Já começou na Oi Futuro Flamengo (rua Dois de Dezembro, 63) e na Oi Futuro Ipanema (rua Visconde de Pirajá, 54) o ciclo de filmes do cineasta Jean-Luc Godard, que inclui também palestras, performances e uma exposição (até 7 de julho). A programação é espetacular e uma chance para conhecer melhor esse cineasta que contribuiu para transformar a linguagem cinematográfica.

Como alguns bobocas ainda insistem em chamar Godard de “chato” e seus filmes de “incompreensíveis”, reproduzo aqui um artigo escrito pelo muito jovem Ruy Castro (tinha 21 anos), feito para a revista Fairplay de setembro de 1969. É um bom aprendizado.

 

GODARD OU ENGODAR, EIS A QUESTÃO

 

Se há uma constante motivação na obra de Godard, essa motivação é o próprio cinema. Vivre sa vie não é um filme sobre a prostituição, assim como Les carabiniers não é um filme sobre a política. No fundo e na superfície, todos os filmes de Godard são sobre o cinema, ou, num sentido mais largo, são filmes sobre a linguagem. Não só porque Godard esteja operando em permanente estado de graça diante da linguagem, no sentido da experimentação, mas também porque, a cada filmes, ele procura descobrir o sentido deste sentido.

“Os filmes de Godard não nos deixam esq1uecer que estamos num cinema”, uma observação interessante de Pauline Kael, que vem confirmar o nosso ponto de vista. Cinéfilo inveterado, Godard, enquanto crítico, contribuiu para a justa valorização de homens como Hitchcock, Nicholas Ray, Frank Tashlin, Antony Mann — e, para ele, escrever sobre filmes já era o mesmo que fazer cinema. Seus primeiros filmes foram “Filmes de cinéfilo”, e, enquanto A bout de souffle era dedicado à Monogram Pictures, Vivre sa vie era dedicado às produções B do cinema americano. Une femme est une femme, em espírito e nas intenções, era como se fosse um musical da Metro. De uma forma ou de outra, o cinema está presente em todos os seus filmes. Em Les carabiniers, um dos personagens “descobre” o cinematógrafo, irrompendo pela tela para supreender a mulher que toma o seu banho, pensando que fosse real. Em Pierrot le fou, Belmondo assiste, entre um e outro news-reel sobre o Vietnam, a um filme do próprio Gordard, Le grand escroc, um curta-metragem. Já em Vivre sa vie, é Anna Karina que vai ao cinema e chora as mesmas lágrimas da Falconetti em La passion de Jeanne d’Arc, de Dreyer, cujos planos são intercalados com os de seu rosto. La chinoise, um filme en train de faire, mostra a câmara de Raoul Coutard (seu fotógrafo habitual) em plena atividade, filmando Jean-Pierre Léaud. E Made in USA foi concebido como se fosse um filme estrelado por Haumphrey Bogart, mas interpretado por Anna Karina. Enfim: diante da tela, o espectador não tem como safar-se da ratoeira engendrada por Godard — pode-se enveredar pelo labirinto, mas a saída será sempre o cinema.

Isso, no entanto, não é o mais importante. A maior contribuição de Godard não está ao nível da microestrutura (ou seja: citações, colagens, alusões), mas ao nível mesmo da macroestrutura — de como ele constrói seus filmes. No cinema, de modo geral, cada filme de cada cineasta se propõe a ser uma “interpretação” da realidade, via linguagem. A realidade, então, passa a ser qualquer coisa além do filme — como se o filme fosse o veículo ou cano de descarga daquilo que o cineasta pretende “dizer” ao espectador. Troca-se o filme em miúdos para que dele brote a mensagem, segundo a grande tradição do cinema americano. Mesmo na obra de artistas maiores, como Chaplin, Welles, Lang, Murnau, Buñuel ou Hitchcock, o filme remete a um significado redutível, a um esquema conceitual. Com Godard, ao contrário, temos o filme em liberdade – auto-referente. Um filme é um filme, e é especulação sobre a linguagem, no sentido de que está sempre refletindo sobre a sua própria razão de ser. Talvez isso tenha levado Godard a declarar, certa vez, que o “cinema não é uma arte que reproduz a vida, e sim alguma coisa entre a arte e a vida”. Tour-de-force ou não, é uma prova de coerência: o meio já era a mensagem, desde A bout de souffle.

Imputa-se geralmente a Godard que ele “não tem nada a dizer”. Pelo contrário, ele diz tudo, e cada conceito emitido em seus filmes é o mais polivalente possível. Pode-ser dizer que sua obra (que seria uma obra em progresso, sem começo nem fim, sem tempo ou espaço) é um raio-X da civilização industrial, onde se processa a mais frenética das batalhas: a batalha da informação. Os veículos, como o cinema, o rádio, a TV, o livro, o cartaz, os luminosos, as histórias-em-quadrinhos, o telex, os satélites artificiais e os jornais, estão empenhados num fogo cruzado de informação, em que, mais importante que o “conteúdo” expresso por eles, o que funciona como elemento de pressão é o volume & alcance dessa informação. O cinema de Godard, a par de uma exemplar compreensão deste problema, é uma espécie de colagem com alto grau de informação original dos elementos que compõem o mundo industrial. Por isso, tanto faz que as frases que brotam da boca de seus personagens sejam altamente ambíguas: nunca se sabe se Godard está falando a sério ou não, mas, de resto, isso pouco importa.

Umberto Eco, em sua importante Obra aberta, escreveu que “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que coexistem num só significante” e que, modernamente, “esta ambiguidade é proposital, torna-se um fim explícito da obra”. Não é que Godard não consiga “se definir”, como o pretendem alguns, ingenuamente, mas é porque parece claro a ele que o torvelinho informacional é por demais complexo para ser solucionado por fórmulas infantis como esquerda vs. direita, ou veio vs. bonito. Não há mais significados, e sim funções & relações — signifunções. A obra aberta, no entender de Eco, é aquela que “projeta diversas possibilidades interpretativas”, e não se pode “compreender” Godard fora dessa faixa de total relatividade. Acaso, arbitrário, ambiguidade, desordem: são palavras que podemos usar a respeito de Jean-Luc. Como extrair a mensagem? Seria como tentar ordenar o caos, onde reina o acaso, a imprevisibilidade total. É também uma espécie de abertura para o infinito, especialmente em Deux ou trois choses que je sais d’elle. Não há uma chave para se abrir obras como essa: há várias, e cada espectador dispõe de uma, ou de várias, de acordo com o ajuste de sua sensibilidade. Se os seus filmes tornam-se cada vez mais abstratos, é porque ele não se contenta mais em por “coisas ao lado de coisas”, como costumava dizer, e sim pretende agora “por tudo num filme”.

Vale a pena, no entanto, ouvir o que tem a dizer o crítico americano Andrew Saris: “É possível admirar Godard e, ao mesmo tempo, temer sua influência em outros diretores. Seria detestável ver todo o cinema tornar-se conscientemente godardiano”. A realidade prova que Saris tem razão. Godard inventou um processo cuja importância já não pode ser hoje posta em dúvida: retomou possivelmente o sentido original do uso da câmara, justapondo ficção & realidade, e tornando o cinema o turning-point, onde se encontram e se entroncam a arte e a vida, o acaso e a razão. Deu um novo sentido ao comportamento do ator diante da máquina, não mais como um simples boneco do faz-de-conta, mas como alguém que está, formulando na prática um dado comportamento. Godard faz isso, e o faz bem, mesmo porque sabe o que faz. Alguns de seus admiradores mais frenéticos afirmam maravilhados que ele pretende destruir a linguagem. Infantil, essa afirmação. Pelo contrário, é o cinema tradicional que vem lucrando com o acúmulo de contribuições deixadas por Godard, o qual, por sua vez, só as extraiu de sua intensa convivência com o tradicionalíssimo cinema de Nicholas Ray, Anthony Mann e outros. A invenção se alimenta continuamente da tradição, como se sabe, e Godard só faz tornar concreta a colocação poundiana do make it new. Se os seus diluidores & epígonos apressados, depois de lhe bicarem dois ou três macetes superficiais, pretendem “destruir” a linguagem, pouco importa: todo mundo tem o direito de ser quixotesco, se quiser.

De fato, o cinema está sendo impregnado desse sofisma. Mas o próprio Godard já declarou uma vez que nunca pretendeu destruir nada: “Ou talvez só tenha destruído uma certa noção da imagem, uma certa maneira de conceber como ela deva ser. Mas nunca pensei nisso em termos de destruição. O que eu queria era passar ao interior da imagem, já que a maior parte dos filmes são feitos em seu exterior”. A porta aberta por Godard não deixa de ser um tanto perigosa: é até meio suicida, especialmente se todos os cinemas-novos do mundo tentarem enveredar por ela. É verdade que filmes como A bout de souffle ou Pierrot le fou conseguiram criar uma determinada faixa de público, em disponibilidade agora para aceitar qualquer arrojo, e prepararam o terreno para o espectador comum não se espantar tanto diante de filmes que normalmente, não “compreenderia”. Daí, no entanto, a querer negar a outra grande vertente do cinema, que é o espetáculo (e da qual talvez 2001 seja a expressão máxima) já vai uma grande distância. As duas grandes incógnitas (x & y) da equação cinematográfica, que são a invenção e a administração, podem perfeitamente coexistir, e já estão até permutando suas conquistas. Pois, se o cinema é mais um trabalho de equipe que de um gênio isolado, é mais que sadia essa permutação. O cinema de autor, como já o declarou o próprio Godard, não passou de um cavalo-de-batalha com o fito de converter o espectador comum num indivíduo interessado em ver o cinema como algo mais que um simples divertissement. É natural que se impute a Buñuel ou Bergman a “autoria” de um filme, por se tratarem de artistas extremamente pessoais, com uma “visão do mundo” peculiar etc., mas é imperioso não desprezar como menor o trabalho de grandes administradores de equipes como o são ou foram George Sidney, Michael Curtiz ou Robert Z. Leonard. Pode-se ainda falar em cinema de autor diante de 2001?

Godard descobriu que se podia fazer cinema com pouco dinheiro e a curto prazo, e passou a fazê-lo efetivamente, no sentido do antiespetáculo. Não há exemplo mais radical que o recente One plus one, rodado na Inglaterra com os Rolling Stones (e de tal forma que houve quem insinuasse que o filme era contra eles…) Les carabiniers, por exemplo, configura com perfeição o antiespetáculo da guerra, mas à moda godardiana, que não deixa de ser das mais ricas: a fotografia em alto contraste à maneira dos news-reels, o desfile de cartões-postais em big-close. Pierrot le fou era um grande espetáculo de cores & formas, assim como Une femme est une femme era um grande espetáculo de formas & sons. Mas nem mesmo o trabalho altamente pessoal de Godard pode prescindir de espírito de equipe: o rendimento desses filmes seria o mesmo sem a presença altamente estimulante de Raoul Coutard? O que pode traduzir um descaminho é o cinema que se faz algures, cacete e estropiado, paupérrimo tecnicamente e filmado com a indefectível câmara epiléptica, em cuja defesa geralmente se invoca o nome de Godard. Dizer que este e só este deve ser o cinema do terceiro mundo, isto sim, é render preito ao subdesenvolvimento, numa tentativa tola de nivelar por baixo. E, afinal, o que tem Godard a ver com isso?

Ao invés de investir quixotescamente contra a linguagem, Godard a enriquece. Pode-se discernir esquematicamente essa sua contribuição em três pontos:

a) o tratamento da fala: Godard valorizou a dialogação, ou por outra, compreendeu o seu sentido. Quando o cinema era silencioso, os cineastas não tinham esse problema. Com o advento do som, eles ganharam um recurso a mais, mas, durante muito tempo, ficaram sem saber como usá-lo: a dialogação, de modo geral, só vinha reiterar alguma constatação que a imagem já deixava patente. A fala era, não raro, redundante: vide um clássico, O delator, de Ford, de 1935, mas em que a herança do silencioso ainda era pesada. Godard dissociou a fala da imagem, de tal forma que é esta que reforça aquela, ao contrario do que se fazia. O preconceito de que o cinema é apenas imagem é, por sua vez, apenas um preconceito.

b) o (anti) tratamento da (anti) narrativa: Godard nunca contou uma história em seus filmes, nem mesmo em A bout de souffle. Fazendo explodir o encadeamento lógico de começo/meio/fim, procedeu a um deslocamento da narrativa de tal forma que esta acabou por sair completamente dos eixos, como em Deux ou trois choses. Deve-se, é verdade, dar a palma a Antonioni, por ter sido o primeiro a atentar deliberadamente para esse problema: L’aventura, anterior ao primeiro Godard, já abria a trilha para o encontro entre ficção & documentário, que é hoje o leit-motiv da obra de Jean-Luc.

c) o (anti) tratamento do (anti) ator: Godard libertou o ator das estrias do faz-de-conta, despindo- até do contexto anedótico no qual se situava rotineiramente. O que faz Anna Karina em seus filmes? Nada. Ou seja, não representa, no sentido teatral do termo. Apenas presentifica um dado comportamento, sem fazer uso das bolações dramatúrgicas, empostações de voz, gesticulações grotescas. Karina talvez seja até a antiatriz por excelência. Ou, quem sabe, seja a única atriz do cinema, porque, diante da câmara, ela não interpreta um personagem fictício, mas, sim, uma mulher em carne & osso, que está num filme, como se tivesse sido apanhada de propósito pela câmara. Na grande tradição do cinema americano, os atores maiores como Humphrey Bogart ou Frederic March ou Charles Laughton procuravam engendrar um dado realismo interpretativo, que tornasse o personagem mais convincente. No cinema de Godard, é o contrário: ele não interpreta — simplesmente está, como na realidade.

E esta seria talvez uma das chaves para a obra de Godard: ele elidiu e aboliu todas as tentativas de realismo para mergulhar na realidade pura e simples, a partir da própria realidade do filme, da película. Paralelamente a Resnais, que também experimenta neste sentido, o impulso dado ao cinema por este processo é inestimável. É neste cruzamento que desemboca a dialética ficção & documentário, que, bem ou mal, serve de pretexto a que grande parte dos filmes de hoje insiram tomadas reais no contexto anedótico, num macete que já vem se tornando irritante pela repetição.

Poder-se-ia falar, ainda, do exaustivo aproveitamento de materiais ou detritos informacionais, colhidos por Godard e encaixados nos filmes; takes de capas de livros, histórias-em-quadrinhos, anúncios luminosos, cartazes, intertítulos etc. etc. Pierrot le fou & Alphaville são exemplares neste sentido, resultando numa espécie de ideograma da sociedade industrial. A primeira impressão é a de um caos, onde se desrespeitam todas as regras — desordem absoluta. Mas, até para a desordem é necessária uma certa ordem estrutural, que os filmes de Godard não deixam de evidenciar. E a ordem de todos eles é essencialmente cinematográfica: Godard constrói os seus filmes a partir do cinema, e o ponto de chegada é também no cinema.

Em termos de linguagem, sua obra está longe de ser considerada acabada: a linguagem se renova, e Godard com ela. Pode estar enveredando por um beco sem saída (e One plus one é um sintoma alarmante de possível esgotamento), mas, afinal, o homem tem sete fôlegos e é surpreendente. Não é um cineasta extremamente meticuloso, como Resnais, que, nesses dez anos, rodou apenas cinco filmes, um dos quais (Marienbad) pode ser colocado isoladamente como um dos maiores do cinema. Por isso, é de se temer essa obcecante admiração que todos os jovens cineastas do mundo lhe dedicam: está-se chegando a um ponto que qualquer filme que “conte uma história” já nos parece maravilhoso, pelo simples fato de que não compactua com essa “genialidade” alucinada que produz tantos filmes pretensiosos e chatos. E, afinal, o cinema não é uma arte para masoquistas.

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