amanhecera claro e limpo, nada mais a deteria. Não cometeria o mesmo erro – pensou a mulher – de deixar para o dia seguinte.
Só não conseguiu foi sair cedo. Por alguma razão, suas manhãs de sábado eram repletas de rituais que se iam sobrepondo e preenchendo as horas, até que de repente abria o olho e já era meio-dia. E naquele sábado não foi diferente. Quando conseguiu pegar o carro e sair para seu passeio, já passavam de duas da tarde. Mas não se importou, porque poderia ficar passeando pela tarde afora, até o crepúsculo, se quisesse.
E foi. O dia não estava completamente azul. Havia sol, mas um sol que apagava e acendia conforme eram sopradas as aglomerações de nuvens, que naquela tarde pareciam algodão doce. Era um sol fugidio, raro, mas que tinha sutileza, fazia concessões, deixava espaços. E com isso cores e formas ganhavam mais liberdade.
Foi sob esse céu que virou à esquerda pouco antes da estação do Pão de Açúcar, penetrando na rua só de casas, sombreadas de árvores, aquela rua que parece ter parado no tempo, em algum ponto da década de 40. E foi sob esse mesmo céu que desembocou diante do mar, para uma breve – mas extasiante – visão da baía e seus barcos, antes de virar à direita na Marechal Cantuária. Foi, ainda, sob esse mesmo céu, que alcançou o velho Cassino, com sua praia minúscula e sem ondas, para só então enveredar por uma daquelas ruas circulares com uma pracinha no meio, onde parou o carro e saltou.
Tom Jobim dizia que a melhor maneira de se conhecer Nova York é deitado numa maca. Talvez seja mesmo – pensou a mulher, rindo. Mas não há melhor maneira de se passear pela Urca do que a pé. Apreciando cada casa, cada esquina, cada muro baixo com suas plantas derramadas. Foi o que ela fez. Caminhou e caminhou pelas ruazinhas internas, por mais de meia hora. Retardava o momento de desembocar diante do mar – só para aumentar o prazer.
Mas valeu a pena a espera. Quando chegou diante da amurada de pedra, viu que fora recompensada. Porque o sol, aquele sol incerto, se abrira num rasgo de luz sobre o Cristo, espalhando raios como os do Espírito Santo. E todos os morros e o mar e as pedras, todos os barcos e a ponte lá longe – e até mesmo os prédios que escondem o Morro da Viúva –, tudo estava banhado numa luz santificada e irreal, que a mulher sabia que guardaria para sempre em suas retinas. Ela, que apreendia tudo o que via com sua memória fotográfica. Ela, que tinha essa estranha mania de pintar com os olhos, só para tentar depois – quase sempre em vão – transformar em palavras a paisagem de sua cidade.
Gestos
(15/5/2005)
Ela estava na praça, sentada no banco, apreciando as pessoas que passavam. Fazia isso, às vezes. Quem, hoje em dia, ainda se senta numa praça para olhar o movimento? Pouca gente, talvez. Mas ela, criada em quintais como o Jardim Botânico e o Jardim de Alá, gostava de um banco de praça. E era lá que estava quando a mocinha chegou com o cachorro pela coleira e uma sacola na outra mão. Chegou e parou ali perto, soltando o animal e deixando-o se divertir por entre as folhagens. Enquanto esperava, tirou um celular da sacola. Ia fazer uma ligação.
Imediatamente, a mulher anteviu os gestos que a moça faria: daria um jeito de pendurar a bolsa no braço, pois precisaria das duas mãos para manusear um telefone. Mas não foi o que aconteceu. Com uma só mão, a menina ligou o aparelho, apertou uma tecla – apenas uma – e começou a falar. Antigamente, as pessoas precisavam das duas mãos para ligar. Mesmo com o advento das teclas, substituindo o disco, isso havia continuado. Mas agora, não. Agora, as pessoas apertam uma teclinha só e a memória do telefone faz o resto.
Os gestos estão mudando, pensou a mulher com um suspiro.
Pelo menos com o computador, que tornou o mundo tão diferente, os gestos continuaram quase os mesmos. O novo teclado é igual ao das velhas máquinas de escrever e ela, que desde menina sentia uma sensação boa ao pousar os dez dedos sobre as teclas (imaginando estar sentindo algo semelhante ao que é experimentado pelos pianistas), achava bom que nesse ponto nada tivesse mudado. Mas havia, sim, o mouse. E ficar acariciando aquele bicho estranho, girando-o lentamente, esfregando-o no pequeno tapete colorido era algo inteiramente novo – e perigoso, até. Capaz de provocar problemas no braço. Novos gestos, novas doenças – pensou a mulher, com novo suspiro.
Lembrou-se então de outra coisa que lhe provocava estranheza: o gesto feito agora pelas pessoas ao tirar fotografias. Ninguém mais encosta o rosto na máquina, espia pelo visor e fecha um dos olhos, fazendo uma careta. Agora, as pessoas ficam olhando a máquina de longe, com o braço esticado, como se tivessem nojo ou medo daquele aparelhinho infernal (que em hipótese alguma pode ser preto – deve agora ser sempre prateado).
Sim, os gestos estão mudando, concluiu. Sentiu uma ponta de tristeza. Há uma perda no desaparecimento dos gestos antigos. Ou talvez não, pensou, dando de ombros. Talvez fosse apenas o outono, que estava começando.
O boiler
(22/5/2005)
Coisas pequenas, detalhes do cotidiano. Desejos tolos – mínimos. Todos nós temos, em alguns momentos ou mesmo sempre. E com ela, com a mulher, não era diferente. Mas, de todos os seus desejos pequenos, havia um que era o mais antigo. Queria instalar em sua casa um boiler. Sim, um boiler.
Desde criança, vivendo na Zona Sul do Rio, tivera em casa gás encanado, claro. E crescera tendo em seus banheiros – em todos os banheiros que fizeram parte de sua vida – um aquecedor a gás daqueles que têm as chamas azuis, daqueles que se acendem com um estrondo, às vezes assustador. Esses aquecedores, instalados no próprio banheiro, estão sempre à vista. O boiler, não. O boiler é instalado em algum ponto distante do banheiro, é movido a gás ou a eletricidade, e você não precisa se preocupar em acendê-lo na hora de entrar no banho. A mulher achava isto sensacional. Você abrir a torneira e a água sair quente, automaticamente. Como nos hotéis, pensava ela (quando ainda não tinha o boiler).
Pois um dia seu desejo foi satisfeito. Tomou coragem e fez uma grande reforma para instalar o boiler. Ele foi colocado na área de serviço, para fornecer água quente para a casa toda. A mulher se sentia tola, mas não podia evitar uma sensação de felicidade enorme, um contentamento. É assim quando os desejos mais antigos são satisfeitos.
Tudo pronto, foi tomar a chuveirada inaugural. Abriu primeiro a torneira fria, mas só um pouquinho. Em seguida, a quente. E nada. Acostumada que estava ao aquecedor de gás, que esquenta a água em poucos segundos, ela estranhou. Mas esperou. Finalmente a água começou a esquentar. E de um momento para outro estava pelando. Envolta no vapor, tentando se desviar dos respingos escaldantes, a mulher abriu a torneira fria. Esperou. E nada. A água continuava fervendo. Impaciente, abriu mais a torneira fria. E de repente o banho ficou quase gelado. Deu um pulo para trás, irritada.
Ficou naquela luta durante um longo tempo. E a cena se repetiu em todos os banhos seguintes, por muitos dias. A mulher não se entendia com as torneiras. Elas pareciam ter um ritmo próprio, totalmente diverso do das torneiras ligadas a um aquecedor a gás. Até que um dia, de uma hora para outra, a mulher entendeu. Era preciso respeitar um espaço de tempo, um intervalo. Aguardar a resposta das torneiras.
E foi assim, daquela forma tão banal, que a mulher fez o seu aprendizado. Ela, que era a pessoa mais impaciente do mundo, que achava fila uma forma de crime inafiançável. Ela, para quem marcar encontro com amigo atrasado era a mais refinada forma de tortura. Ela descobriu no seu boiler um mestre.
Com ele, aprendeu a esperar.
A festa
(29/5/2005)
Era como um sonho. Seria, talvez, um sonho?
Foi o que ela pensou, ao se ver assim, no meio daquele salão cheio de gente, onde não conhecia ninguém. De repente, tomou consciência de que estava sozinha no meio daquela festa, sem que soubesse como e por que chegara lá, numa espécie de amnésia parcial que a deixou muito, muito inquieta. Teve um princípio de pânico, mas tentou se controlar. Devia haver uma explicação para o que estava acontecendo.
Procurou ir por partes: em primeiro lugar, era uma festa. Disto, não tinha dúvida. E uma festa grande, porque aquele salão parecia pertencer não a um espaço doméstico, mas a um lugar alugado para eventos, um clube ou um restaurante, talvez. O salão onde ela se encontrava estava cheio, transbordando de gente. Mal conseguia divisar o chão, mas percebeu que era de mármore, talvez com desenhos. A outra constatação que fez foi que, também sem dúvida, estava só. Não estava acompanhada de alguém que por um motivo ou por outro tivesse sumido por alguns instantes. Não. Tinha certeza de que estava só. E mais: tinha a sensação de que não pertencia àquele lugar, de que era ali uma intrusa, talvez indesejada. Sim, era isto, concluiu: achava-se no meio de uma festa para a qual não fora convidada.
Tibiamente, moveu-se. Com um sorriso e um aceno de cabeça, pediu licença e foi singrando a multidão, roçando em ombros, costas, mangas, sentindo as narinas serem invadidas por uma onda intolerável de perfume francês. Extrato. Tinha horror a extrato. Como as mulheres podem tolerar esses perfumes fortes? Um garçom que também tentava a custo atravessar a multidão, só que com a tarefa extra de levar uma bandeja na mão, passou junto dela mas não fez qualquer gesto para lhe oferecer o que quer que fosse. Aliás, ninguém parecia prestar-lhe atenção. Ninguém a olhava. Era como se ela não existisse. Mas insistiu, continuou andando. Havia uma arcada ao fundo do salão, talvez desse numa varanda, algum lugar onde pudesse respirar.
Gente demais – pensou. Gente demais. E todos falam ao mesmo tempo. Parecem ter tanto a dizer. Palavras, palavras, palavras, uma torrente de sons enchendo o ar, turbilhonando rumo ao teto abobadado, escorrendo pelas paredes, parecendo reentrar naquelas bocas vãs, realimentar seus discursos sem sentido. E a mulher ali, perdida.
Talvez eu devesse sair, pensou. Ir embora daqui.
E com toda a força que pôde reunir fechou os olhos. Estava decidida a acordar.
Um livro
(5/6/2005)
Releio Isak Dinesen – ou Karen Blixen, verdadeiro nome dessa escritora dinamarquesa que escreviaem inglês. Releioseu livro “Out of Africa”, editado aqui com o título de “A fazenda africana”, na bela tradução de Per Johns. É uma escritora extraordinária, que aglutinava as palavras como se fosse uma feiticeira juntando os ingredientes de uma poção mágica – dando-lhes o poder do encantamento. Não tenho aqui comigo (tenho em casa) a edição brasileira, mas apenas uma em inglês, da Random House, de páginas amareladas, um pouco ásperas, de cheiro característico. Tenho com os livros, especialmente aqueles que amo – e é este o caso – uma relação física, que inclui não apenas visão, mas também tato e cheiro.
Folheio o livro. Deixo as páginas, presas pelo polegar, escorregarem uma a uma, fazendo um som de cartas sendo embaralhadas. É mesmo como um jogo. Faço isto em busca de minhas anotações e apenas susto o movimento quando dou com um trecho todo sublinhado por mim, com observações na margem. Num deles, Isak Dinesen expressa seu amor pela África, tão grande que ela parece querer deixar lá um pouco de si (aqui, em tradução minha, talvez um pouco canhestra):
“Se eu sei uma canção sobre a África – pensava – ou sobre a girafa e a lua nova africana derramando-se em seu dorso, sobre os campos arados e os rostos suados dos colhedores de café, saberá a África uma canção sobre mim? Vibrará o ar sobre a planície com uma cor que um dia usei, inventarão as crianças um jogo que tenha meu nome, despejará a lua cheia sobre o cascalho da estrada uma sombra com meu formato ou sairão as águias das montanhas Ngong voando em meu encalço?”
Um amigo meu foi ao Quênia só para conhecer os lugares onde Isak Dinesen viveu. A colina onde está enterrado Denys Finch-Hatton, o homem que ela amou. O túmulo que a própria Dinesen descreveu como sendo tão belo que era ornado por leões de verdade (“enquanto o próprio Lorde Nelson,em Trafalgar Square, tem apenas leões feitos de pedra”).
Não tenho dúvida de que a África sabe uma canção sobre ela.
Quem quiser que diga que a vida é apenas uma amontoado caótico de acontecimentos, nada restando depois da morte. Quando leio as palavras de Dinesen, quase posso ver sua sombra na areia dos caminhos, as canções em seu nome ecoando pelo continente africano. Quando leio seu livro, acredito na eternidade.
Grades de bronze
(12/6/2005)
Ao cruzar os braços, à espera de que o elevador se mova, a mulher sente as mãos frias, talvez tão frias quanto o bronze da porta pantográfica, na qual roçou o ombro, ao entrar. Acaricia os próprios braços, como se quisesse proteger-se. Sim, está com medo. Como das outras vezes, pisa o chão daquele prédio com a consciência de quem cruza a descoberto uma rua cercada por franco-atiradores. É um ato de coragem, de despojamento. Uma temeridade, talvez. Pisar assim, desarmada, o prédio daquele homem que faz parte do seu passado.
As grades se fecham. Prédio antigo, silencioso. O elevador de madeira escura tem em suas paredes as marcas de muitos que por ali já passaram, jovens que gostam de gravar seus nomes, datas, dizeres, com a ponta da chave. Sente o suor que começa a brotar-lhe dos poros. A boca está seca, a garganta fechada, o coração bate como louco. Está arrependida de ter vindo. Conhece o poder daquele homem, sabe do que é capaz. Teme que ele possa farejar sua presença. E se o fizer, como vai escapar?
As grades de bronze da porta pantográfica se entrechocam com estrondo. O elevador parou, e justamente no oitavo andar. É o andar dele, ela sabe.
Será que ele vai entrar?
Vai descobrir que ela está ali?
Fica imóvel, os olhos fixos na porta de madeira. Não pensa em mover-se, não teria como fugir. Encerrada no cubículo, como uma fera acuada, aguarda – de olhos
fechados. Treme na antecipação do encontro. As mãos suadas que esconde atrás das costas deslizam para a frente e buscam, nervosas, as dobras da saia. Seus olhos fechados encerram-na num mundo só seu. Suspensa, a dezenas de metros do chão, a mulher espera.
Nada se move. O universo inteiro está morto. Ele vai entrar. Sente que ele vai entrar. Vai abrir a porta e encontrá-la. Já quase pode sentir sua presença.
Os segundos se passam, como se passam os anos. E ela ali, de olhos fechados, esperando. Prisioneira das grades de seu sonho, tão materiais quanto as de bronze que tem à sua frente. Há anos nada faz senão esperar que ele venha tomá-la outra vez nos braços com seu abraço cruel, sugá-la com seu beijo de morte, riscar sua carne com os hematomas do amor. Mas, não. Ele não vem.
Súbito, um novo estrondo. Ela abre os olhos. São as grades da porta que se fecham, ríspidas, despertando-a. O elevador reinicia sua lenta ascensão.
Não havia ninguém no oitavo andar.
Unção
(19/6/2005)
A mulher deu alguns passos à frente, quase chegando a se debruçar na fita amarela que impedia a passagem para o deque de madeira, cuja estrutura vinha sendo abalada pelas ondas. E pôs-se na ponta dos pés, tentando espiar as pedras lá embaixo. Fora ao mirante apreciar a ressaca. O vento frio de outono ainda lhe cortava o rosto, como quando ela saíra do carro, mas fora momentaneamente amainado. Além da amurada, o mar, de um verde-acinzentado, parecia quase inofensivo.
Verdade que engolira parte da areia da praia e que a borda de espuma branca era excepcionalmente larga, rendada de vagas de um tamanho fora do comum, que se chocavam umas com as outras. Mas dali, do alto do mirante, sua fúria era estática, como numa fotografia. E por um instante a paisagem permaneceu serenada.
Depois, a mulher ergueu os olhos e viu que a bruma formada pelas gotículas de água salgada envolvera prédios e morros, formando um mundo de cores esmaecidas, doentias. O instante de refluxo, em que o mar se preparava em silêncio para uma nova investida, continuava. Era como estar no olho do furacão, sabendo que a qualquer momento a fúria voltaria.
E voltou.
A mulher não sentiu a onda chegar. Nem sequer uma trepidação. Foi algo surpreendente, inexplicável. Era cedo, ainda, quase madrugada, e ela estava só no deque. Não havia ninguém para gritar, dizer-lhe que corresse. Não houve qualquer aviso. Tudo aconteceu rápido demais. De repente, descendo do céu como um raio ou um castigo, a massa d’água caiu sobre ela, compacta. Envolveu-a de um só jato, molhando-a por inteiro. Não apenas respingos, mas uma água quase sólida, que a deixou instantaneamente ensopada, roupas, cabelos, tudo, da cabeça aos pés. Gritou, encolheu os ombros, ergueu os braços, tentando defender-se tardiamente daquela onda que viera não sabia de onde. Mas não saiu do lugar. Por um segundo ficou ali, os pés presos ao chão, sentindo que até as meias, dentro do tênis, se encharcavam.
Somente quando deu um passo atrás, baixando a vista e olhando-se, foi que pareceu despertar. E caiu na risada. Uma risada sonora, desabrida, que preencheu o mirante vazio, rivalizando com o rugido do mar. Uma risada de alívio, uma explosão. Aquela pancada a fizera sentir-se viva outra vez. Agora, a beleza das ondas corria em suas veias. Seu corpo fora ungido pela natureza.
Mantra
(26/6/2005)
Não parar, não pensar, nada, nada, ser apenas um punhado de recordações, lembranças desconexas, sabores, cores, cheiros. Desfiar delícias como se recitasse um mantra, deixar que cada uma das sensações vá entrando pelas narinas, pelos olhos, pela boca, pelo sexo – fluindo através desse corpo imaginário que é a memória. Um calor de pedra nas costas, os olhos fechados, o som grave das ondas que batem na praia com mansidão, o ruído metálico dos pássaros. Camarão frito, gosto de suor, maresia. O martelar distante do motor de uma traineira, algumas vozes, uma risada. Sol, muito sol. Mas também muitos crepúsculos, muitos. A areia dourada vista de um quiosque em Geribá, o brilho se esbatendo praia afora, até dar no morro sombrio, com seus cactos que parecem um exército de fantasmas. O mesmo dourado em Ipanema, numa tarde em que o mar do Arpoador é um aquário transparente com seus cardumes de pequenos peixes, mar que se esqueceu sobre a areia e formou piscinas, onde os retardatários – aqueles que realmente amam a praia – se deixaram ficar, sentados com água pela cintura. Mate, limãozinho, biscoito Globo. E ainda o mar. Um mar todo ouro, todo tremulinas, visto da ponta de Montserrat, junto à igreja mais velha da Bahia, com o sol batendo em suas paredes caiadas e fazendo arder a vista. Um gosto de pitanga, de sorvete de pitanga da Ribeira. Ou uma tarde no Douro, às margens do rio, vendo o casario antigo morro acima, a ponte de ferro, o avanço lento das barcaças. Ou ainda uma tarde no Trastevere, por entre ruelas e fontes, com um sol frio, preguiçoso, que se deita sobre as pedras, iluminando as flores nas sacadas como numa pintura. Uma livraria inglesa, um cheiro bom de papel. Uma tardeem San Marco, já quase vazia àquela hora, o sol brilhando nas cúpulas bizantinas da catedral, fazendo seus mosaicos se multiplicarem, enquanto os primeiros pontos de luz se acendem nas mesas dos cafés. Um som de Bossa Nova, um gosto forte de café e licor. Mas não só crepúsculos, também muitos nasceres de sol, muitos dias nublados – muita chuva. Um banho sob o jato de uma calha, em meio a um temporal de verão, desafiando os trovões, uma sensação de poder, de indisciplina – uma sensação de ser criança. Um filme de Woody Allen, um filme, muitos filmes, conversas, risadas. Muitas risadas. Uma roda de samba, um carnaval inteiro, uma noite de bambas no Centro Cultural Carioca. Sopa de siri, caldinho de feijão. Passeios casuais por entre livros, muitos livros, novos e velhos, a doce poeira dos sebos na ponta dos dedos. Um vatapá, uma bouillabaisse, um prato de moules com batatas fritas no Le Gorille, olhando a vista do porto velho de Saint-Tropez, um jantar à luz de velas numa noite fria de verão europeu. Paris. Um abraço à meia-noite, um Ano Novoem Copacabana. Umacarícia, uma barba cerrada, um cheiro de lavanda. Um beijo. Um milhão de beijos. Apenas um milhão de beijos depois. Sempre.
Letras
(3/7/2005)
No mistério do papel em branco – da tela em branco – com o qual se depara pela primeira vez, a mulher reflete. Pensa no fluxo primeiro, o jorro, a sangria que lhe aflorou à pele, o veio de ouro e prata, a veia de sangue e dor, tudo o que brotou da terra e da carne e se transmutouem palavras. Umdia, um menininho holandês ia passando junto a um dique e encontrou um pequeno orifício. Achou que precisava fazer alguma coisa. Se colocasse ali o dedo, evitaria que o buraco se alargasse mais e o dique viesse abaixo. Ficou quieto, esperando, até que alguém passasse. Virou herói. Com ela, com a mulher, se dera o contrário: um dia, sem saber por quê, ela tirara o dedo e deixara correr a enxurrada, irrefreável. Palavras, palavras, letras, um amontoado de letras.
E agora aquele silêncio enorme.
A mulher passeia de um lado a outro da sala, como uma fera. Letras, letras. De repente seus olhos se prendem à lombada de um livro. Um livro entre os muitos livros de sua estante pessoal, aquela onde estão os títulos que lhe são mais caros, que fazem parte de sua vida e de sua história. A lombada que lhe chamou atenção contém uma palavra que agora há pouco lhe rondava a cabeça: “letra”.
“A letra escarlate”, de Nathaniel Hawthorne.
Por isso, só por isso, tira o livro da estante e começa a folheá-lo, até parar diante de um trecho sublinhado:
“O brilho mortiço do carvão em brasa é essencial para produzir um efeito que tentarei descrever. Ele lança por toda a sala uma leve tintura, de um vermelho pálido que se derrama por paredes e teto, cintilando também no reflexo da mobília polida. Essa luminosidade morna se funde à espiritualidade fria dos raios de luar, assim dando vida, coração e sensibilidades de uma ternura humana às formas que parecem surgir à nossa volta. Ela converte as imagens de gelo em homens e mulheres. Olhando através do espelho – perscrutando suas profundezas assombradas –, vislumbramos o brilho bruxuleante do carvão que se extingue e os raios de luar sobre o assoalho, com uma repetição de cintilação e sombra que está um grau além da realidade, quase tocando a imaginação. Se então, numa hora como essa, e tendo tal cena diante de si, um homem sentado sozinho não tiver sonhos estranhos, nem puder transmutá-los de forma a parecerem reais – então ele não deve jamais tentar escrever romances.”
Palavras, letras – encanto. E a mulher se sente de repente cheia de coragem, assaltada por uma vontade enorme de escrever.
Sol, lá, si, dó
(10/7/2005)
Primeiro foi só o sol. O sol, o silêncio, o som do silêncio. Fazia muitas semanas que eu não me deitava na espreguiçadeira do terraço. Estiquei as pernas, ajeitei a cabeça no rolinho feito com a toalha e, de olhos fechados, me deixei ficar, sentindo os raios. O mundo, a cidade, a tarde de outono, tudo parecia ter desaparecido e se transformado apenasem calor. Calore silêncio, como já disse, pois a princípio não havia som. Era tamanha a minha necessidade de sol que eu não sentia mais nada, não via nem ouvia nada. Estava inteira, corpo e consciência, naquela entrega a seus raios, naquele momento de quietude revigorante.
Só aos poucos é que ao calor se somaram os sons. Os sons da tarde à beira mar. Eles foram penetrando em meus ouvidos devagar, começando pelo ruído da praia. No início, apenas as ondas, mas depois também o alarido alegre vindo da areia, pois embora fosse outono a praia estava cheia. Vozes, risadas, o baque surdo das bolas de vôlei, o estalo um pouco mais estridente das bolas de frescobol. Os sons foram assim se apresentando a meus sentidos, acoplando-se ao todo, um a um, num crescendo.
Lembrei de um filme maravilhoso com Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald, que começa assim: com Paris despertando num crescendo de sons. Uma mulher sacudindo um tapete, um sapateiro batendo um prego, uma buzina – sons do cotidiano se juntando para formar uma música. Era a mesma coisa. Só que não era o despertar de uma cidade, mas o meu próprio, eu, que havia semanas, talvez meses, me encontrava mergulhada num torpor quase doentio. O sol, o poder do sol, parecia ter aberto o caminho para o despertar de todos os meus sentidos.
E foi então, em meio a essa sinfonia trivial, que começaram a pingar, gota a gota, as notas do piano. Era bem minha conhecida, aquela sonoridade. Havia anos que eu acompanhava os exercícios de piano de uma vizinha, as notas repetitivas, a melodia curta, sem imaginação, dedicada apenas a melhorar a flexibilidade e agilidade dos dedos, não a produzir beleza. Mas fazia tempo que não as ouvia. Ou talvez não lhes prestasse atenção.
E naquela tarde também as notas pareceram vir até mim como algo novo, surpreendente. Recebi seu som puro, ainda que banal, com alegria. As notas do piano foram a materialização em música dos raios de sol outonal, descendo sobre mim, aliviando as dores, abrindo espaços, movimentando as juntas, desfazendo os nós. Um a um.
Viagem
(17/7/2005)
Na manhã chuvosa, caminho saltando as poças d’água, a vista presa ao chão, temendo escorregar. Ao andar assim, de olhar baixo, vejo coisas que quase ninguém vê, um conto mínimo a cada passo. As poças formam desenhos nas pedras, transformam-se em lagos, criam pequenos mundos onde os tufos de grama, debruçados, são árvores. Noto vagamente que de um lado e outro do caminho a grama crescida é salpicada por lápides, o que me parece incomum. São lápides muito antigas, cujo mármore esverdeado já quase se confunde com a relva.
Subo os degraus de pedra e atravesso a porta de cinco metros de altura, em arco, toda granito e madeira-de-lei, esculpida, chegando ao chão de mosaicos. Ouço o som dos meus passos, desço pela nave principal. A igreja está vazia. Deus só freqüenta igrejas vazias, dizia Nelson Rodrigues, que como ninguém soube misturar amor e pecado, devoção e blasfêmia. Torno a caminhar. Mais uma vez paro, agora a meio caminho entre a porta e o altar, e me sento num dos bancos compridos de madeira, que range sob meu peso, como se conspurcado.
Não estou aqui para rezar. O que me trouxe foi um impulso de ordem diversa: vim arrastada por um sopro mágico, que subverteu o tempo e o espaço, rompeu limites, desfez demarcações, destroçou fronteiras. Ergo a cabeça e observo as curvas do teto, os arcos imensos, acinzentados. Há neste templo uma névoa irreal, de sonho, uma umidade que não está só no tempo chuvoso, mas que transpira das paredes há muitos séculos. E há, também, a luminosidade leitosa dos vitrais, que despeja suas cores esmaecidas, como se saídas de um outro tempo, um outro mundo.
Agora ouço vozes. Longínquas, mínimas, apenas um murmúrio indistinto. Aperto os olhos e percebo que, ao fundo da nave, três pessoas conversam baixinho. Estão junto à grade que separa a abside, onde se ergue o altar, imenso e nu. Não são religiosos, são pessoas comuns. Três homens. Trajam roupas de uma outra época, que me é impossível determinar, mas isto não me surpreende. Nada me surpreende, apenas encanta.
Fecho os olhos, sorrio. Sinto entre as mãos a capa dura, as folhas macias. É bom estar aqui. Nesta igreja, neste século, neste país distante. Um país feito de letras, palavras, frases. No tempo atemporal, no espaço impalpável – que só existem dentro de um livro. É com ele nas mãos que consigo escapar.
Armada
(24/7/2005)
Tenho divagado, bem sei, flanado por mundos oníricos, imateriais, sem muita conexão com a realidade. É preciso que seja assim, por enquanto. Faz parte do meu manual de sobrevivência. Mas ainda há momentos esparsos em que vislumbro retalhos da vida real – e esses me causam espanto. São corpos ensangüentados, são ódios, vinganças, malas, cães e conspirações. Saltam do jornal de repente e me olham cara a cara, exigindo um juízo, uma palavra, uma posição, mesmo que eu não queira, mesmo que eu relute.
Outro dia foi assim. Aconteceu com uma fotografia. Mostrava o carro esmagado onde morrera um homem. Era um homem de certa idade, mas que me pareceu, pelo pouco que soube dele, alguém jovial. Ainda tinha muito que viver. Saiu num domingo para passear e morreu. Morreu sem nem saber o que acontecia, quando um carro imenso, parecendo um tanque de guerra, voou sobre o seu e o esmagou. A história daquele homem me comoveu muito – a ponto de me trazer de volta. Talvez porque morresse no lugar menos improvável do mundo para se morrer: dentro de um carro estacionado no calçadão de Ipanema, de manhã bem cedinho, num domingo de sol.
O fato é que aquilo me fez pensar. Nem quero entrar no mérito da questão, se o rapaz que dirigia o carro estava ou não a cem por hora, se estava ou não bêbado, já que saía de uma boate. O que de imediato me fez refletir foi o carro do rapaz – aquele carro enorme. Parecendo um tanque, como já disse. Um tanque de guerra.
Vejo nas ruas um número cada vez maior desses carros que parecem uns jipes gigantescos, umas caminhonetes imensas, com rodas que lembram as de um trator. Parecem camburões. Já ouvi muita gente dizendo que daria tudo para ter um deles. Jovens, principalmente. Não faz muito tempo um jogador de futebol se envolveu num acidente com uma caminhonete dessas e várias pessoas morreram. Também não faz muito tempo outro jovem, num jipe gigante, esmigalhou um carrinho num cruzamento da Vieira Souto e matou seu ocupante. São carros que mais parecem armas. Neles, os motoristas talvez se sintam seguros, mas talvez também olhem o mundo com certa arrogância. Não sei se é impressão, mas me parece que eles, trancados em suas fortalezas ambulantes, às vezes blindadas, com o rosto indevassado pela película negra dos vidros, praticam uma direção mais agressiva. Têm um poder maior. Inclusive de matar.
Houve época em que nada havia de mais cobiçado do que ter um carro esporte, conversível, um carro pequeno, de linhas suaves, arredondadas. Eram tempos mais delicados, mais elegantes, em que não vivíamos numa sociedade assim – tão armada.
Para baixo e para cima
(31/7/2005)
Já disse aqui que, segundo Tom Jobim, a melhor maneira de se conhecer Nova York é de maca. Deitado, sendo levado por mãos alheias, as rodinhas deslizando, os olhos fixos no alto dos arranha-céus, o movimento das nuvens no céu dando aquela deliciosa vertigem e a impressão de que os prédios vão cair em cima de nós. É um conselho sábio. Mas eu, muito ao contrário, sempre tive mania de andar olhando para baixo,em Nova Yorkou em qualquer outro lugar, até mesmo no Rio, com toda essa paisagem em torno. É uma questão de hábito. Não diria que é algo ruim. Ao longo de anos nessa prática, devo dizer que tive muitos ganhos. Olhando para baixo, meus olhos detalhistas descobriram mundos inteiros, minúcias que em geral passam despercebidas ao transeunte comum. Como quando, num dia de chuva, parei sobre um bueiro onde havia um pouco de água acumulada. Anoitecia e a luz de um poste projetava um brilho lindo sobre aquela pequena porção de água transformadaem espelho. Meusolhos se prenderam então à inscrição na tampa do bueiro, que parecia ter sido colocada ali como uma legenda: força e luz. Coisas assim só acontecem com quem anda olhando para o chão.
Mas, de uns anos para cá, a força da gravidade, digo, da idade, começou a me chamar cada vez mais para baixo. E achei que já era hora de tentar fazer força em contrário, isto é, andar com o queixo erguido para que ele não ficasse duplo. Comecei aos poucos. Fui me acostumando. Até que, olhando para cima, comecei a descobrir outro universo.
É incrível a quantidade de detalhes que somos capazes de enxergar se andarmos de cabeça erguida – mas olhando para cima mesmo – em um lugar como Copacabana, por exemplo. Se projetarmos nosso olhar em direção ao alto dos edifícios, vamos descobrir uma outra Copacabana, quase desconhecida. A Copacabana dos tempos em que era um balneário refinado, cheio de palacetes neo-clássicos ou art-decô. Outro dia,em plena Avenida NossaSenhora de Copacabana, descobri um prédio cuja parte superior é toda rendilhada e em cuja fachada, bem no centro e no alto, há um lindo relógio antigo. Parado, é claro – mas lindo. Nunca tinha reparado nele antes. Podemos também, daqui de baixo, vislumbrar o quão deliciosas parecem algumas coberturas, com suas plantas debruçadas nas muretas. Mas acho que meu maior feito até agora foi a descoberta que fiz no telhado de um pequeno prédio na Farme de Amoedo, em Ipanema, quase esquina com a Visconde de Pirajá. Lá no alto, pousada sobre suas pernas longas, na maior elegância, está uma garça. Ao vê-la, por um instante pensei que era uma ave de verdade. Mas sua imobilidade logo me convenceu: é uma estatueta. E me deu uma felicidade enorme saber que alguém teve a delicadeza de plantar a estátua de uma garça no alto de um prédioem Ipanema. Sãoas delícias de andar olhando para cima.
Ah, vida
(7/8/2005)
“A vida está aí para ser vivida, mais do que para ser escrita”.
Dei com essa frase outro dia, dita por um poeta decadente e bêbado, sentado numa mesa de bar na Paris da virada do século (dezenove para vinte). Seu nome era Cronshaw e ele estava dentro de um livro: “Servidão humana”, de Somerset Maugham. Ao ler tal comentário, lembrei imediatamente de outra frase, de conteúdo parecido, esta de Carlos Heitor Cony: “O escritor é sempre contra o homem”. Cony disse isso ao explicar que ficara mais de vinte anos sem escrever porque nesse tempo estava se dedicando a viver. Como se viver e escrever fossem coisas excludentes.
Fiquei me perguntando se Cony e Cronshaw – ou Maugham – não estarão certos. E se a energia jogada nas palavras não drena a seiva da vida real, secando a paixão, ou pelo menos tornando-a mais frágil, mais árida. E ao fazer essa reflexão fiquei com uma vontade danada de jogar tudo para o alto e sair vivendo, vivendo, vivendo.
O que eu faria, para começar?
E, quase sem perceber, tornei a recitar mentalmente meu mantra, como já fizera antes, desdobrando-o, buscando novas delícias, novas recordações e novos planos. Uma caminhada pela ponte de madeira, de pedestres, que corta o Sena. As jardineiras floridas, o rio se bifurcando em torno da ilha da cidade, o sol inclinado transformando a paisagem num quadro impressionista. Uma caminhada pelas ruelas de San Telmo, a praça, a música, o frio, as lojas sombrias, gramofones, partituras, bonecas de olhar assombrado, garrafas de Crush. Uma caminhada pelas ruas de South Kensington ou Bolton Gardens, as casas iguais, pintadas de branco, as placas com os nomes dos escritores que moraram ali, a sensação de que a qualquer momento vamos cruzar com Ivan Lessa ou Oliver Twist. Uma caminhada pelo calçadão do Leblon, num domingo com sol de derreter catedrais, uma água de coco no quiosque da Niemeyer olhando para o mar que se perde nas Cagarras, companheiras solidárias, eternas. Uma caminhada…
De repente, parei. Acabava de me dar conta de que estava escrevendo tudo aquilo – não vivendo.
Mas logo dei de ombros. Não adianta tentar resolver a equação. Viver e escrever talvez sejam, sim, duas coisas díspares, paradoxais, mas são também uma coisa só – afinal, a vida é o maior dos paradoxos. E sabe de uma coisa? Chega de filosofia boba porque hoje é domingo. Vamos para o calçadão porque, como diz um amigo meu – a vida está lá fora.
Faz-de-conta
(14/8/2005)
Morreu Francisco. Muitos Franciscos hão de ter morrido por aí, mas esse não era um Francisco qualquer – era o Francisco das Flores. Tinha 83 anos, embora aparentasse menos, e cansei de vê-lo à noite pelas ruas do Leblon, com seu smoking e sua cesta de rosas na mão. Morreu de repente, do coração, deixando viúva sua Iracema, com quem era casado havia mais de cinqüenta anos. E morreu como quis, porque numa entrevista recente li que seu maior desejo era trabalhar com saúde até o último dia.
Foi para mim muito mais do que um vendedor de flores. Muito mais do que um personagem simpático da noite, como tantos que existem por aí. E isso por causa de uma história estranha, que me contaram – e que um dia se provou falsa.
Há mais de cinco anos, estava eu um dia jantando num restaurante avarandado do Leblon quando seu Francisco apareceu com suas rosas. Assim que se afastou, alguém na mesa me disse que corria uma lenda sobre ele: a de que era um homem letrado e que, tendo matado a própria mulher por ciúmes, cumprira pena e, ao ser solto, se dedicara a vender flores, numa espécie de penitência. Achei a história bonita e escrevi, na época, um conto mínimo, a que dei o nome de “A penitência das flores”. Mas algum tempo depois soube que seu Francisco era casado com a mesma mulher havia muitas décadas e que nada disso era verdade.
Embora eu não mencionasse seu nome no conto, senti-me um pouco mal, pois eu o descrevia fisicamente. E a essa altura o tal conto já tinha sido publicado atéem livro. Daqueledia em diante, ao cruzar com seu Francisco nas ruas do Leblon, passei a ter sensações contraditórias. Por um lado, sempre imaginava que ele viria me tomar satisfações por ter inventado a história macabra. Por outro, continuava olhando-o com certo fascínio, como se parte de mim ainda acreditasse na veracidade do caso. E enquanto isso, seu Francisco, sempre elegante, continuava apenas fazendo suas mesuras e me oferecendo flores, como fazia com todo mundo.
Mas agora que ele morreu, fiquei pensando. Não importa que a história tenha sido inventada – era uma história bonita, era uma história de amor. De alguma maneira, seu Francisco das Flores ficou eterno dentro dela, com sua paixão desvairada, sua pena e penitência. E é bom que seja assim.
A lenda foi impressa – e sua poesia se transformou em verdade.
(Além do mais, quem há de tentar traçar a fronteira entre realidade e fantasia num país como o nosso, paralisado por um circo de denúncias e com um governo de faz-de-conta?)
Fonte da Saudade
(21/8/2005)
Nunca tinha parado para pensar na beleza desse nome, eu, que de tantas belezas do Rio me ocupo, eu, que ando para cima e para baixo procurando pequenos poemas nos detalhes desta cidade vaidosa e feminina. Mas nesse nome eu nunca prestara atenção. Fonte da Saudade. Jamais parara e me perguntara a origem de um título tão poético, embora lembrasse vagamente de ter visto fotografias antigas com uma bica d’água à beira da Lagoa. Fonte, sim, era a denominação mais natural do mundo. Mas por que Saudade? Isto, eu nunca me perguntara. Até que outro dia li que a origem do nome são as lavadeiras portuguesas que serviam às famílias nobres de Botafogo e que ali lavavam roupa cantando fados, com saudade de sua terra.
Ler sobre isso imediatamente me fez voltar, em pensamento, às fotografias de Marc Ferrez, na lindíssima exposição do Instituto Moreira Salles que vira na semana anterior. Esse Rio oitocentista das lavadeiras portuguesas está, todo ele, eternizado em imagens graças à câmera de Ferrez, à sua tenacidade e pioneirismo, mas sobretudo à plasticidade de suas composições. A beleza natural do Rio atraiu a noção de beleza que havia na própria alma do artista, a paisagem encantou Ferrez e este, encantado, soube captar o espírito da cidade, prendendo-o para sempre ao papel, fazendo-o eterno. Foi um casamento raro. E se o Rio é uma das cidades mais retratadas do mundo em todos os tempos, poucos o fizeram com tamanha delicadeza e propriedade.
Mas volto à Fonte da Saudade.
Embora hoje ande pouco por lá, lembro de um tempo em que, menina e morando no Jardim Botânico, passeava muito daquele lado da Lagoa. Era um tempo em que havia, ainda, em torno do espelho d’água uma pequena praia, não em toda extensão, mas apenas em alguns pontos – e daquele lado havia um desses, talvez na altura onde hoje fica um quiosque de bebês. Era às vezes dali que íamos assistir às queimas de fogos do Rei da Voz, nas noites de Ano Novo. Lembro que nessas noites, embora ainda criança, eu nunca sentia sono. Caminhava pela pequena praia com os pés descalços e, com a planta dos pés, percebia o ponto em que a areia começava a ficar mais molhada, já quase transformadaem lodo. Erauma sensação de transgressão, como se eu pisasse território proibido. É a lembrança mais forte que trago daquele canto do Rio. Fonte de prazer, graça, susto. E de saudade.
Uma noite encantada
(28/8/2005)
Ele tinha relutado muito em ir à festa. A amiga insistira. Estava fazendo 40 anos. Era uma data redonda, queria todos os amigos à sua volta. Todos, mesmo os que não se conheciam entre si, mesmo os que, como ele, não gostavam de festa, eram tímidos, esquisitos. E ele não tivera como fugir.
Mas ao chegar sentira um arrependimento imediato. Os amigos da amiga se distribuíam em grupos pela sala, todos animados, falando alto, e ele sabia que não pertencia a nenhuma daquelas turmas. Era um rapaz diferente, fora assim desde criança. Vivia num mundo só seu, feito de livros, cinema e – principalmente – música. Sentou-se perto da janela, começou a brincar com um quebra-cabeça de acrílico, um cubo transparente dividido em várias peças encaixadas, que escondia uma bolinha azul. O desafio era tirar a bolinha dali. Virou e revirou o cubo nas mãos, distraído. Não queria descobrir o segredo. Se isso acontecesse, teria de parar de brincar e então não saberia o que fazer com as mãos.
Até que de repente ouviu a risada.
Ergueu a cabeça e olhou em torno, mas, no salão cheio, não conseguiu descobrir de onde viera o som. Tornou a se distrair com o cubo, mas pouco depois lá estava a risada de novo. Quase sem sentir, começou a cantarolar mentalmente uma canção americana antiga, que falava sobre uma noite encantada, quando um homem, numa festa, ouve uma risada do outro lado de um salão cheio de gente. “And night after night, as strange as it seems, the sound of her laughter will sing in your dreams”, dizia a letra. E noite após noite, por estranho que pareça, o som da risada vai cantar em seus sonhos. Engraçado, pensou. Porque tinha tido mesmo a impressão de que o som ficara ressoando em sua mente. Voltou mais uma vez para o cubo de acrílico, mas quando a risada aconteceu pela terceira vez ele se levantou.
Num primeiro momento, não atravessou a sala. Era tímido demais para fazer isso. Mas, por cima do mar de cabeças, localizou a mulher que ria aquele riso metálico, quase escandaloso. E, ao vê-la, teve a impressão de estar voltando para casa.
Era tão forte a sensação de reconhecimento que, quando o riso explodiu mais uma vez ele se lembrou de outro fragmento da canção, cuja letra dizia “Then fly to her side, and make her your own, or all through your life you may dream all alone”. Corra até onde ela está e faça-a sua, senão poderá sonhar sozinho pela vida afora. E, vencendo a timidez, o rapaz deu o primeiro passo.
Ia atravessar o salão.
Cena carioca
(4/9/2005)
Fico imaginando.
Estou sentada num pub inglês, um daqueles bem escuros, com tamboretes diante de um balcão, espelhos, chopeiras de metal antiqüíssimas, um cheiro de cerveja ainda mais antigo no ar. Estou ali ao lado de um inglês, com quem converso. Aí, começo a contar para ele a história do mico-estrela. Das duas, uma. Ou ele vai mais do que nunca acreditar naquela visão inglesa de que esses países tropicais são mesmo lugares bárbaros, com cobras e outros bichos passeando pelas ruas – como eles sempre acharam – ou, se tiver a mente um pouco mais arejada, vai ter certeza de que nós vivemos num lugar extraordinário. Vejam se não parece mentira:
Num dia de fim de inverno, com as ruas tomadas pelas folhas vermelhas das amendoeiras (aqui, as amendoeiras não deitam suas folhas no outono, mas quando bem entendem, talvez contaminadas pelo nosso anarquismo), pois nesse dia de fim de inverno, como eu ia dizendo, numa movimentada avenida perto do Centro do Rio – uma cidade com mais de dez milhões de habitantes – uma fêmea de mico-estrela está passeando pelos galhos de árvore, tranqüilamente, quando de repente se desequilibra e cai. Num primeiro ato, dá-se a tragédia: um ônibus que ia passando atropela e mata a macaquinha. Mas, num segundo, dá-se o milagre: do ventre dilacerado da fêmea de mico-estrela, surgem dois miquinhos, que se mantiveram incrivelmente vivos, protegidos pelas costelas da mãe. Numa cesariana brutal, escapam pelo abdômen dilacerado, da morte para a vida.
O homem, esse ser tão calejado e frio, se comove com a cena. E muitos acorrem, para ajudar os recém-nascidos. Os bebês são cuidados, recebem carinho, são alimentados com uma mamadeira mínima e recebem até uma mãe adotiva, uma macaca de pelúcia à qual se agarram e em cujo interior se pôs uma bolsa de água quente, para que eles pensem que é a mãe de verdade. E mais: o corpo da macaquinha morta será conservado para que os dois miquinhos, quando estiverem mais crescidos, sejam esfregados nele. Assim, receberão o cheiro da mãe e, ao serem devolvidos a seu habitat – o Aterro do Flamengo, o Morro da Viúva ou alguma outra mata por ali – poderão ser reconhecidos e acolhidos pelo bando.
O inglês me olha de olhos arregalados. Mas tudo isso aconteceu em plena cidade? – pergunta.
Faço que sim com a cabeça, toda orgulhosa. O Rio às vezes, espontaneamente, nos conta seus próprios contos mínimos.
Reflexões
(11/9/2005)
Não anda muito fácil ler jornal.
À já rotineira enxurrada de notícias sobre corrupção e desesperança, aos sempre recorrentes noticiários sobre a violência, no Rio e em toda parte (mas principalmente no Rio, que parece ter a preferência da imprensa), juntam-se os terríveis desastres – naturais e não naturais – que assolam o mundo inteiro. Houve dias, agora, recentemente, que abri o jornal de manhã e só encontrei corpos.
Fogo, água, terra e ar, todos os elementos parecem em fúria, de repente. Incêndio em Portugal, enchente no leste europeu, terremoto no Japão, furacão nos Estados Unidos. A charmosa Nova Orleans destruída, debaixo d’água. Ao ver as cenas de selvageria no estádio Superdome, é inevitável pensar no livro de Saramago, “Relatório sobre a cegueira”, em que os seres humanos se bestializam, transformam-se em feras num mundo onde já não existe resquício de ética, onde a única coisa que conta é sobreviver.
Assim andam os jornais. Isso, fora as guerras. Fora o Iraque. Só o Iraque, sozinho, já é capaz de manchar de sangue – e pólvora – as mãos de quem lê os jornais. E ainda nem comecei a falar nos desastres de avião. Têm caído sem parar, os aviões.
Eles – os aviões que caem – são uma das minhas obsessões. Sonho com isso, escrevo sobre isso. O primeiro conto mínimo que escrevi era sobre um avião que caiu. Tenho um livro cuja primeira cena é um desastre de avião (e talvez também a última). Há referências ao assunto em três dos meus quatro romances. Quando vou passando pelos canais de televisão, distraída, e dou com um daqueles documentários sobre desastres aéreos, sempre paro, o controle-remoto na mão, os dedos paralisados, os olhos abertos, os ouvidos atentos. E assisto até o fim.
Dos últimos desastres de avião, o que me causou mais espanto, horror e – por que não dizer? – fascínio foi aquele na Grécia, onde as pessoas morreram congeladas, antes do impacto com a montanha. Não sei o que concluíram as investigações, mas achei tudo tão estranho que logo fiquei pensando em contatos com seres de outro planeta, principalmente ao saber que alguém dissera ao celular que o piloto estava azul. Depois essa história foi desmentida e parei de pensar em discos voadores. Ficou só a tragédia. Ficou só a dor.
Há uma música antiga de Chico Buarque, que diz que “a dor da gente não sai no jornal”. Mas sai, sim. Neste mundo caótico, a dor é de todos nós. E, por causa de tudo que está acontecendo, acabei sem contar uma história.
Mas juro que só agora, ao botar o ponto final, descobri que hoje é dia 11 de setembro.
Um pote de cerejas
(18/9/2005)
Já ia entrando distraída no supermercado quando, ainda perto da porta, seu olhos pousaram na gôndola cheia de sacos de cerejas. Cerejas? Já? Antigamente, lembrou a mulher, as cerejas só apareciam nos supermercados bem perto do Natal. Para ela, fanática por cerejas, era uma tortura esperar o ano inteiro. Agora, o mundo moderno, globalizado, tinha pelo menos essa vantagem: alguém dera um jeito de fazer as cerejas estarem em todos os supermercados de todos os países do mundo em várias épocas do ano (o mesmo, aliás, acontecendo com amêndoas, avelãs e outras coisas que antes só surgiam na época do Natal). Bem, fosse como fosse, lá estavam as cerejas, diante da mulher – como se a chamassem.
Ela se aproximou e pegou um dos saquinhos, sentindo as frutas sob os dedos, deles separadas apenas pela película de plástico. Através da matéria transparente, via as cascas brilhantes, de um vermelho cor de sangue ou cor de vinho. Estava convencida de que não havia fruta mais bela, mais saborosa, mais perfeita. Apesar do classicismo das uvas, do charme tropical das bananas e de todo o sentido mítico que cerca as maçãs, para ela não havia nada que se comparasse a uma cereja.
Para começar, a árvore. Certa vez, havia muitos anos, estivera em Washington num fim de inverno, comecinho de primavera, e percorrera um bairro residencial nos arredores da cidade cujas ruas só têm cerejeiras. Todas estavamem flor. Nãohavia folhas nas árvores, apenas aqueles cachos de flores delicadas, de um cor-de-rosa bem clarinho, cujas pétalas se desprendiam e caíam ao chão a qualquer toque, como as chuvas de flores num cenário de teatro. Aquelas mesmas árvores, de flores lindíssimas, depois dariam as frutas, de um vermelho encerado e perfeito, penduradas por seus talinhos esguios. E, como se tanta beleza não bastasse, as cerejas ainda são gostosas. Nem muito doces, nem muito azedas, com uma consistência boa de morder e um caroço que se desprende com um estalo, sem deixar traço na carne da fruta.
Foi pensando em tudo isso, e contente da vida, que a mulher levou para casa dois saquinhos de cereja. Foi pensando em tudo isso que lavou as cerejas, colocando-as num pote redondo, de vidro transparente, e depois se sentou na varanda para comê-las olhando a tarde lá fora. Comeu todas as cerejas, o pote inteiro. Depois olhou o pote vazio e o cinzeiro de cerâmica cheio de caroços. E então pensou algo diferente. Pensou em como é mesmo assim: uma mordida, um estalo, um gosto – e de repente fica só o caroço. A vida, como se diz, é só um pote de cerejas.
O rosto dos homens
(25/9/2005)
Fico olhando para o rosto dos homens.
Meu primeiro impulso, que refreio a custo, é o de trocar de canal, desligar a televisão, ir para bem longe dali. Sinto vergonha por eles. É uma sensação física, palpável, não só impressão ou força de expressão. Penso mesmo que chego a corar.
Mas algo me retém, imóvel. Como que hipnotizada.
Fico olhando para o rosto dos homens.
E me pergunto o que dizem em casa, para os filhos. Vêm-me à mente os velhos clichês sobre o que pensam ao se olhar no espelho, ao deitar a cabeça no travesseiro. Como será? Como será quando estão a sós consigo mesmos?
Sei que são perguntas tolas, ainda que me surjam, inevitáveis. Conheço de antemão as respostas, sei que os seres humanos, quando chegam a esse ponto, se dividem entre aqueles que tudo sabem – e que, com toda a frieza, se dedicam aos fins, sejam quais forem os meios – e os que criam mentiras e justificativas nas quais passam a acreditar. Estes, mentem acreditando que falam a verdade. São perigosos, messiânicos. Mas os outros também. Há em todos eles um toque de fanatismo, que me é assustador.
E fico olhando para o rosto dos homens.
Eles choram, dão murros na mesa, indignam-se. Parecem sinceramente ofendidos, enquanto nós, a tudo assistindo, passivos, já vemos assomar em nosso íntimo um vago sentimento de culpa. Vivemos a perplexidade dos pais que vêem o filho transformado num monstro, um assassino. Fomos nós que fizemos isso? Onde foi que erramos?
É o que às vezes me pergunto, enquanto olho para o rosto dos homens.
E eles são teatrais, apocalípticos. Manipuladores. Usam a própria família, num jogo sujo de chantagens e exibicionismo. Usam as próprias mulheres, exibindo-as, quase servindo-as, como se fossem prostitutas. E o pior: nós aplaudimos. A imprensa gosta, nós gostamos. E, se ser famoso é o que conta – não importando a razão da fama –, eles se transformamem celebridades. Osbandidos viram heróis no país do celebritismo.
Embora tudo isso seja apenas triste. Muito triste.
Cada vez mais, sobe-me a sensação de que todos ali são minimamente cúmplices. Todos. Não há inocentes em Brasília.
E assim se passam as horas, os dias. Mais uma vez, o real me chamou – não me deixando contar uma história. E, impotente, parada diante da TV, continuo olhando para o rosto dos homens.
Árvores
(2/10/2005)
Com a chegada da primavera, todos começamos a prestar mais atenção às árvores. São reportagens na televisão, matérias nos jornais. De repente, essas deusas majestosas, sábias em seu silêncio e imobilidade, se tornam o centro dos acontecimentos. Ótimo que seja assim. Eu andava mesmo cansada dos homens.
Vamos, então, às árvores.
Numa das reportagens a que assisto, fico sabendo que o Rio tem 660 mil árvores, contra apenas 90 mil de Paris, sendo uma das cidades mais arborizadas do mundo. Fico sabendo também que algumas árvores estão sendo tombadas, árvores individuais ou conjuntos de árvores, como as figueiras do século dezenove que ficam perto da Santa Casa (ali junto ao que restou da Ladeira da Misericórdia) ou aquelas que se debruçam sobre o canal da Visconde de Albuquerque, no final do Leblon. E, ouvindo isso, começo a fazer, em pensamento, um inventário das minhas árvores preferidas.
Já falei aqui da Palma Filia, a palmeira imperial que substituiu, no Jardim Botânico, a Palma Mater, fulminada por um raio em 1972. E das palmeiras que restam – altivas, elegantíssimas, enfileiradas – na Rua Paissandu. Falei também das árvores da Avenida Atlântica que parecem ter crescido sob o domínio do vento, humildes, vergadas, quase patéticas, e dos estranhos flamboyants em torno da Lagoa, que cresceram para baixo, com copas quase invertidas. Falei das paineiras, com seus troncos grossos, cheios de espinhos, seus galhos sustentando chumaços de algodão, e dos espinheiros que nos surpreendem, deitando cachos que têm cheiro de jasmim, num paradoxo de flores e espinhos. E ainda, é claro, das amendoeiras, do cheiro das amendoeiras – o perfume do Rio.
Mas acho que nunca revelei qual é a árvore que admiro mais.
Pois é a árvore gigante da Rua Pompeu Loureiro, pertinho da Travessa Santa Leocádia. Nunca soube que árvore é aquela, mas, pela estatura, desconfio que é originária da Amazônia, onde as plantas crescem sem parar, em busca de luz. A árvore da Pompeu Loureiro, cercada de asfalto e prédios, também parece ter-se projetado em busca de ar, de luminosidade. Sua copa é da altura de um prédio de oito ou dez andares. O tronco é tão largo que, para ser abraçado, precisaria do esforço de alguns homens. E, no entanto, ela é quase invisível em meio ao burburinho da cidade, numa rua como aquela, de passagem. Aposto que muita gente passa por ali e nem a vê: de tão imensa, ela nos escapa. Como o óbvio ululante de Nelson Rodrigues.
Megalomania
(9/10/2005)
Quando vi a fotografia, pensei que fosse um truque. Hoje em dia, os computadores fazem tudo. Era uma imagem da cidade de Barcelona, em cujo centro despontavam as famosas torres da Sagrada Família, a igreja de formato exótico, subversivo, o sonho inacabado de uma mente louca e especial: a mente do arquiteto catalão Antoni Gaudí. Mas, naquela fotografia, havia algo mais. O que era aquilo?
Antes de mais nada, devo confessar: acho a Sagrada Família monstruosa. E quando digo monstruosa, não quero dizer que seja uma construção feia. É que a sensação estética em mim provocada por sua visão é tão inquietante que quase se assemelha ao arrepio de ler um conto de terror. Aliás, não só a Sagrada Família, mas quase todas as construções de Gaudí. Nada está onde deveria estar. Nada é o que se poderia esperar. É como se o mundo tivesse desaparecido e nos víssemos, de repente, transportados para um universo paralelo, uma espécie de cópia bizarra do planeta que conhecemos. Em Gaudí, uma parede não é uma parede. Nele, a pedra ganha maciez e parece viva, como se metamorfoseadaem carne. Ouosso. Mais do que isso, é orgânica, tem textura de folha ou raiz, de pele ou escamas.
Tudo isso pode até ser feio, mas não há como negar que há ali um toque de genialidade. Ainda mais no caso da Sagrada Família. Nela, Gaudí inventou formas arquitetônicas que em sua época não podiam ser construídas, mas que hoje, com o avanço da tecnologia, se tornaram realizáveis. Ao morrer, em 1926, atropelado por um bonde, Gaudí tinha 74 anos e sabia muito bem que não conseguiria concluir a igreja cuja obra começara em 1882. Mas deixou esboços, desenhos, cálculos. E a igreja continua sendo construída até hoje (o que por si só já provoca polêmica). Seja como for, a importância da Sagrada Família é algo que não se pode negar.
Mas a megalomania dos homens é infinda.
E era isso que eu via agora, no centro daquela fotografia. Por trás das torres da Sagrada Família, despontava um foguete ou um supositório gigantesco, todo recoberto por pastilhas cintilantes. Com a presença daquele monstro, as torres de Gaudí, com toda sua força e estranheza, tinham sucumbido, quase desaparecido. O que era aquilo? Quem era o louco que queria esmagar assim um dos maiores símbolos de Barcelona, tentando suplantá-lo, se não pela beleza – pelo horror? Desci os olhos à legenda da foto. Não era um projeto. Não era um truque de computação gráfica. Era real. Tinha acabado de ser inaugurado. Um prédio de142 metrosde altura, de autoria do arquiteto Jean Nouvel. Isso mesmo, aquele que ia fazer o nosso Guggenheim.
Vejam só do que escapamos.
O palavrão
(16/10/2005)
A primeira vez em que aquilo me chocou foi no trânsito. Estava dirigindo, parada num sinal, talvez. Não lembro onde. Era uma avenida larga, coberta pela copa das amendoeiras, mas isso pode ser em inúmeros lugares do Rio. Ocorre que à minha frente, naquele sinal, havia um ônibus. Na traseira do ônibus, um anúncio. E, no centro desse anúncio, em letras gigantescas – um palavrão. O mais comum deles, de apenas cinco letras, o mais banalizado, quase transformado em interjeição – mas, ainda sim, um palavrão.
Ao lê-lo, com aquelas letras enormes, tive um pequeno sobressalto, aquilo me incomodou. Foi como se alguém me xingasse.
Não que a sensação tivesse algo de incomum. Isso, não. Somos agredidos de forma quase permanente, se não por palavrões, pelo menos por gritos (nos anúncio da televisão), por atitudes invasivas (nos infernais telefonemas oferecendo produtos), por imagens chocantes (como nas fotos de cadáveres que agora preenchem as páginas dos jornais e revistas sem qualquer pudor). Por tudo eem tudo. Atépela arte. Em todas as manifestações de arte existe a chamada estética do horror. Nela, a sensação que se quer provocar não é de beleza e sim de repulsa.
Enfim, tudo isso é mais do que sabido.
Mas, ainda assim, parada no sinal, as mãos sobre o volante, aquele palavrão me chocou. Sim, sem dúvida, era como se estivesse sendo dito para mim. Eu, que até falo palavrão de vez em quando, mas que acho difícil escrevê-los. Sempre admireiem Nelson Rodriguessua capacidade de descrever as cenas mais sórdidas sem usar o recurso do palavrão.
E enquanto pensava essas coisas eu me dei conta – ou me lembrei – de que aquilo na traseira do ônibus era na verdade o título de um livro. Há nas livrarias atualmente pelo menos dois outros livros incluindo palavrões em seus títulos, palavrões até mais agressivos do que aquele que eu estava vendo.
Talvez seja uma nova tendência, pensei. Como os livros sem título na capa ou como as capas não figurativas, mostrando apenas “texturas”. Tendência ou não, palavrões em capas de livros – e conseqüentemente estampados em letras imensas em anúncios pela cidade – são parte dessa realidade agressiva que nos cerca.
Talvez seja ingenuidade minha, não sei. Mas fiquei triste.
É que para mim o livro era o último espaço da delicadeza.
A mulher das mil vidas
(23/10/2005)
Foi uma sensação súbita de lucidez – e a mais absoluta. A mulher acordou de repente, no meio da noite, e entendeu tudo.
Fora assim desde criança. Mas pensava que todo mundo também fosse. Certa vez, lendo o depoimento de um esquizofrênico, se identificara um pouco com ele: é que o rapaz contava que, desde menino, ouvia uma voz lhe dando ordens, uma voz à qual dava o nome de O Controlador. E ele, o rapaz, achava aquilo natural. Pensava que todo mundo tivesse o seu Controlador. Da mesma forma, a mulher achava que todo mundo tinha a mesma mania que ela, aquela mania que vinha da infância.
Era assim: quando estava só, fazendo alguma atividade simples do dia-a-dia – como tomar banho ou comer um biscoito vendo televisão – ela de repente era transportada para outro mundo. De verdade. Não é que começasse a divagar, a pensar em outras coisas, distraída. Era muito mais do que isto. Era uma projeção de espírito, uma transposição de alma, um transporte – seja que nome for. Ela deixava de existir naquele presente e se transformava em outra pessoa, em outro lugar, ou nela mesma, mas em situação diversa, longe dali. E era algo real, palpável. Num minuto, estava diante da TV, digamos. E, no minuto seguinte, se achava subindo uma escada ou abrindo uma porta ou, ainda, tendo uma conversa qualquer.
Dizer que tinha imaginação seria pouco. Era mais, muito mais. Era uma capacidade total de abstração do presente, do próprio eu, seguida de uma transformação, de um transporte para outro eu, outro tempo e lugar. E ali, naquela nova situação, que existia apenas em sua mente, a mulher vivia vidas. Muitas vidas. Travava diálogos, vivenciava emoções, sofria e amava, tinha brigas terríveis ou simplesmente conversava, conversas tolas, sobre assuntos banais, sem qualquer importância – mas que não lhe pertenciam. Pertenciam, sim, a qualquer uma das centenas, milhares de vidas que pululavam dentro dela, numa dimensão misteriosa sobre a qual não tinha qualquer controle.
E foi assim que um dia – ou melhor, uma noite – a mulher das mil vidas foi envolvida por aquela lucidez.
Ficou sentada na cama, no escuro, paralisada pela sensação avassaladora. Como se estivesse diante de um “Aleph”, assistia a tudo, sentia tudo, era como se todas as existências que carregava dentro de si desfiassem à sua frente. Compreendeu num segundo que gastara a própria vida na vivência de todas aquelas vidas. Antes do tempo. Muito antes do tempo. E foi nesse preciso instante que sentiu a pontada no peito.
Ninho nas ruínas
(30/10/2005)
Devagar, muito devagar, com uma lentidão quase torturante – ele passou.
Fiquei olhando.
Havia dignidade em seu andar, apesar de tudo. A firmeza do passo, um após o outro, dava-lhe uma altivez surpreendente, considerando-se que só olhava para o chão, o pescoço inclinado num ângulo quase inumano, a uma distância mínima da impossibilidade. Uma lesão na coluna cervical, talvez. Uma degeneração qualquer fizera seu pescoço pender para frente, o queixo quase colado ao peito, como se buscasse qualquer coisa no chão – eternamente.
Não sei quantos anos teria, mas seguramente mais de 80. Acompanhado, saía a passear. Mas seu olhar já não podia varrer a paisagem, o mar, as ruas. E o céu? – pensei, com um estremecimento. Será que, recostado, e com a ajuda da visão periférica, ele ainda podia vislumbrar uma nesga de céu? Ou a grandeza de todo esse azul que o Rio nos brinda estaria para ele para sempre perdido?
De repente, imaginei-o jovem, forte, vibrante. Olhando para todos os lados, para cima e para baixo, correndo, fazendo esporte. Tão distante daquela realidade a que eu assistia agora, a de um homem que se move à frente, passo a passo, com o olhar irremediavelmente preso ao chão. E foi então que a frase me veio à cabeça. A frase de Mae West, com seu humor sarcástico quase intraduzível: “Getting old is not for sissies”. De fato, envelhecer não é para os delicados – é tarefa árdua, que demanda extrema coragem. Aquele homem que eu tinha agora à minha frente, por exemplo. Era um colosso de resistência.
Tenho visto muitos bravos, como ele. Homens e mulheres que lutam contra o tempo, contra a natureza. Contra tudo. E há poesia e beleza nessa batalha, que cada um trava a seu modo, buscando a própria trincheira.
Agora ele já vai longe, no quarteirão seguinte, mas eu continuo a acompanhá-lo com os olhos. Seu boné branco, à distância, parece um barquinho contra o azul do mar. Flutua, inclinado, vergado não pelo vento, mas pela marcha feroz do tempo. Nada o detém. E ele segue. Um passo depois do outro. Quando afinal desaparece, fico por um instante desconcertada. Mas depois sorrio. E penso agora, não maisem Mae West, masem Aldir Blanc, esse eterno menino que se diz velho, cujo humor sardônico nos trouxe agora, há pouco tempo, mais um verso belíssimo. Que importa se o corpo decai, descai, se esfacela? O homem, na poesia de Aldir, encontra forças em jovens corpos morenos, desafiando a quem o critica. E decreta: “Andorinhas fazem ninho nas ruínas”.
Premonição
(6/11/2005)
Ela se ergueu da cama e caminhou pelo quarto, as mãos tateando os móveis com desenvoltura. Mãos ágeis, rápidas, que pareciam ter vida própria. Mãos que eram também seus olhos.
Parou junto à penteadeira e, num gesto mecânico, sem se sentar, alisou os cabelos. Por que continuava a se postar diante da penteadeira se já não podia ver a própria imagem no espelho? Não sabia. Continuava fazendo certas coisas sem saber por quê. Mas também aprendera muito naqueles anos. As mãos reconheciam nuances, texturas, enquanto sons e odores lhe mandavam uma miríade de mensagens, na sintonia fina desenvolvida pelos sentidos.
Agora mesmo, seus olhos lhe passavam uma sensação mínima de luz, assegurando que amanhecera. Ainda era capaz de captar mudanças de luminosidade. Mas não era só isto. Era também pelo ar, pelos sons, por tudo, que descobria as horas. Sabia que era muito cedo ainda. A brisa matinal era quase fria. Inspirou fundo. E dois pensamentos lhe ocorreram: o primeiro, de que era estranhamente feliz naquela manhã; o segundo, de que sentia falta de sua amiga Clarita. Mas foi só no instante seguinte que se deu conta do perfume.
Um perfume cítrico, seco, quase masculino. A água de colônia que usava sua amiga Clarita.
Era isto, então. Era ela. Sua amiga estava ali.
– Clarita?
No silêncio do quarto, no silêncio da manhã – nada. Nem um sussurro, nem um estalo. Nada. Mas era Clarita, tinha certeza. Pensara nela. E, quase simultaneamente, sentira o aroma. Era ela, que queria lhe dizer alguma coisa.
Sentou-se no banco da penteadeira. Seus dedos passearam pelo tampo de vidro, tocaram na escova de metal trabalhado, com cerdas macias, que ganhara de presente de casamento, mais de sessenta anos antes. Seus dedos, seus olhos, seguiram pelos objetos tão conhecidos, sem saber o que buscavam. O perfume se esvanecera. Agora, ela estava só.
Muito tempo depois, quando a neta bateu na porta e espiou para ver se ela já estava acordada, ainda a encontrou sentada diante da penteadeira.
– Aconteceu alguma coisa com Clarita?
– Por que, vovó? – e a voz da mocinha traiu uma agitação.
– Porque, agora mesmo, ela esteve aqui.
Noite na Lapa
(13/11/2005)
Não faz muito tempo, passei de táxi pela Lapa num dia de semana à noite, não me lembro se terça ou quarta-feira. Deixei, na altura da Fundição Progresso, uma pessoa que dividia o táxi comigo e segui até a Gomes Freire para fazer o retorno. Dessa forma, passei duas vezes sob os Arcos, indo e vindo. E, nessa pequena volta que dei pela região, fiquei mais do que nunca impressionada. Mesmo sendo meio de semana, a Lapa noturna parecia mais viva do que nunca. Fervilhava.
Talvez o fato de não estar dirigindo me tenha dado a oportunidade de prestar mais atenção, pois sempre que ando de táxi ou ônibus, ou mesmo de carona com alguém, aproveito e olho a cidade (não me canso de olhar o Rio). O fato é que naquela noite os casarões reformados e iluminados me pareceram mais numerosos do que nunca. E de uma beleza quase assombrada.
As fachadas iluminadas me olhavam com seus olhos de janelas, enquanto as portas eram bocas engolindo e cuspindo pessoas. Havia inúmeras fachadas lindas, com seus detalhes de pedra ou gesso formando arabescos e volutas, com varandas de ferro batido e portas de duas bandas, imensas, emolduradas por portais de granito. E todas iluminadas com fachos indiretos de luz, o que lhes aumentava a beleza e o assombro, fazendo-me pensar na fantástica Casa Batló de Gaudí em Barcelona, com suas varandas de ferro lembrando a máscara de Dart Vader.
Mas naquele entra-e-sai de gente nada havia de maléfico. Havia, sim, alegria. E quase todo mundo ali me parecia muito jovem. Fui para casa feliz.
Poucos dias depois, a impressão que tivera se comprovou: li numa pesquisa que 80 mil pessoas vão à região da Lapa todos os fins de semana e que, dessas pessoas, 67 por cento são jovens. Então era isso mesmo. Aquele fervilhar de rapazes e moças não era algo incomum. Era o que acontece sempre.
Pensando bem, foram mesmo os jovens que revitalizaram a Lapa, primeiro com o samba, com o Semente, e depois com tudo o mais. E na mesma semana em que li sobre a pesquisa, soube também que se realizou um festival de choro no Circo Voador, lugar que geralmente associamos ao rock. Um fim de semana inteiro só de choro. Na Lapa. Um lugar freqüentado por jovens. Esta Lapa que é do samba, do choro, do rock, de tudo e de todos. Tudo isso é muito bom, tudo isso é democraticamente carioca. E parece desmentir as manchetes que insistem em apregoar a vitória do medo e o fim da noite do Rio.
Uma obra de arte
(20/11/2004)
Não sei fazer nem ovo frito.
Como filha de uma grande cozinheira, cresci completamente à margem de tudo o que se desenrolava na cozinha, aposento da casa do qual era permanentemente expulsa (“lugar de criança não é aqui”). Minha mãe sempre monopolizou os trabalhos. Acho que nem para ajudante servi. Nos dias, por exemplo, dos grandes almoços de comida baiana, o máximo que me era permitido era cortar os quiabos para o caruru, e mesmo assim achava aquilo uma tarefa bastante complexa: é preciso tirar as duas pontas, depois cortar o quiabo no sentido longitudinal, em cruz, para em seguida fazer uma segunda cruz enviesada e só então cortar em rodelas (entenderam?). Não era fácil, não. Foi por coisas assim que nunca aprendi a cozinhar.
Mas outro dia, sem qualquer razão, remexendo num armário de minha mãe, retirei de lá um livro de receitas e me sentei para examiná-lo. Era um livro antigo, muito antigo, com a capa de um couro escuro, cheio de manchas, e folhas amareladas, também repletas de nódoas. Sabia que aquele era o livro de receitas de minha avó. Não a avó que me contava histórias, mãe de meu pai, da qual às vezes falo aqui, mas da outra, mãe de minha mãe. Dela, eu não gostava. Era uma mulher rígida, conservadora, quase sempre vestida de preto, cujo semblante fechado nos assustava, a nós, crianças. Seu passo arrastado pelos corredores era a senha para a debandada. Nós a temíamos.
E agora, ali estava, em minhas mãos, seu livro de receitas. Comecei a folheá-lo. As nódoas nas páginas pareciam fazer revelações, cada mancha era talvez uma gota caída durante a elaboração da receita, na pressa do dia-a-dia. E as próprias receitas já contavam histórias. Falavam de um mundo que não existe mais, um mundo pesado em libras, com muitas galinhas no quintal (tantas libras de açúcar, uma colher de enxúndia, 18 gemas). Mas o que mais me comoveu foi a letra. Todo escrito a mão, com aquela caligrafia que hoje só vemos em convites de casamento, o livro revelava uma delicadeza que me parecia estranha à minha avó, pelo menos àquela mulher de roupa escura e semblante fechado que guardei da infância.
E fiquei pensando: algumas pessoas acham que a vida só tem sentido para quem deixa um legado, um registro artístico qualquer. Bobagem. Não há diferença entre deixar para trás uma escultura gigantesca, que paire sobre toda uma cidade, e um simples livro de receitas – desde que ambos sejam capazes de um dia, no futuro, comover pessoas. Ou uma pessoa, que seja. Nisso, minha avó se igualou aos artistas. A seu modo, deixou uma obra de arte.
Debutantes
(27/11/2005)
Outro dia, falava aqui em registros, rastros, em tudo o que deixamos para trás. Pensava não apenas nos artistas, naqueles que pintam, esculpem, compõem, movidos por essa estranha compulsão que é a arte, mas também nas pessoas comuns – que deixam as pequenas marcas. São as que me tocam mais.
Pois eis que, folheando revistas antigas, compradas num sebo, abri um exemplar de “O Cruzeiro”, de janeiro de 1960. As revistas antigas são uma viagem ao passado real. Através dos anúncios, das banalidades do dia-a-dia, elas nos permitem quase tocar na vida como ela era, o mesmo não acontecendo com os livros, que talvez tenham a pretensão de ser mais eternos. Enfim, gosto das revistas antigas. Mas naquele exemplar de “O Cruzeiro” havia algo mais.
Logo no começo da revista, meus olhos se prenderam a uma foto em preto e branco, em página dupla, retratando moças num salão de festas. Mas a decoração me pareceu muito estranha. Cheio de objetos de difícil identificação, o salão tinha tiras negras, tecidos estranhos caindo do teto como serpentinas macabras. E destroços. Em contraste, todas as moças estavam vestidas de branco e pareciam felizes. Sorriam. Que lugar seria aquele, que parecia saído de um sonho – ou de um pesadelo?
E só então passei da imagem às palavras. Um texto, no alto, explicava tudo. Eram as fotos do primeiro baile de debutantes de Brasília, realizado no mês anterior, dezembro de 1959. O repórter fotográfico Luciano Carneiro fora enviado à novíssima capital para fazer a matéria. Tirara as fotos. Na volta ao Rio, o avião em que viajava, um Viscount da Vasp, se preparava para pousar no Galeão quando se chocou no ar com um avião da FAB. Todos morreram. No meio dos destroços, foram encontradas as duas máquinas fotográficas e mais a maleta de material de Luciano. Tudo foi levado para o laboratório e, milagrosamente, os filmes não estavam velados. Ali estavam as fotos. O que fora possível salvar delas.
A revista publicava as fotografias chamuscadas, manchadas, e deixava em branco o espaço delimitado para o texto, numa homenagem a Luciano. Fui passando as páginas. Eram muitas. Fotos gerais das moças no salão, grupos de três ou quatro, closes de um rosto. Em todas, o calor das chamas imprimira tintas de uma beleza estranha, inquietante, quase sobrenatural.
E a foto mais impressionante era o close de uma jovem, uma morena bonita de olhos cintilantes, úmidos. Seu rosto estava encoberto por uma película negra, um véu escuro, como num luto antecipado. E ela sorria um sorriso triste.
Carmen
(4/12/2005)
Como no filme de Saura, Carmen, aconteceu assim: realidade e ficção se misturaram. As fronteiras foram destroçadas e sua história – de luta, de sucesso, de dor e de amor – embebeu nossas vidas, nos envolveu. Para nós, também, houve sangue e feridas, paixão e drama.
Foi uma saga.
Uma aventura, um romance como os de antigamente, com perigos de vida e morte, embates, desafios. Carregamos pedras para compor um castelo que mal podíamos divisar, tomamos caminhos perdidos no horizonte, sem norte, sem saída. Caminhamos numa floresta encantada, cheia de sombras ameaçadoras, de perigos reais. À frente, o desconhecido, em torno, a noite. E atrás de nós, na areia macia, os passos furtivos da morte. Houve momentos de enlevo, de esperança, mas também trâmites assustadores, dramáticos, em que acreditamos nunca poder chegar ao fim. E ainda assim seguíamos, sempre, sempre – por você. Apenas por você.
Você nos chamava.
Foi repetindo suas canções, como um mantra, que continuamosem frente. Aquelaalegria que delas escorria nos dava a sensação de segurança, de que estávamos a salvo, de que nenhum mal poderia nos acontecer.
Você foi o norte, o porto, o farol, como aquele que um dia lhe proibiram no turbante. Você foi a tábua de salvação. Desses olhos cintilantes, manchados por um sinal único, especial, surgiu talvez a luz. Deles, de seu sorriso, de sua alegria, de algum lugar que nem sabemos qual é, nem onde está agora. Mas de algum lugar, sim, sua força vital emanou para nós – e nos protegeu.
E foi assim que um dia me peguei rezando por você. Mais do que isso. Um dia, quase sem querer, me encontrei diante de seu túmulo, a mão na lápide de pedra cor de cobre, olhando para a imagem do Santo Antônio, emocionada, como se tivéssemos sido amigas. De um dos lados, reparei que havia um ramo de lírios. Lírios, com seu aroma de festa e dor, de casamento e morte, essa mistura que foi sua vida, que é a vida da gente – a vida de todos nós.
E então percebi que não rezava por você, mas para você, quase como se a tivesse beatificado. Para que continuasse nos envolvendo, nos protegendo, nos aquecendo a todos com sua luz. A esse país inteiro, que foi seu grande amor.
O Rio de Vinicius
(11/12/2005)
Tenho lido sobre o filme de Vinicius (que ainda não vi, mas quero ver). Dizem que é um belo documentário (não duvido) e que mostra um Rio que não existe mais. Um Rio romântico, descontraído, boêmio, completamente relaxado. Dizem que as pessoas saem do cinema suspirando de saudade daqueles tempos, de uma época que não volta mais, de um período que mesmo os mais jovens invejam, querendo ter vivido. Tudo isto tenho ouvido.
E fico pensando.
Talvez essas pessoas que suspiram de saudade de um Rio que não existe mais estejam precisando de uns conselhos.
Por exemplo. Sugiro que os nostálgicos comecem a semana dando um pulo lá no Renascença, para conhecer o Samba do Trabalhador. Num terreno descoberto, com o sol a pino, sob a batuta de Moacyr Luz e outros bambas, as pessoas se reúnem para uma roda de samba que é só alegria, descontração. Se forem lá, reparem na expressão das pessoas. Que gente feliz. Negros, brancos, velhos, moços, homens e mulheres se divertindo como nunca, parecendo sentir um prazer especial por estar ali numa tarde de segunda-feira, em pleno horário de trabalho. É uma multidão lotando a quadra, sambando, cantando e, com todo aquele sol na cabeça, tomando às colherinhas caldo de feijão ou sururu. Coisa de profissional. Mas, que é uma beleza, é. E ali ninguém parece estar com saudade de nada. Saudade de quê?
Mas vamos adiante. Se quiserem um programa mais leve, mais bossa-nova (já que a conversa começou com Vinicius), sugiro que os nostálgicos do Rio dêem um pulo na Modern Sound, num fim de tarde (qualquer dia da semana), para tomar um drinque e ouvir boa música. Ou que passeiem pela região que fica entre o Centro Cultural Banco do Brasil e a Praça Quinze, percorrendo a rua do Ouvidor, a rua do Rosário, comendo petiscos nos bares, como o Antigamente ou qualquer um do Arco do Teles, entrando nas livrarias, como a Folha Seca ou a Al Farabi, comprando pão na Brasserie Rosário e depois voltando para casa no fim da tarde, pelo Aterro, pela praia, para ver o pôr do sol. Ou que subam a Santa Teresa de bondinho, para uma visita ao Parque das Ruínas, ao Museu Castro Maia, às lojinhas e restaurantes, com ou sem vista, com ou sem música, não importa. Ou ainda que tirem uma tarde para passear dentro do Instituto Moreira Sales.
Pensando bem – desisto. Teria de escrever cem contos mínimos se quisesse listar aqui todas as delícias de um Rio que é eterno, esta cidade única, de sorriso e fogo. Um Rio que é como um rio, que não para de correr, por mais que insistam em dizer que ele acabou. Um Rio que – tenho certeza – Vinicius adoraria.
Em tempo
(18/12/2005)
Tudo bem que o ministro tentou disfarçar indo ao Samba no Trem e tudo o mais. Mas uma coisa é inegável – o tal samba de roda da Bahia, que foi declarado patrimônio da humanidade, tem muito pouco a ver com o verdadeiro samba, o samba com letra maiúscula, sem necessidade de adjetivação, que é do Rio, sempre foi, que representa o Brasil no mundo inteiro e que é indiscutivelmente O Samba. O nosso samba. O samba de roda, com uma batida que lembra a do Camdomblé, pode ser uma coisa muito interessante, de raiz, tanto quanto o é o jongo da Serrinha, mas samba mesmo, de verdade, é este que temos aqui e ponto final. E é este que deveria ter sido considerado patrimônio da humanidade.
Vi na televisão uma pesquisadora explicando as diferenças, dizendo que o nosso samba é totalmente diverso do samba de roda baiano porque a batida iorubá é diferente da batida banto, e que por isso um não pode ser considerado filho do outro. Deve ser verdade. Meu conhecimento musical e antropológico não chega a tanto. Mas minha experiência pessoal confirma o quanto o samba é carioca. Nasci no Rio e me criei gostando de Carnaval, acompanho os desfiles das escolas desde os anos 60, freqüentava as quadras do Império e da Portela nos anos 70, desfilei umas dez vezes nos anos 80. Sempre, aqui no Rio, prestei atenção à batida do samba nas ruas – que estava em toda parte. Ao mesmo tempo, tenho um pé na Bahia, e um pé bem fincado, pois sou filha de pai e mãe baianos, estando cercada de baianos por todos os lados, avós, tios, primos, todo mundo. De dois em dois anos, durante toda a minha infância e adolescência, passei as férias de fim de ano na Bahia, em Salvador ou no sítio de meu avô,em Feira Velha. Adoroa Bahia. Mas nunca, em todos esses anos, ouvi batuque, nem antes nem durante o Carnaval. Eram corsos, bailes, marchinhas, frevos. Tudo, menos samba.
Lembro de ter passado o Carnaval de 72 na Bahia, em plena época do desbunde, com os trios elétricos já soltos nas ruas, gritando seus frevos e marchinhas. Voltei frustrada, com a sensação de ter perdido o Carnaval. Não entendia bem por quê. Até que percebi. Não tinha ouvido, nem uma única vez, aquele barulho que bate na boca do estômago, que faz corpo e alma balançarem, aquele ruído sem igual que é como um imenso coração dentro de nós: a batida dos surdos. Naquela época, ninguém batia tambor no Carnaval da Bahia. Hoje, até batem. O Olodum está aí para isso. Mas é uma batida completamente diferente, bem mais simples, inclusive. Não tem nada a ver com samba.
E, àqueles que insistirem na alegação de que tudo começou no samba de roda baiano, de que é uma questão de raiz, eu respondo: nesse caso, o samba é africano.
Presente de Natal
(25/12/2005)
Este ano eu me dei um presente de Natal. Foi quase sem querer que aconteceu. Estava eu em casa um dia de manhã, quando uma amiga telefonou e, sem preâmbulos, me perguntou: Você não quer doar a sua medula?
Levei um choque. Durante alguns segundos, fiquei muda, enquanto sentia um friozinho me subindo pelas costas. Não sou dessas pessoas medrosas que desmaiam na hora de tirar sangue, mas, ao ouvir aquela pergunta, imediatamente me imaginei deitada numa maca, com alguém me enfiando uma cânula e tirando um líquido da minha espinha. Falei isso para minha amiga e ela riu. E então, com toda a paciência, me explicou: doar a medula significa apenas se cadastrar como doador. Para isso, basta você ir a um determinado lugar tirar um pouquinho de sangue – apenas duas ampolas, como se fosse para um exame comum –, dar nome e endereço e esperar. Mais nada.
Como assim, mais nada? – perguntei, meio desconfiada. E ela, sempre paciente, continuou explicando. Disse que medula é quase como impressão digital, cada pessoa no mundo tem um tipo. Por isso, é dificílimo encontrar um doador. Se você estiver precisando de um transplante de medula (nos casos de leucemia e de outras doenças medulares) e tiver um irmão gêmeo idêntico, sorte sua. Já tem um doador. Mas se tiver um irmão gêmeo não idêntico, sua chance de uma medula compatível já cai para 50 por cento. Se tiver irmão ou irmã, mas não gêmeo, a possibilidade é ainda menor: de 25 por cento. E pára por aí. Com todos os outros seres do planeta, inclusive seu pai e sua mãe, as chances de compatibilidade são de uma em um milhão. Por isso, continuou minha amiga, é importante que todo mundo se cadastre como doador. Porque hoje em dia existe uma rede mundial na internet que é rastreada a cada vez que alguém está precisando de um transplante. Se estiver cadastrado, você de repente pode ter sua medula compatível com a de alguém que está em Tegucigalpa ouem Roma. Sóentão, se for localizado um receptor compatível, é que você será chamado. Aí, sim, terá de se internar para retirar um pouco (só um pouco) de sua medula óssea, mas não na espinha, como imaginamos, e sim no osso da bacia, que é resistente. É uma operação simples, feita com anestesia, e você fica no hospital de um dia para o outro. Depois sai, sem qualquer seqüela. Só fica uma cicatriz pequenininha no bumbum, onde a gente toma injeção. É um milhão de vezes mais simples do que uma lipoaspiração – disse minha amiga – e você está ajudando a salvar uma vida.
Não precisei ouvir mais nada. No dia marcado, fui com ela ao Hemorio, tirei meu sangue e me cadastrei. E saí de lá com algo melhor do que qualquer presente de Natal: essa sensação única, ímpar, avassaladora, que nos envolve quando dividimos felicidade.