Assisti por acaso ao trecho de um filme (Palavras de amor, com Richard Gere e Juliette Binoche) de uma menina que sabia soletrar. Ganhava todos os concursos em que se metia, deixando para trás gente com muito mais idade do que ela. Um dia, sua mãe lhe pergunta por que ela fecha os olhos na hora de soletrar. E ela responde que vê a palavra se formar na própria mente. E que, em seguida, a própria palavra sussurra para ela suas sílabas, uma por uma. Por isso, a menina não erra nunca.
Essa ideia da palavra materializada – tornada em algo quase humano – ficou na minha cabeça. A palavra desenhando-se a si mesma, designando-se (designar, design), sílabas e sons se juntando para formar significados. A palavra como um objeto.
Mais: a palavra como algo vivo. É assim que a vejo.
A palavra é tão importante na minha vida que a encaro como algo palpável, ao alcance da mão. Ela é minha matéria-prima, meu sustento, meu lazer e minha salvação. É, sobretudo, meu principal elo com o mundo. A mim ela se apresentou de três formas – a palavra contada, a palavra lida, a palavra escrita –, sempre de uma maneira encantatória, quase sobrenatural.
Primeiro, a palavra contada. Antes mesmo de aprender a ler, eu me vejo sentada no chão do sítio que tínhamos, em Jacarepaguá, no Rio, para ouvir minha avó Mariá contar histórias – quase sempre histórias assombradas. As noites no sítio, principalmente as noites de chuva – e chovia muito à noite, porque é sempre verão na minha infância – eram passadas assim: nós, as crianças, sentadas em torno de Mariá, no sofá que ficava perto da janela, e ela contando, contando. Tinha cabelos brancos, aquela palavra contada.
Depois, a palavra lida. Assim que aprendi a ler, aprendi também a amar os livros, porque eles me permitiam viajar para bem longe, que era quase sempre onde eu queria estar. Foi o que aconteceu certa vez, num dia aborrecido, em que eu estava sozinha, sem ter o que fazer, na casa de uns tios. Andejando pela casa, entrei no gabinete de trabalho do meu tio, lugar onde em geral as crianças não podiam brincar. Entrei e observei as paredes forradas de alto a baixo de volumes encadernados.
Nunca tinha olhado direito para aqueles livros. Já gostava de ler, mas por algum motivo, provavelmente a austeridade do meu tio, achava que naquela biblioteca só havia livros técnicos, de Direito ou contabilidade. Só agora, premida pela desolação, observava pela primeira vez com mais cuidado as lombadas coloridas.
Cheguei mais perto. E, quase ao acaso, tirei de uma prateleira alta (tive de ficar na pontinha dos pés), O primo Basílio. Sentei numa poltrona e comecei a folheá-lo. Fui fisgada nas primeiras linhas. Num instante, ali estava, diante de mim como se de carne e osso, aquela mulher: Luísa. Era como se eu a visse. E, por alguma razão desconhecida (uma semelhança no nome, talvez?) senti-me instantaneamente próxima dela. Dera-se a mágica. Eu fora transportada.
Não entendia metade daquelas palavras difíceis, de sabor antigo, mas de alguma forma estava lá, sentada naquela sala de um Portugal onírico, olhando as cenas que se desenrolavam, sentindo até seus cheiros. Que importância tinha não saber o que era esteirada, quebreira, bambinelas, cretone, chávenas? Nenhuma. Eça estendera sua mão impalpável e me levara para o mundo de Luísa – graças à palavra.
E, por fim, a palavra escrita. Já trabalhava há anos com a palavra dos outros quando a minha palavra se apresentou e pediu para ser escrita. Aconteceu de repente, sem aviso. Histórias e mais histórias ganharam substância dentro de mim e começaram a forçar para sair. A princípio resisti, pois não tinha a pretensão de escrever ficção, muito menos de ser escritora profissional. Mas as palavras continuaram crescendo, crescendo. E um dia eu deixei que saíssem.
Daí em diante, as mãos seguiram quase que sozinhas. Como se elas, as mãos, subjugando os sonhos e prendendo-os no papel através da âncora das palavras, fossem me defender da loucura e da morte (que era o que eu temia).
Assim, escrever foi para mim, a princípio, um surto e um susto. Mas eu não pude mais parar. Escrever, ler, contar. A palavra como pedra fundamental, como porto e referência.
Há um artigo de Marcio Moreira Alves em que ele diz que os maiores antiquários de livros nos Estados Unidos e na Europa pertencem a judeus. E isso porque o povo judeu tem uma relação fortíssima com a palavra impressa. “São o povo do livro. Foi o Pentateuco, a lei escrita por Deus e revelada por Moisés, que manteve os judeus unidos através dos séculos. Quando um livro com passagens das escrituras cai no chão, o judeu o levanta e beija”, diz Marcio. E lembra: o saber é algo que qualquer homem pode levar consigo quando perseguido.
Isso faz pensar em Ray Bradbury e seu Fahrenheit 451: nessa história, com os livros proibidos e queimados pelo regime tirânico que tomou conta do planeta, as pessoas decoram aqueles que conseguem salvar e os guardam dentro de si. Transformam-se, elas próprias, em livros. Não posso imaginar melhor representação da palavra como algo materializado, palpável, vivo – e eterno.
(Revista Florense)