A tarde de verão começava a cair quando cruzei a praça e entrei no velho teatro pela porta lateral. Naquele dia, eu assistiria a um ensaio da peça da qual era co-roteirista, uma experiência até então inédita para mim. Cumprimentei o guarda, me identifiquei e subi a meia dúzia de degraus que levava a uma espécie de hall de serviço.
Ali, não vi ninguém. Por alguns segundos, fiquei desorientada, sem saber o que fazer. Mas havia diante de mim uma porta de mola, sem maçaneta, e pensei ter ouvido um murmúrio por trás dela. Foi essa porta que empurrei. Empurrei e penetrei num outro mundo – um mundo no qual pisava pela primeira vez. O mundo do teatro. De suas entranhas, de seu avesso. A porta de mola me colocou dentro dele, de imediato.
Não era noite, nem dia naquele lugar. Não era hoje, nem ontem. Era teatro.
O lugar onde se prepara um sonho é um mundo irreal, que nos envolve e cobre como água, que nos entra pelos poros, como eu logo iria constatar. É diferente de simplesmente assistir a uma peça. É conhecer o outro lado do espelho. Estava escuro, mas percebi que ali era a coxia. Olhei para cima. Um pé-direito altíssimo, todo cruzado de barras e vergalhões, onde se plantavam dezenas de pontos de luz. Baixei os olhos. O chão escuro estava cheio de armadilhas, uma trama de cabos, fios e objetos cujo formato eu mal podia discernir.
Sentia-me um pouco como Alice no país das maravilhas, com uma mistura de alegria e ansiedade, de fascínio e medo por entrar naquele reino desconhecido. Mas fui em frente. Sem querer atrapalhar os atores, que a essa altura se movimentavam pelo palco, esgueirei-me como um réptil por aquela teia de fios e cabos e, tateando, desci pela escadinha lateral que vai dar na plateia. Com um cumprimento de cabeça, de longe, saudei o diretor e seus assistentes, que estavam sentados. Não queria interromper. Fui para uma fila lá atrás e afundei numa das poltronas, cada vez mais fascinada.
Sob as luzes irreais que varriam a cena, pessoas que outro dia mesmo eu conhecera e com quem conversara – pessoas normais, sorridentes ou sérias, pessoas como qualquer um de nós, com incertezas e anseios – estavam transformadas. Eram personagens. Eram magia. Eram música e letra, eram fantasia. Eram teatro.
Foram horas assim, muitas horas. Horas em que me vi submersa naquele mundo único, iluminado e surreal. Talvez eu nem devesse falar em horas, porque ali dentro o tempo passa num tempo próprio. Seja como for, quando afinal saí, estava, eu também, transformada. Com novo cumprimento ao guarda, cruzei o portão externo e me vi novamente na praça.
Era noite alta, já. Como acontece em dias de semana, as ruas do Centro do Rio estavam desertas, exceção feita a um ou outro mendigo dormindo pelos bancos. Ao fundo da praça, a fachada iluminada do Real Gabinete Português de Leitura, de uma beleza suave e lilás, aumentava a sensação de solidão.
Era estranho pensar como a vida ali fora continuara, a vida comum, fora do tempo do teatro, aquele tempo atemporal no qual eu penetrara. Um tempo que, com sua mágica, parece ter o poder de fazer o mundo parar de girar.
(Revista Seleções)