1918 – o ano em que tudo acabou

Quem vai hoje a Viena e se vê diante dos fragmentos de sua belle époque – o fantástico momento vivido pela capital austríaca na passagem do século XIX para o século XX – não pode deixar de pensar no que teria acontecido se a Primeira Guerra Mundial não tivesse posto tudo a perder. A Viena de 1900 – e dentro dela a Secessão, o art nouveau austríaco – foi uma dessas passagens únicas vividas pela humanidade, comparável aos anos loucos na Paris de 1920. Conhecida também como Jugendstil (Estilo jovem), a Secessão foi muito inspirada no art nouveau francês, mas teve vida própria e revelou gênios que talvez tivessem tido mais visibilidade se não fosse a guerra e tudo o que veio em seu rastro.

Ao contrário de outros movimentos artísticos, a Secessão surgiu, entrou em ebulição, expandiu-se, mas não foi morrendo aos poucos: desapareceu de um golpe, como se um daqueles terríveis Cavaleiros do Apocalipse tivesse decidido dizimá-la. E tudo se concentrou em um único ano – 1918.  Nunca, talvez, na história, um ano foi tão esmagador para um movimento artístico quanto 1918 para a Secessão.

Naquele ano, havia uma boa notícia, é verdade: a guerra estava acabando, mas o fim de um conflito que destruíra o Império Austro-húngaro era também o marco zero de uma nova era – e essa era não mais pertenceria a Viena. O Imperador Francisco José, grande incentivador das artes e da cultura, e sua mulher, Elizabeth, a Sissi, estavam mortos – ela, assassinada por um anarquista em 1898, com uma estocada no coração; ele, de causas naturais, já muito velho, em 1916. Com a derrocada na guerra, seu sucessor, Carlos I, acabaria fugindo para a Ilha da Madeira, e seria implantada a república.

Desde sua eclosão, a guerra já ceifara de forma abrupta todo um mundo de beleza que tinha seu epicentro na capital austríaca, onde ecoavam ainda as valsas de Strauss, onde as mais belas sinfonias eram regidas por Gustav Mahler, então diretor da Ópera de Viena, e onde Freud pensava a alma humana nos grandes cafés vienenses. Mas, ao fim do conflito, em 1918, foram as artes visuais que levaram o pior golpe. Por uma impressionante coincidência, morreram naquele ano de 1918 quatro dos maiores artistas da Secessão: Gustav Klimt (em fevereiro), Otto Wagner (em abril), Kolo Moser e Egon Schiele (ambos em outubro). E dá até para se pensar que a guerra estivesse, de alguma forma, por trás dessas mortes.

O arquiteto Otto Wagner morreu já velho, é verdade, mas Klimt tinha 48 anos quando teve um derrame fulminante. Quem pode dizer se o estresse de ver seu país destroçado não teve alguma relação com isso? Kolo Moser morreu de câncer na garganta, aos 40 anos, e fico me perguntando se a depressão causada pela guerra também não teria desencadeado o tumor. Dizem que depressão dá câncer. E o último deles a morrer, Egon Schiele – com apenas 28 anos, no auge de uma carreira brilhante – este, sim, foi vítima direta da Grande Guerra: morreu de gripe espanhola, a epidemia que se espalhou pela Europa por causa dos cadáveres insepultos deixados pelo conflito. Coincidência ou não, o fato é que essas mortes selaram o fim da Secessão. Nada mais seria como antes.

A Secessão

A revolução estética dos anos 1890, a arte vienense do fin de siècle, foi um movimento contra o classicismo e o naturalismo, que se estendeu à arquitetura (com Otto Wagner, e também com Adolf Loos e Josef Hoffmann, entre outros), à literatura (Rainer Maria Rilke, Arthur Schnitzler) e à música (com Mahler e mais tarde Arnold Schönberg).

Nas artes plásticas, esse movimento de inquietação e ruptura foi marcante, tanto que seus maiores representantes, Gustav Klimt e Kolo Moser, fundaram, em 1897, ao lado de outros 21 companheiros, a Associação de Artistas da Secessão Austríaca. E eles não se limitaram a criar um movimento: decidiram construir um espaço físico, um prédio, que pudesse abrigar as exposições de seus afiliados. Foi assim que nasceu a Secessão de Viena, um prédio branco, de linhas retas, com uma cúpula espetacular, toda filigranada, formada por uma rede de folhas de metal pintado de dourado, que até hoje chama a atenção na Friedrichstrasse.

O prédio, obra do arquiteto Joseph Maria Olbrich, um dos alunos mais brilhantes de Otto Wagner, chocou muita gente, mas o que aconteceria dentro dele, nos anos subsequentes, chocaria ainda mais. A exposição de 1902 – dedicada a Beethoven – foi uma dessas ocasiões. Todos os artistas da Secessão foram convidados a fazer homenagens ao grande músico, que vivera e morrera em Viena quase cem anos antes. Entre eles estava Gustav Klimt, que pintou nas paredes do prédio um friso com a interpretação pictórica da Nona Sinfonia, com monstros, mulheres nuas e beijos sensuais que provocaram escândalo – mas fizeram história.

O Friso de Beethoven, que era para ser retirado ao fim da exposição, acabou sendo comprado por um colecionador e resistiu a tudo, inclusive à invasão da Áustria pelos nazistas. Até que, em 1986, voltou para as paredes do prédio da Secessão e está lá até hoje. Olhando-o, dá para se compreender por que Klimt incomodava tanta gente. Era moderno demais para sua época.

E essa sensação é ampliada se observarmos as três pinturas (ou melhor, suas fotografias porque, lamentavelmente, as três foram destruídas na Segunda Guerra) que Klimt fez para o teto da Universidade de Viena, representando a Filosofia, a Medicina e a Jurisprudência. As duas primeiras, mostrando homens e mulheres se retorcendo em êxtase ou sofrimento, como se soltos no espaço, refletem uma falta de sentido da vida, que os críticos consideraram uma influência do pensamento do filósofo Schopenhauer. Não admira que elas tenham provocado a ira dos acadêmicos. Mas foi na terceira pintura, quando já estava sob o tiroteio dos críticos, que Klimt radicalizou ainda mais: a modernidade e a ousadia do quadro que representa a Jurisprudência, com suas figuras humanas dentro de balões, são quase um escárnio. Não dá para imaginar aquilo no teto de uma universidade em 1903. As obras de Klimt teriam de esperar muitas décadas até que fossem transformadas quase em cultura pop, como acontece agora… Assim eram os artistas da Secessão.

Também na arquitetura, foram muitas as rupturas. O arquiteto Otto Wagner foi um dos mais influentes arquitetos da Viena do fim do século XIX e já era consagrado quando aderiu ao art nouveau austríaco, para surpresa de muitos. As estações que fez para o metrô são lindas, com muito trabalho em ferro e colunas, mas ele fez também prédios impressionantes, como a Majolikahaus, de 1899, uma construção cuja fachada é em majólica (material que, anos mais tarde, seria muito utilizado pelo art déco) e cujas escadarias semelhantes às ramas de um vinhedo chegam a lembrar Gaudí.

Já Kolo Moser é um dos maiores gênios que o design e as artes gráficas já conheceram. Começou como ilustrador, trabalhando a partir de 1888 em diversas publicações, tanto de Viena, quanto da Alemanha, e fez de tudo, incluindo pinturas a óleo, móveis, desenhos de selos e até de notas bancárias. Foi membro da Associação de Artistas Vienenses até romper com esta para, ao lado de Klimt, fundar a Secessão. Tornou-se então o principal curador das exposições organizadas pelo movimento, mas não ficou só nisso, porque acreditava que a própria vida devia estar permeada pela arte.

Por causa dessa convicção, fundou, em 1903, ao lado de Josef Hoffmann e do industrial Fritz Waerndorfer, a Wiener Werkstätte, marca que ganharia fama internacional, verdadeiro fenômeno do design. A Wiener Werkstätte produzia móveis, objetos, utensílios, acessórios de moda, tecidos, tudo, e os designers acompanhavam todo o processo de manufatura, até o produto final. Olhando hoje o design dessas peças – muitas das quais estão expostas no Museu Leopold, em Viena – e também os traços dos desenhos gráficos de Kolo Moser, vemos que, como gênio, ele estava à frente do seu tempo: seu design antecipa o movimento art déco, que só eclodiria dali a mais de dez anos.

O expressionismo

Mas Moser pelo menos teve tempo de fazer muitas coisas antes daquele malfadado ano de 1918. Pior foi o que aconteceu com Egon Schiele.

Schiele foi apadrinhado por Gustav Klimt quando era ainda bem jovem, aos 19 anos, e no início seu estilo era muito semelhante ao do mestre. Isso foi em 1909, quando a Secessão já tinha mais de dez anos. Mas logo Schiele desenvolveria um estilo próprio, que mais tarde os críticos classificariam como algo além da Secessão: Schiele foi, ao lado de Oskar Kokoschka, a vanguarda do expressionismo austríaco e europeu. Suas pinturas e desenhos de traços retos, com braços e pernas desarticulados como se fossem bonecos de engonço, ou marionetes, são quase cubistas.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial (durante a qual serviu em Viena, podendo assim continuar pintando), Schiele vivia um grande momento e se preparava para ser um artista de renome mundial, já tendo feito exposições em Berlim, Estocolmo e Copenhague. Acabara de fundar, com vários outros artistas, a Sonderbund, uma reedição do Grupo da Nova Arte, ao qual pertencera no início da carreira. E então aquele Cavaleiro surgiu no horizonte. A mulher de Schiele, Edith Harms, grávida de seis meses, pegou a gripe espanhola e morreu. Schiele ainda fez desenhos dela em seu leito de morte. Seriam suas últimas obras. Poucas semanas depois, ele sucumbia também. Pior para a arte.

 

 

(Revista Florense)