CONTOS MÍNIMOS
1999
Um conto mínimo
(16/5/1999)
Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
Parece um conto mínimo.
A revolta do mar
(23/5/1999)
As pedras na praia do Arpoador tinham desaparecido, mais uma vez. As areias também. E igualmente o sol. A paisagem não era mais aquela velha conhecida: já não havia a beleza do mar transparente, deixando entrever as pedras e sua verdura submarina, nem a espuma rosada quebrando mansa na praia. Agora, era só vento e frio – e fúria.
Empurradas pelo sopro sudoeste das tempestades, as vagas erguiam-se como cabeças de víboras, atirando-se em sucessivos botes contra a amurada. Dava para sentir o chão estremecer.
— Parece um terremoto — disse alguém.
As pessoas, escondidas atrás dos quiosques, encolhidas em seus agasalhos de náilon, apreciavam o espetáculo da ressaca. Havia nos semblantes um misto de excitação e medo. A cada onda que explodia como o jorro de um gêiser, os borrifos d’água impregnavam o ar, encharcando roupas e cabelos. Mas ninguém ia embora.
De repente, alguma coisa inchou no seio do mar. Lá fora, para além da ponta do Arpoador, formou-se uma onda gigantesca, fechada em si mesma, parecendo a corcova de um monstro submarino, que afinal se ergueu, mostrando os dentes de espuma amarelada. E a massa colossal atirou-se contra a amurada com enorme estrondo.
Foi tudo muito rápido. O troar das ondas confundiu-se com o ruído de cimento e pedra sendo rasgados, desfeitos, criando o som de centenas de trovões, enquanto na calçada larga as pedras portuguesas pareciam prestes a saltar do chão, tal a trepidação. Os corrimões de madeira da rampa de acesso à praia ainda se agitaram por um instante acima da superfície, como num último aceno, antes de serem tragados pelo mar furioso. E junto com eles a própria rampa. Em poucos segundos, tudo tinha desaparecido na boca do monstro.
As pessoas, assustadas, dispararam em direção à rua, mas sem tirar os olhos do mar. Hipnotizadas ante tamanho poder, não conseguiam dizer nada. Até que um rapaz, muito jovem, falou:
— Nunca vi uma ressaca assim.
E um velho, com mãos de pescador, que estivera todo o tempo espiando de longe, cauteloso, concordou:
— Jogaram tanta imundície que o mar decidiu se vingar.
O mistério do chafariz
(30/5/1999)
A verdade é que senti uma sensação estranha assim que penetrei na praça. A General Osório estava deserta naquele dia e apenas alguns mendigos dormitavam sobre os bancos. Junto de um deles, na grama rala, um cão todo branco, com um dos olhos vazados, ergueu as orelhas à minha passagem. Aquilo me inquietou. Aquilo ou qualquer outra coisa, não sei. Mas segui em frente.
Ainda de longe, avistei, ao fim de uma das aléias, bem no centro da praça, o velho chafariz de pedra, por muitos anos seco e abandonado. Enquanto me aproximava, lembrei que, dias antes, folheando um livro sobre o Rio Antigo, vira uma foto dele em tempos melhores: plantado em outro ponto da cidade, cercado por senhoras em vestidos negros, com delicadas sombrinhas. Na foto, sua amurada de pedra abrigava um espelho d’água e, no alto da coluna central, sobressaíam os pássaros de bronze que lhe justificavam o nome: Chafariz das Saracuras. Fiquei pensando se as aves ainda existiriam.
Cheguei mais perto. O leito redondo contido pela amurada estava seco, como eu esperava. Grandes blocos de granito, parecendo seixos gigantes, preenchiam o espaço antes ocupado pela água. Mas, para minha surpresa, no alto da coluna central, lá estavam as aves: várias delas, esguias, equilibradas em suas pernas altas, com o metal escurecido pelo tempo, porém intacto.
Fui embora satisfeita. A sensação ruim se desvanecera.
Dias depois, passando outra vez por aquele pedaço de Ipanema – e talvez movida pela satisfação de ter encontrado as saracuras no lugar –, decidi, novamente, cruzar a praça por dentro. Dessa vez, tinha a alma leve, despreocupada. Já nem me lembrava da inquietação que sentira no outro dia. Mas, chegando junto ao chafariz, veio a surpresa: as aves tinham desaparecido.
Fiquei ali parada, sem saber o que pensar, olhando a coluna de pedra nua, apontada para o céu como uma lança. O que teria acontecido?
Talvez tivessem sido roubadas, justamente naquela semana. Mas eu teria visto alguma coisa nos jornais. Talvez tivessem sido retiradas para algum reparo. Mas era um procedimento incomum. Pareciam tão perfeitas. Como era possível?
Afastei-me, intrigada, pensando que, mais cedo ou mais tarde, tudo seria explicado.
Só que os dias se passaram, e as semanas também. Sempre que posso, cruzo a praça e olho com inquietação para a lança de pedra, no centro do chafariz. Mas só encontro, de vez em quando, um ou outro pombo, de carne e osso. Das pequenas aves de bronze, nem sinal.
Se alguém souber o que aconteceu com as saracuras, por favor, me diga. Ou serei obrigada a acreditar que aquilo que vi eram seus fantasmas.
O menino e a catedral
(6/6/1999)
O menino olhou em torno para ter certeza de que não estava sendo observado e ergueu devagar a toalha de renda. Em seguida mergulhou, desaparecendo.
A enorme mesa de madeira escura da sala de jantar, com pés de bolas sobrepostas, estava sempre coberta com uma toalha de renda que ia até o chão. Sob a renda, havia uma espécie de forro, um pouco mais curto, feito de um tecido adamascado que barrava a luz, transformando o espaço debaixo da mesa num perfeito esconderijo. E era ali que o menino costumava passar as manhãs, escondido, quando todos na casa pensavam que estava lá fora brincando.
Ele agora olhava em torno com seus grandes olhos castanhos, tão escuros quanto os pés da mesa. O sol brilhava no quintal e a casa inteira vivia grande agitação, por conta da festa do dia seguinte, mas ali naquela sala raramente aberta – e mais ainda dentro de seu esconderijo – fazia sombra e silêncio.
Precisou de algum tempo para se acostumar à penumbra. Só então começou a perceber as ranhuras do chão de tábuas corridas, os desenhos na madeira, as pequenas imperfeições. Isso era uma coisa de que gostava naquele seu observatório. Dali, podia ver o avesso das coisas: as entranhas da mesa, com seus encaixes onde a madeira não fora bem polida, o ponto onde o chão era mais gasto, encerado com menos capricho. Entrava em contato com a intimidade dos objetos, com seus segredos.
De repente, uma porta se abriu.
E o menino ficou imóvel, à espera.
Estranho que entrassem na sala de jantar em dia de semana. Nunca faziam isso. Ouviu primeiro os passos, depois o ruído dos ferrolhos da janela, bem perto de onde estava. Continuou quieto. Talvez fosse por causa da festa no dia seguinte. Com certeza iam abrir a sala para arejar. Agora, um barulho surdo, como um soco. Em seguida, o estalo das janelas contra as paredes externas. E o sol inundou a sala, num segundo.
O menino piscou os olhos, atordoado.
Depois abriu-os bem. E sorriu, com surpresa.
Um raio de sol varava a renda, despejando-se no chão, onde estava ajoelhado. A luz, incidindo sobre o tecido do forro, tornara cor de pêssego o ar à sua volta, onde voejavam grãos de poeira, como se fossem pássaros num templo abandonado. Seu pequeno mundo – o mundo onde as coisas existiam pelo avesso – brilhava.
O esconderijo se transformara numa catedral de luz.
Um dia, um gato
(13/6/1999)
Tudo aconteceu muito rápido. Só me lembro de ter ouvido um estrondo, depois um tremor imenso, um grito em algum lugar distante – foi só. E o mundo acabou.
Estava dormindo quando aconteceu. Ou adormeci depois, não sei. Acho que desmaiei. Mas é possível que o mundo tenha mesmo acabado porque a verdade é que agora abro os olhos, arregalando-os com toda força até senti-los secos e, ainda assim, não vejo nada.
Tento mover meus músculos. Estico as costas com cuidado e, no silêncio enorme que me cerca, ouço os pequenos estalos das vértebras. Assim. Estou conseguindo. Devagar. Sinto alguma coisa fria – parece uma parede – colada à lateral do meu corpo, mas acho que se me arrastar para a frente conseguirei sair daqui. O chão está úmido, como se encharcado por uma substância viscosa. Talvez signifique perigo. Mas não devo pensar nisso agora. O importante é que o chão escorregadio facilita meu deslocamento. Vou em frente, esgueirando-me por espaços ínfimos, menores que meu corpo. Sou bom nisso.
Após alguns minutos de esforço, sou recompensado. Percebo ao longe, como se ao fim de um túnel, uma claridade.
Agora, aqui está. Mais este obstáculo e estarei livre. Empurro a pedra com o corpo. É uma lasca de cimento, afiada, que me raspa a orelha. Sinto uma dor aguda. Acho que me feri. Mas não vou desistir.
A luz explode em meus olhos, seu clarão quase me cega. Sinto o ar frio de primavera nas narinas – e sei que este é o cheiro da liberdade. Mas, assim que minhas pupilas se ajustam à luz do dia, tomo um susto: a poucos passos de mim há um homem, segurando uma estranha máquina preta. Será que vai me matar?
* * *
O cinegrafista ajeita sua câmera e começa a rodar. Diante dele, os escombros de uma casa nos arredores de Pristina, capital do Kosovo, na Iugoslávia. Mais uma casa destruída pelos bombardeios – apenas mais uma, entre tantas.
De repente, alguma coisa se move entre os escombros. Ele ajeita o foco, atento.
E vê, com surpresa, surgir de trás de uma lasca de concreto um gatinho branco, os olhos azuis piscando muito ante a claridade do dia. Sua orelha sangra, o pêlo do pescoço está escuro, as patas também, como se sujos de graxa, mas ele dá um salto para a frente, com grande agilidade. E depois fica parado, olhando o cinegrafista com sua máquina.
Parece perplexo. Seus donos com certeza estão mortos. Muita gente está morta. Mas ele saiu ileso do bombardeio. Emerge daquele cenário de destruição, com seus olhos azuis cheios de perguntas. É um sobrevivente da fúria dos homens.
Medo do escuro
(20/6/1999)
Aconteceu comigo – logo eu, que sempre gostei de histórias de assombração. E foi na noite do blecaute. Aquele. Eu estava chegando ao prédio onde moro, no Leblon, quando de repente a escuridão se fez. Senti uma inquietação. Não tenho medo do escuro, mas havia algo de incomum naquela treva. E logo, pelo rádio de pilha do porteiro, soube da gravidade da situação.
Ainda esperei por quase meia hora, mas acabei decidindo subir, mesmo morando em andar alto. Não ia ficar ali embaixo a vida toda. Meus olhos se acostumariam. Era só segurar o corrimão e ir contando os lances para não me enganar de andar. Fui.
Nos primeiros degraus, em curva, ainda recebia a luminosidade que emanava da vela sobre a mesa da portaria. Mas no segundo lance, não. A partir dali, o mundo desapareceu. Arregalei os olhos, inúteis. Restavam-me apenas pés e mãos. Arrastei-os, lentamente, os primeiros sobre os degraus, as outras sobre o corrimão, únicas provas da existência do universo. Nunca, nem nas fazendas da infância, vira uma escuridão assim. Singrei o espaço como se fosse uma cunha, fendendo a treva densa, palpável. E o silêncio. O silêncio que formava, junto com a escuridão, uma matéria negra e macia, envolvendo-me à medida que subia.
De repente, entre o sexto e o sétimo andar, ouvi um ruído. Meu coração deu um salto. Será que outra pessoa se aventurava por aquele mundo da cor do nada? Dei mais uns passos, pisando o chão liso do pequeno hall. E ouvi o ruído outra vez. Agora nitidamente, a poucos passos de onde estava. Um ruído furtivo, abafado, como um roçar de panos ou o ofegar de uma respiração.
Se era alguém enfrentando o escuro, como eu, por que, percebendo minha aproximação, não dizia alguma coisa? O que quer que estivesse ali, parecia à espreita.
Senti os pêlos dos braços se eriçarem. Tive ímpetos de correr. Mas como? Estava aprisionada pela escuridão. Os dedos crispados sobre o corrimão frio, pensei em gritar – mas nesse exato instante a luz voltou.
Olhei o hall à minha frente. Não havia ninguém.
Disparei escada acima, pulando os degraus de dois em dois, respirando aos arrancos. Nunca mais, nunca mais, pensei, ao fechar a porta do apartamento.
Desde então, tenho dormido mal. Parece bobagem, mas passei a ter medo do escuro e deixo sempre um abajur aceso na cabeceira, madrugada adentro. Mesmo assim, às vezes sonho com uma presença assombrada, que ronda meu quarto, à espreita. Não sei o que quer, mas tenho a impressão de que está à espera do dia em que, distraída, eu acabe cometendo o erro de apagar a luz.
Cristal e chumbo
(27/6/1999)
A mulher observa a taça que tem entre as mãos. A delicadeza da haste, facetada, abrindo-se em seguida para formar o bojo de matéria finíssima, sulcada de pequenos arabescos. Contra a luz, o vinho cor de sangue só faz realçar a delicadeza dos desenhos escavados na substância transparente.
E ela pensa nas palavras que ouviu sobre a feitura do cristal. Para se chegar a ele, para se obter sua transparência e leveza, quase impalpáveis, é preciso acrescentar chumbo ao vidro.
Sim. Chumbo.
É o chumbo, matéria grosseira e pesada que, adicionada à pasta de vidro quente, dá a maleabilidade necessária para que esta se transforme em cristal. Mãos também grosseiras, brandindo garras de ferro, sob o calor do fogo, farão o resto. E, assim, o cristal, com sua beleza quase beatífica, nada mais é que a mescla de chumbo, músculos, suor, ferro e fogo. Elementos brutais unidos, num cenário de escuridão e calor, para compor – através de um sopro – a forma mais delicada do vidro.
Pensando nisso, a mulher depõe a taça sobre a mesa, com um sorriso triste.
Em seguida, ergue-se. E dá com a própria imagem, refletida no espelho que cobre toda a parede da sala. Os cabelos castanhos encaracolados descendo até os ombros, o rosto redondo, os olhos muito abertos, brilhando.
Talvez tenha sido melhor assim, pensa. De certa forma é bom estar novamente sozinha. A dor do amor, sua velha conhecida, ali está, de volta, envolvendo-a mansamente. Mas não faz mal. Sabe que, como das outras vezes, irá em frente, ainda mais forte. As lágrimas são apenas um tempero, o sal da vida. Gotas poderosas que, como o chumbo no vidro, criarão nova matéria, cheia de uma beleza renascida.
Caminha devagar até a janela e olha a paisagem lá fora.
Através dos quadrados de vidro da varanda, o crepúsculo despeja suas cores sobre a Lagoa, que transborda de dourados e lilases. Ao fundo, nas montanhas azuladas, a noite já chegou, mas as águas ainda guardam muita luz em sua superfície brilhante.
Lá estão os remadores. Remar, assim como pescar, é coisa que geralmente se faz nas horas de transição, quando o dia vira noite ou vice-versa. Hoje, os barcos são muitos. Mas – coisa curiosa – há em cada um deles apenas um remador. Várias solidões sobre o espelho d’água mais lindo do Rio.
A mulher sorri outra vez, caminhando de volta para o centro da sala. Debruça-se sobre a mesa e recolhe a taça, ainda com umas gotas de vinho. E, agora sem tirar os olhos da própria imagem no espelho, ergue o cristal finíssimo, num brinde:
– Ao chumbo.
O perfume do Rio
(4/7/1999)
Eu estava na praia quando caiu o temporal. Era um meio de tarde, não mais de quatro horas, e lembro-me de que estava deitada de frente para o mar do Leblon, lendo. De repente, senti uma chicotada nas costas. A areia me fustigou com tal violência que a revista me foi arrancada das mãos. Tapei os olhos, esperando que a ventania passasse. Mas não passou. Depois de me levantar com dificuldade, enquanto o vento me empurrava em direção ao mar, recolhi minhas coisas como pude e virei-me em direção à rua – justamente de onde vinha o vento. Enfrentei-o, caminhando quase agachada e ouvindo a algazarra dos banhistas que, sem exceção, corriam para se abrigar.
Num brevíssimo intervalo entre duas lufadas, olhei para cima. O céu, por trás dos prédios, era de um negro profundo, parecia saído de um filme de ficção científica. Um raio e um trovão simultâneos me fizeram baixar a vista e apertar o passo.
Não tinha ainda alcançado o outro lado da Delfim Moreira quando a chuva caiu. Uma chuva desalmada, de instintos assassinos, que me ensopou em segundos.
Corri para uma das ruas transversais, procurando abrigo. A rua estava deserta, ninguém à vista. Nem qualquer lugar que pudesse me servir de refúgio. No Rio, os prédios se cercaram todos de grades de ferro e suas marquises ficaram para além das lanças pontiagudas, em território proibido. Já não servem a ninguém em dia de chuva.
Eu estava a poucos quarteirões de casa, mas água e vento me batiam com tamanha violência que eu mal podia caminhar. Não havia alternativa a não ser parar em algum lugar e esperar passar a tormenta. Lembrei-me, então, do pequeno largo, um recuo, do lado direito da rua, que imaginei abrigado, senão da chuva, pelo menos da força do vento. Ainda com dificuldade e sentindo a água me açoitar as costas nuas, caminhei até lá.
O largo, cercado de prédios baixos e amendoeiras, me acolheu. De fato, ali ventava menos. Tremendo de frio e susto, esperei que a chuva passasse, encostada ao muro de um prédio antigo, cujas pedras ainda emanavam o calor da tarde. Abraçada à minha bolsa de lona, tão molhada quanto eu, fiquei ali, pensando em toda sorte de histórias sobre raios fulminantes.
Foram muitos minutos até que a tormenta recuasse. Mas, quando isso aconteceu, foi como se o mundo emergisse de uma paixão avassaladora e respirasse, salvo. Fechei os olhos.
E foi então que o cheiro das amendoeiras me invadiu.
Um cheiro ácido, verde, úmido – a alma das árvores delas se desprendendo, leve e lavada. Um aroma que a chuva acentuara, sem dúvida, mas que eu reconheci porque já o sentira antes, muitas vezes, sem que disso me desse conta. Agora ele estava apenas mais forte, mas a verdade é que sempre estivera lá. O cheiro das amendoeiras.
É esse o perfume do Rio.
No aeroporto
(11/7/1999)
Estava tomando café no aeroporto Santos Dumont com uma sensação de apocalipse na boca do estômago. Não sabia bem por quê. É verdade que tinha lido, ao acordar, uma notícia no jornal sobre a profecia de Nostradamus, segundo a qual o mundo ia-se acabar por aqueles dias. Verdade também que sempre tive medo de avião, mesmo de vôos curtos, entre Rio e São Paulo, por exemplo. Verdade, ainda, que a cidade amanhecera envolta numa névoa tão baixa que eu tinha a impressão de poder cortá-la com faca, se quisesse. E, além da névoa, chuva. Claro que o aeroporto estava fechado. E claro que as pessoas andavam de um lado para o outro do saguão como feras enjauladas, gritando em seus celulares, enquanto outras tentavam falar nos orelhões, sem saber que para o sistema de telefonia do país o fim do mundo já tinha chegado.
Mas nada justificava a estranha sensação que me afligia. Suspirei. Tinha pedido um expresso com creme, que veio fumegante. O café me faria bem.
Mal tinha acabado de dar o primeiro gole, quando ouvi a voz do vendedor de bilhetes, fazendo seu pregão. Continuei tomando o café, sem me virar. Nunca dei sorte com loteria. Mas, de repente, quando estava bem atrás de mim, o vendedor disse:
– 1952!
Parei com a xícara no ar. Era o ano do meu nascimento. Estranho. Coincidência. Seria um aviso?
Bobagem. Mas que havia alguma coisa estranha acontecendo, havia. O dia parecia tocado pelo sopro do sobrenatural. E se eu comprasse o bilhete? Que nada. Dei outro gole no café, resistindo à tentação. Não olhei para trás.
Terminado o café, caminhei até a fileira de cadeiras, percebendo que um homem cheio de embrulhos se levantava. Pronto. Sentada, lendo o livro de Carlos Fuentes que carregava comigo, a espera seria fácil. Além do mais, do lado de fora, o tempo começava a clarear.
Os minutos se passaram enquanto eu, distraída, mergulhava através das fronteiras de cristal de Fuentes, esquecida do mundo. De repente, algo me chamou a atenção. Era a voz do vendedor de bilhetes, outra vez.
– 1939. É a certa de hoje!
Silêncio.
– 1970 – insistia ele. Virei para trás e observei. Estava passando diante das pessoas sentadas. Vinha em minha direção. Baixei a vista, sem querer ser molestada. E o vendedor, ao passar bem diante de mim, disse:
– 1955.
Sorri, abraçada ao livro, compreendendo tudo. Ele observava as pessoas e, por seu aspecto, calculava num segundo o ano do nascimento. Assim, atraía a atenção do freguês. Doce malandragem carioca. Dei um suspiro, a sensação de sobrenatural se desvanecendo. O dia não seria tão mau assim. Afinal, entre o cafezinho e o saguão, eu tinha remoçado três anos.
Passando batom
(18/07/1999)
A mão alva, de dedos longos e unhas bem cuidadas, mergulha na bolsa de couro cru. Tateia em seu interior, provocando ruídos roucos, abafados e depois um tilintar de chaves. Tateia um pouco mais. Agora, sim. Encontrou. A mão retorna à superfície, os dedos finos surgindo das entranhas da bolsa de couro e carregando o pequeno objeto procurado. É um objeto cilíndrico, forrado de tecido brilhante, adamascado. Pouco maior do que seu dedo. Agora, ela segura-o com as duas mãos. E, fazendo uma pequena pressão, abre a tampa. É um estojo, um estojo diminuto, que guarda outro objeto cilíndrico, de metal prateado: um batom. A tampa do pequeno estojo tem em seu interior um espelho mínimo, retangular, capaz de enquadrar em sua superfície apenas a imagem de uma boca, mais nada.
Sua boca. Lábios carnudos e sensuais que se entreabrem, deixando à mostra o branco perfeito dos dentes. Abre-os um pouco mais, mas torna a fechá-los, pois que abertos eles já não podem ser captados por inteiro pelo ínfimo espelho. Sorri. Seus dentes surgem, quase agressivos em sua beleza. E uma vez mais cerra os lábios, pousando-os com naturalidade um sobre o outro.
Com a mão direita, os dedos em pinça, tira de dentro do estojo o batom prateado. Destampa-o, torcendo-lhe a base e fazendo surgir, num movimento ascendente, a matéria vermelha. O olhar volta a fixar-se no espelho. Os lábios se preparam para receber a tintura cor de sangue, esticando-se sobre os dentes. Ela pinta primeiro o lado esquerdo, depois o direito e em seguida une os lábios para depois soltá-los, como num beijo.
Um beijo.
É nesse instante, nesse exato instante, que a verdade a trespassa.
Por alguns segundos nada faz, imóvel ante a revelação que se lhe apresentou, transparente. Tardia. Continua fitando aquela boca pintada de vermelho, uma boca perplexa e muda. Só ela ali impressa, na superfície espelhada.
Logo sorri com amargura, quase com pena de si mesma, pensando em como fora tola por jamais ter pensado naquilo antes.
Ele dizia que não gostava de vê-la de batom. E, durante anos, todos os anos em que convivera com aquele homem, ela evitara pintar os lábios – para agradá-lo. Anos e anos de madrugadas passadas sozinha, de fins-de-semana atirada na cama provando o gosto amargo do chocolate que a fazia lembrar-se de que ele estava em casa com a família. Anos feitos de domingos, de feriados, de natais, de festas de fim de ano temperados pelo travo da solidão e do ressentimento. Só agora, de um jato, ela compreendia tudo. Entendia afinal a verdadeira razão que o levara a pressioná-la para que jamais pintasse os lábios.
Assim ele não se arriscaria. Nunca chegaria em casa com a camisa manchada de batom.
Esculturas de gelo
(25/7/1999)
Fui certa vez a uma exposição de esculturas de gelo. A céu aberto, num parque, à noite, os artistas trabalhavam nelas, ferindo os imensos blocos com seus martelos e cinzéis. Tremendo de frio, o casacão de lã apertado contra o corpo, assisti ao lento nascimento das formas: homens, pássaros, navios, que foram surgindo pela mão dos artistas, cuidadosamente trabalhados, cada ângulo, aresta, côncavo, convexo, tudo sendo escavado no cristal gelado.
Um trabalho árduo, como talvez deva ser o de qualquer obra de arte. Árduo porém vão – mais vão do que nunca. Depois de tanta lida, assim que estivessem prontas, as esculturas começariam a derreter. Gota a gota, como se pranteassem a si mesmas, elas se desfariam e em pouco tempo seriam apenas uma poça d’água no chão do parque.
Fiquei olhando aquelas mãos enluvadas, enrijecidas pelo frio, que trabalhavam, incansáveis, por horas e horas arremetendo os instrumentos contra os blocos gelados, concentrando nesses gestos toda sua força, seus sentimentos, sua beleza – para nada. Apenas por um momento efêmero em que as esculturas brilhariam, nuas, sob as luzes do parque, antes de começar a morrer. Depois, observei os olhares das pessoas que cercavam os artistas. Pensei ver neles uma chispa de medo, uma urgência, uma agonia, quase como se todos ali temessem que os blocos de gelo derretessem antes que as figuras estivessem prontas.
Sei que há outras formas de arte transitória, feita com flores, água, vento, fogo. Experiências sensoriais, onde a obra de arte não passa às vezes de um calor, um toque, um cheiro. Mas aquelas esculturas geladas me comoveram, pois eu sabia que, por um instante, quando estivessem prontas – apenas por um instante –, elas seriam reais. Palpáveis, concretas, suas formas estariam ao alcance de nossas mãos, ainda que nos queimassem os dedos com sua matéria gelada.
E, de repente, sozinha no parque, fiz uma estranha associação de idéias. Pensei nessas pessoas que, numa mesa de bar, são capazes de contar tantas e tão ricas histórias, sem jamais escrevê-las. Histórias que nunca se transformarão em crônicas, nem habitarão as páginas de um livro. Alguns dizem que Otto Lara Resende era um pouco assim, que jamais chegou a escrever com a mesma força com que contava histórias em rodas de amigos. Outros reclamam que Albino Pinheiro não escreveu tudo o que sabia sobre o Rio, sobre nossa música popular. Não sei. Mas sei de figuras como o fotógrafo Paulo Garcez, com sua agudíssima crítica social, ou como Ivan Lessa, esse verdadeiro livro vivo, que teima em não ancorar tudo o que sabe no papel. Conversar com eles é um pouco assim, é ter diante de si momentos de pura arte, ainda que transitória. Eles são nossas esculturas de gelo.
As chamas de Woodstock
(1/8/1999)
O homem vê as chamas de Woodstock, diante do aparelho de TV. E afunda na poltrona, o coração acossado por um sentimento desconhecido. É como se estivesse ali, no epicentro da destruição, queimando naquele fogo, ardendo com os pedaços de ferro calcinados, pilhando, saqueando, soltando uivos selvagens, seu coração uma brasa latejando em meio às chamas.
Woodstock.
Ele estava com 20 anos quando o outro, o verdadeiro, aconteceu. Na época, trancado em seu quarto, lendo Rimbaud, sentiu uma vaga inquietação ao ver as imagens dos jovens nus, cobertos de lama e flores, com olhos de desvario. Não fazia parte daquela juventude. Não adotava seus gestos, suas bandeiras, vivia imerso num mundo próprio, feito de solidão e silêncio. Era pária, apátrida, forasteiro. Pior do que isso, era um velho – aos 20 anos. E não podia haver sina pior do que ser um velho nos anos 60. Foi talvez por isso, por não fazer parte daquela euforia, que sentiu, ao saber do primeiro festival, um estranho presságio.
Havia ali, naqueles rostos, em sua loucura frenética, um sinal. A revolução da contracultura, feita pelos jovens do pós-guerra, nos anos 50 e 60, chegava a um clímax radical. E diz a História que uma revolução, quando se radicaliza, mergulha no Terror.
Percebeu isso com toda a certeza, tomado por absurda lucidez. E a lucidez, assim como a velhice, era também um pecado naqueles tempos. Mas não pôde evitar.
Só anos depois compreenderia o quanto estava certo – quando o mundo fosse tomado pela brutalidade, quando o sistema digerisse toda a alegria e liberdade, cuspindo-as de volta na cara dos jovens. Matando-os. A euforia inocente das drogas transformada em cartéis milionários cujas garras se estenderiam sobre o mundo. O sexo livre gerando a banalização e a Aids. A estética da destruição tomando conta de tudo.
Era simbólico que, 30 anos depois, a reedição, comercial e falsa, do festival terminasse em violência, fogo e destruição. A imagem perfeita de um sonho que não acabou – foi vendido.
Com um suspiro, ele aperta o botão do controle remoto. Fica por um instante imóvel, no silêncio da sala, tentando entender a sensação desconhecida que lhe tomou o peito. E de repente percebe que, afinal, não é um sentimento ruim. Talvez aquelas chamas sejam uma espécie de purificação, um exorcismo de fantasmas que o assombraram 30 anos antes, quando era apenas um menino-velho, com idéias próprias. E, dando de ombros, ele se levanta. Está sorrindo. Afinal, sabe que hoje é muito mais jovem do que era em 1969.
Barcelona
(8/8/1999)
O rapaz acordou aos poucos, sem saber bem onde estava. Olhou em torno, esfregando os olhos – e viu a mulher diante do espelho. Estava envolta na luz da manhã, que penetrava no quarto pela cortina entreaberta, despejando devagar seus raios no chão de madeira clara. Havia naquela cena tanta beleza e lentidão que o rapaz, por um instante, se perguntou como era possível a luz viajar a 300 mil quilômetros por segundo.
Mas logo entendeu. Não era a luz. Era ela. Na mulher, em seus gestos diante do espelho, é que se concentrava todo o vagar e toda a beleza, fazendo com que a luz, tímida, estancasse seus raios. Sentada na penteadeira, escovava os cabelos negros, erguendo e soltando as mechas sem pressa, deixando que escorressem sobre os ombros. Estava pronta, vestida para sair, a blusa branca de algodão, quase severa, de punhos abotoados. Talvez estivesse com pressa. Mas seus gestos lentos eram um contraponto, pareciam querer retê-la ali.
— Onde você vai? – perguntou o rapaz, esfregando mais uma vez os olhos.
A mulher voltou-se, sem sorrir. No mesmo segundo, começou a escovar os cabelos com mais energia.
— Barcelona – respondeu.
O rapaz sentou-se na cama, franzindo a testa. Sabia pouco sobre ela. No bar, onde a encontrara, tinha-lhe dito que era aeromoça. E ao irem juntos para o apartamento dela, ele estivera certo de que seria apenas por uma noite. Apenas por uma noite. Mas agora…
— Mas… agora?
— Tenho de ir – disse ela, escovando os cabelos cada vez mais rápido. E fazendo-lhe a concessão de um mínimo sorriso:
— É a escala.
O rapaz remexeu as cobertas, como se fosse levantar-se, mas não o fez. Simplesmente continuou olhando a mulher, em silêncio. Barcelona. Tinha a sensação de já ter vivido aquela cena antes. Um déjà vu. Ou talvez houvesse naquela mulher, diante do espelho, qualquer coisa de especial, que o perturbava. O silêncio cresceu entre eles, palpável. E, muitos segundos depois, ele falou:
— Quero que você fique.
Ela abriu os braços, indefesa.
— Não posso. É a escala – repetiu, uma tentação cintilando no olhar.
E de repente o rapaz se lembrou. Barcelona. Era o título de uma música americana, sobre um encontro assim.
— Não estou falando de ficar no Rio – disse ele, levantando-se.
A coberta, que até então o cobria, foi ao chão. E ali ficou, a seus pés, como um fantasma derrotado.
— Quero que você fique comigo.
Gostei mais do outro
(15/8/1999)
Era uma menina, ainda, de seus 8 ou 9 anos, e tinha acabado de chegar ao Rio de Janeiro. Vinha de Curitiba, onde vivera alguns anos com a família, e se instalou numa pensão, numa rua transversal de Copacabana. Mas, nos primeiros dias, mal pôde aproveitar as belezas da cidade à sua volta, pela simples razão de que vivia em pânico: com medo do fim do mundo. Era um medo infantil, irracional e avassalador, desses que fazem a criança sofrer muito e que se realimenta de si mesmo, transformando-se em obsessão, em monomania. A menina estava obcecada. E o medo crescia alimentado não só pelas fibras íntimas do pavor, mas também pelas conversas que se sucediam à sua volta. Porque todos diziam e repetiam que o mundo ia acabar. E a menina não conseguia pensar em mais nada.
À noite, era ainda pior. À noite, como se sabe, os medos crescem. Os pavores tomam forma, ganham consistência. Num pequeno quarto de pensão, sozinha enquanto todos dormiam, que fantasmas não assombrariam a menina vinda de longe? De olhos abertos na penumbra, ela tentava adivinhar o formato das sombras, vendo entrar pela janela as luzes difusas da cidade grande, do mundo desconhecido – esse mundo que tinha seus dias contados. Mas quando seria? Essa, a angústia maior. Daquela vez, não havia um dia marcado. O fim poderia acontecer a qualquer momento.
Até que, numa madrugada, aconteceu.
A menina tinha adormecido. Há dias vinha tentando manter-se em vigília, com medo de que o mundo acabasse enquanto dormia, mas justamente naquela noite fora vencida pelo sono. E dele despertou em meio ao mais completo pavor. No primeiro segundo após abrir os olhos, crispou as mãos na borda do lençol, estremecendo. Ouvia estrondos. Baques, correrias, gritos. O chão tremia. Pronto. Só podia ser o fim do mundo. A hora era chegada.
Levantou-se, mal sustentando-se nas pernas. Queria fugir, mas não conseguia despregar os olhos da janela, de onde vinham os ruídos assombrosos. E, amparando-se nas paredes, foi até lá. Espiou. E o que viu foi, de certa forma, o apocalipse.
Era a feira, que estava sendo armada na rua.
* * *
Foi Rossella Terranova quem me contou essa história. Aconteceu com ela em 1950 – fato curioso, pois nunca soube de rumores de fim de mundo no meio do século. Quando conversamos, eu já estava cansada de toda aquela história de Nostradamus, eclipse solar e de pessoas se reunindo em Brasília ou no castelo do Drácula (o que dá quase no mesmo) para esperar o mundo acabar. Mas, com o relato de Rossella, dei boas risadas. E, agora que a semana passou, posso dizer: em matéria de fim de mundo, gostei mais do dela.
Em cima do piano
(22/8/1999)
A sala é grande, de pé direito alto e assoalho encerado, com grandes vasos de barro trabalhado junto à janela. Deles saem arbustos de folhas muito lustrosas, cujas sombras são projetadas no teto pelos fachos de luz que emanam do chão. Os sofás brancos, de tecido rústico, contrastam com o colorido dos livros nas estantes, que cobrem todas as paredes – exceto a do piano. É um piano de parede, castanho escuro, quase negro, cujo topo encontra-se recoberto por um pano rendado, antigo. Bem no centro, sobre o pano de renda, há uma estatueta de cerâmica porosa, de forma indefinida mas lembrando vagamente a figura de uma mulher. À esquerda da estatueta, está o gato.
É preto e gordo, de pêlo curto, porém de cauda vistosa e felpuda que o envolve como se o abraçasse. Enrolado sobre si próprio, ele mantém as patas dobradas para dentro enquanto cochila gostosamente. Abre uma nesga de olhos assim que a moça entra, mas logo volta a dormir, com um suspiro profundo.
Os minutos se passam sem que nada aconteça. A empregada que atendera à porta desapareceu. A moça espera pela dona do apartamento. Vira o anúncio pela manhã e, ao entrar ali, sentira que era aquele o lugar onde gostaria de morar. Espera ansiosa pela dona da casa, querendo simpatizar com ela para que o negócio se concretize. Há uma vaga para alugar na casa.
Caminha até a janela. A empregada não volta. Nada acontece. Deixam-na ali, sozinha, ela e o gato. Vira-se. Olha para o piano, mas ele agora está vazio. Até o gato desapareceu.
De repente, surge na sala uma senhora. É uma mulher de porte imponente, vestida com uma túnica que lhe deixa à mostra o colo branco e farto. Sorri para ela, estendo-lhe a mão. Aponta-lhe o sofá. Sentam-se. Mal começam a conversar e surge na sala uma gatinha ruiva, de olhos amarelos, muito abertos. Caminha até junto da moça com seu passo elegante e, sem cerimônia, pula no colo estranho, aninhando-se. A moça sorri, acariciando a cabeça da gata.
— E onde está o outro, aquele gato preto que estava dormindo em cima do piano? – pergunta.
A dona da casa olha-a em silêncio, como quem não compreende.
— Gato preto?
A moça faz que sim, virando-se para olhar o piano. Mas antes que diga alguma coisa a outra recomeça a falar.
— Eu tinha, sim, um gato preto. E ele gostava de dormir em cima do piano.
Vacila um pouco e em seguida completa, com um estranho sorriso:
– Mas ele morreu há oito anos.
A prova
(29/8/1999)
Uma pequena morte. Fazia dois dias que terminara de ler o livro de Robert Silverberg e o título ainda dançava em seu pensamento. Abriu a pasta de couro preto e espiou de relance. Aproveitando a viagem de trabalho a São Paulo, levava o livro para devolver à amiga que o emprestara. Era despretensioso, parte de uma coleção de ficção científica, e narrava a história de um tal David Selig, com seu dom, delicioso e maldito, de ler a mente humana. Mas, por alguma razão, deixara-a impressionada.
Fechando a pasta, olhou através da janela oval do avião. Lá fora, o céu era uma só massa cinzenta, que apenas deixava vislumbrar o tapete escuro e crespo das matas, os aglomerados urbanos em manchas cada vez maiores, uma ou outra curva de rio. Mas logo o trançado das casas ganharia volume e se ergueria em prédios mais e mais altos. E a cidade surgiria, repentina como um tumor, tomando tudo.
Endireitou-se na poltrona, com a vaga sensação de estar sendo observada. Olhou em volta, espiando os passageiros que estavam em seu ângulo de visão. Alguns conversavam, mas a maioria estava de cabeça baixa, lendo ou preparando-se para a chegada. E, sem saber bem por quê, ela voltou a pensar no livro de Silverberg.
Será que existiam pessoas como David Selig, capazes de ler pensamentos? Pessoas comuns, que pudessem estar sentadas ali, a bordo de um avião, a caminho de São Paulo? Afinal, no livro, Selig era um homem como outro qualquer. O dom lhe trouxera mais maldição do que delícia, pois, embora lesse os pensamentos dos outros desde criança, não sabia direito o que fazer com aquilo. Vivia uma vida medíocre e a verdade é que a telepatia só lhe rendera uma forte sensação de inadequação diante do mundo.
Suspirou, colocando o encosto da poltrona na posição vertical. Num instante, os prédios já quase pareciam raspar o bojo do avião e a cabeceira da pista surgia, como gigantesco tabuleiro de xadrez. Fechou os olhos, esperando o impacto das rodas no chão, seguido da freada sempre interminável. Mas, enquanto crispava mãos e pés para ajudar o avião a parar, continuava pensando em Selig.
Será que existiam pessoas como ele?
Quando o estalar simultâneo de dezenas de cintos de segurança sendo desafivelados soou em seus ouvidos, ela se levantou, curvando-se para não bater com a cabeça no bagageiro, a pasta preta na mão. E seu olhar foi atraído para o de um homem, vestindo um terno escuro, de pé no corredor do avião. Encarava-a, sorrindo.
— Existem, sim – disse, olhando-a nos olhos. E, antes que ela pudesse dizer alguma coisa, seguiu em direção à porta do avião, desaparecendo junto com os passageiros mais apressados.
A morte da pedra
(5/9/1999)
Primeiro, um estrondo. Como se uma enorme panela de pressão explodisse, de repente, liberando o ar furioso, aprisionado. Depois, o chicotear estrondoso do ar comprimido sendo liberado, durante muitos, intermináveis, segundos, talvez minutos, como se um balão de gás – imenso, sem fim – volteasse no céu, enlouquecido, chicoteando para fora seu conteúdo. Vozes de homens gritam ordens, em meio a sons metálicos, estilhaçados, de engrenagens que se põem em marcha. E de repente, terminada a introdução, surge de uma só vez, o troar único, compacto, uníssono da sinfonia dos horrores: o metralhar simultâneo de dez ou 15 britadeiras que, com rigorosa simetria de sons, uns agudos, outros mais graves, mas todas trabalhando ao mesmo tempo, se manterão no ar não por segundos ou minutos – mas por muitas horas. O martelar ensurdecedor do metal devorando a pedra, soltando faíscas, lascas, pedaços, pó. Partículas de pedra morta, finíssimas, em tudo penetrando, suspensas no ar e afinal caindo à terra, fazendo toda a paisagem nos arredores parecer nevada. Mas toda essa massa de sons e poeira será suplantada, de tempos em tempos, por um terror maior: o monstro vermelho de garras compridas, o guindaste ou trator que, como um bate-estacas acelerado, vai se atirar sobre a pedra com fúria, quebrando os pedaços já lascados em blocos cada vez menores, perfurando-a como se fosse uma imensa broca de dentista. O som é aterrador e de tão poderoso parece espancar o ar com socos gigantescos. Mas de quando em quando, surgem também guinchos mais agudos, silvos. E é como se a pedra gritasse. A pedra, que ali estava há milhares de séculos, que de poeira e água e ventos se formou – dia após dia, ano após ano, era após era – e que hoje está sendo agredida, assassinada, retalhada.
* * *
Esse é o meu despertar. Minhas manhãs e meus dias. É a minha vida. É com isso que convivo, eu e todos os meus vizinhos, de segunda a sexta, das 8h da manhã às 5h da tarde, há quase dois anos – há setecentos dias. Diante da minha janela, no Leblon, junto ao Jardim de Alá, estão desmontando um morro de pedra, uma pedreira da altura de um prédio de quatro andares, ocupando uma área equivalente a quase um quarteirão. Ali, vão construir um shopping.
Mesmo aos domingos ou à noite, quando não há barulho ou poeira, é triste ver a paisagem devastada. Outro dia, alta madrugada, acordei. E fui à janela. Vi a enorme sombra da pedra moribunda, na noite sem lua. E, naquele instante de triste contemplação, ouvi – pois o dia já quase começava a nascer – o som de um pássaro cantando, numa amendoeira. Um pássaro solitário, que escolhera ficar para trás, quando todos há muito haviam fugido daquele cenário de horrores. E seu canto persistente me comoveu. Apesar de tudo, apesar do homem, é difícil dobrar a natureza.
Domingo no Maracanã
(12/9/1999)
Era um rapaz tímido. Muito tímido. Quase não falava e, quando o fazia, era como se saísse de sua boca um sopro, um arfar. As palavras vinham ventiladas por um permanente sussurro, como se o rapaz, em vez de falar, suspirasse. Era franzino de corpo e, desde pequeno, pelas ruas do subúrbio onde morava, sua fraqueza física recebia por troco a crueldade sem par dos adolescentes. Era execrado. Cuspido, espancado, corrido de um lado para outro, como se fosse um morfético. Os meninos que jogavam bola na rua – e todos jogavam – faziam dele, sempre, o seu alvo principal. Era só o rapaz despontar na esquina e a pelada era suspensa. Todos saíam correndo para bater nele.
A família tentava relevar aquele temperamento estranho. A mãe, uma mulata gorda e de braços fortes, protegia o menino o quanto podia. E o pai, homem de boa natureza, há muito estava conformado com aquele filho esquisito. Apenas uma mágoa, secreta, guardava do rapaz. Saber que o filho não gostava de futebol. Sempre que ia ao Maracanã para ver o Flamengo jogar, convidava o rapaz, sabendo que ele sopraria um não diminuto como resposta. Mas continuava a fazer o convite, embora sem esperança, domingo após domingo, ano após ano.
Um dia, enquanto enfiava pela cabeça a camisa rubro-negra, já na porta do quintal, fez a pergunta de sempre. E, espantado, pensou ter ouvido o sopro sair da boca do rapaz em forma de ‘quero’. Apurou o ouvido. Perguntou de novo. Seu queixo caiu. O filho concordava. Queria ir com ele ao Maracanã!
Foram. O pai não cabia em si de contente. Nem foi de geral. Achou melhor comprar arquibancada. Acomodaram-se bem no meio da torcida, um mar de balões coloridos. O rapaz estava circunspecto, mas pelo menos olhava em torno com curiosidade. Isso deixou o pai satisfeito.
Tudo correu sem sobressaltos até que o juiz deu um pênalti a favor do time adversário, lá pelos 40 do primeiro tempo. Gritos, palavrões, braços agitados, rostos suados fazendo esgares. O pai do rapaz, fanático, mordeu a bainha da camiseta, furioso. E o filho só olhando em volta, silencioso. Enquanto o jogador ajeitava a bola no gramado, diante do goleiro solitário, fez-se um enorme silêncio no estádio. A torcida se transformou numa só massa de ansiedade. Mas, nesse exato instante, uma voz cortou o silêncio.
— Todos! – gritou o rapaz, de repente.
O pai olhou para ele, boquiaberto. Nunca, em toda a vida, ouvira o filho falar alto daquele jeito. A palavra saíra de um jato e seu som, forte e claro, chamara a atenção das pessoas que estavam em volta. Mas a surpresa foi ainda maior quando o rapaz completou a frase aos berros, com olhos rútilos e um sorriso desvairado:
– Minha vingança é que daqui a cem anos, todos – absolutamente todos! – que estão agora aqui, neste estádio, estarão mortos!
Sintomas
(19/9/1999)
Os primeiros sintomas foram externos. Um dia, ao acordar, sob a luz clara que penetrava pela janela aberta (era dia alto, era um domingo), a mulher percebeu que o ouro de seu anel estava avermelhado. Virou a palma da mão para cima, para observar melhor. Depois, intrigada, juntando os dedos da mão esquerda em pinça, retirou da mão direita o anel largo, que venceu a custo as dobrinhas do dedo médio.
O olhar dela se fixou primeiro no dedo, na marca de sol que o anel lhe deixara, pois não o tirava nunca. Sem a jóia, sua anatomia parecia vã, um membro assombrado pelo fantasma do anel, aquela marca branca da pele intocada pelo sol. Depois, só depois, a mulher observou a parte interna da jóia. Viu, com surpresa, que ali o ouro ganhara uma tonalidade ainda mais sangüínea. À luz da manhã, o côncavo avermelhado brilhava, apresentando manchas mais escuras, semelhantes às máculas que o suor de algumas pessoas deixam nos metais. Mas isso nunca havia acontecido com ela.
Levantou-se, inquieta. Tinha tido sonhos estranhos na madrugada e, pelos caminhos formados no lençol, podia ver que sua noite fora agitada – nela percorrera estradas misteriosas, das quais já não se lembrava. Foi até a penteadeira antiga, junto à janela, e sentou-se, olhando-se nos olhos. As íris refulgiam ao redor das pupilas negras, dilatadas, pulsando como se pertencessem a um animal selvagem. Passou de leve a ponta dos dedos pelos lábios. Estavam ressecados. Por dentro, a garganta parecia feita de fogo. Mal podia deglutir. Os dedos desceram para o pescoço, deslizando na pele quente, febril. Aproximando-se do espelho, observou o cordão finíssimo de ouro que não tirava nunca. Seus aros mínimos também eram agora vermelhos.
Engoliu em seco. O que estaria acontecendo? Que estranha alquimia estaria transformando ouro em sangue?
Ela não sabia, por enquanto. Mas, por dentro, os sinais da transformação eram ainda mais espetaculares. Poucas horas antes, a visão de um rosto se estampara em seu córtex visual, provocando imediatamente alucinados sinais para a amígdala e para os córtices pré-frontais. No mesmo instante, o estímulo fora avaliado e respostas fulminantes haviam sido enviadas para todo o corpo e de volta para a amígdala, que por sua vez mandara sinais para o hipotálamo e o tronco cerebral. Estes, tinham informado aos córtices somato-sensoriais sobre os sinais recebidos, desencadeando uma tormenta que logo seria decodificada por todos os circuitos neurais de seu corpo.
Ela não sabia, ainda, mas estava condenada. O sangue começara a ferver em suas veias, ameaçando aflorar à superfície, banhando a pele de um suor desconhecido, causando palpitações, febre, confusão mental, loucura.
Ela não sabia, ainda. Mas estava apaixonada.
Os ventos
(26/9/1999)
O telefonema pegou-a de surpresa. Atendeu com impaciência, os olhos presos a um livro que tinha nas mãos, uma história policial que não conseguia parar de ler. Era bom estar sozinha, lendo um livro de suspense numa noite de ventania. O sábado já estava quase no fim e ela ali, presa naquelas páginas. O som do telefone era uma intromissão, um estorvo. Atendeu a contragosto.
A princípio, ouviu apenas um chiado, um ruído ondular, como se a ventania tivesse penetrado no aparelho. Depois, um silêncio. Repôs o fone no gancho, dando de ombros, os olhos novamente fixos nas páginas que a chamavam. Mas, assim que recomeçou a ler, o telefone tocou novamente. Atendeu. O ruído, outra vez. Desligou, já irritada. Pensou em tirar o fone do gancho, mas resistiu. Não gostava de fazer isso. Voltou à leitura, já um pouco desconcentrada. Leu e releu o mesmo parágrafo três vezes, na certeza de que o telefone voltaria a tocar. E tocou mesmo. Mas, dessa vez, havia uma voz. De homem.
— Siroco, Zonta, Norte. Você sabe o que é isso?
— O quê??
— Siroco, Zonta, Norte. Você já ouviu falar deles? – insistiu a voz. Falava num sussurro.
Ela franziu a testa, olhando o fone. Só faltava isso. Um maluco passando trote.
— Olha aqui, meu amigo…
— São nomes de ventos.
Ela largou o livro no colo. Estranho. Tinha a impressão de já ter ouvido aquela voz.
— Como? – perguntou.
— Siroco, Zonta, Norte. São nomes de ventos.
Um maluco, só podia ser um maluco. Ia desligar, quando ele recomeçou:
— Alguns ventos vêm do deserto, outros do oceano, mas em sua trajetória eles varrem montanhas, despejando chuvas, e tornam-se muito secos, cheios de eletricidade. Saiu isso outro dia no jornal.
A mulher olhou para a janela. Lá fora, a copa da amendoeira dançava, enlouquecida. E o vento começava a gemer nas frestas, como se quisesse entrar.
— Quando chegam às cidades, esses ventos elétricos provocam alterações no sistema nervoso das pessoas – disse a voz. – E sabe o que acontece?
Ela continuou muda.
— As pessoas enlouquecem.
Instintivamente, a mulher levantou-se e caminhou em direção à janela, que estalava com os primeiros pingos de chuva. Olhando por entre a copa fechada da amendoeira, viu a sombra de alguém na calçada. Um homem, com uma capa escura. E, no mesmo instante, ouviu a voz ao telefone dizer:
— É por isso que eu estou aqui.
Denúncia
(3/10/1999)
Era um sobrado do início do século, com sacadas, pé-direito alto e uma escadaria em curva, cujo vão formava o espaço do oratório, cheio de imagens barrocas. Foi nesse vão, iluminado pela luz mortiça e vermelha das lâmpadas dos santos, que o rapaz se escondeu naquela noite. Ali, diante das imagens que para ele eram apenas estátuas de gesso ou madeira – mais nada –, ficou imóvel, à escuta. Esperando.
Ao longe, no corredor dos fundos da casa, ouviu ainda o pisar arrastado da velha ama, a caminho do quarto. Depois, mais nada. Aos poucos, a casa mergulhou em escuridão e silêncio. O rapaz olhou a própria imagem refletida no vidro do oratório, envolta pela luz carmim que parecia pulsar, como seu desejo. E de repente ouviu a gargalhada.
Era ela.
A menina proibida, sua paixão secreta, delírio e loucura de noites insones. Era ela. O riso viera do quarto de hóspedes, onde ela dormia com a prima. A gargalhada era o sinal. Ela ia fugir até a copa, para encontrar-se com ele.
O rapaz segurou no corrimão da escada, preparando-se para dar o primeiro passo no corredor. Sua mão estava suada. Já antevia a silhueta da menina na penumbra da copa, encostada ao aparador, onde os vasos de metal martelado, com tufos de samambaias, brilhavam no escuro. Uma sombra arfante, à sua espera.
Com a garganta fechada, deu o primeiro passo. Sabia dos perigos que o aguardavam naquela travessia sobre as velhas tábuas corridas, que gemiam a cada passo. Tomaria todo o cuidado. Principalmente quando passasse diante do quarto da avó, no fim do corredor. Com seu olhar severo, acentuado pelo cabelo preso em coque e pelas roupas sempre escuras, a avó parecia farejar sua paixão pela menina. Não os deixava a sós um instante.
Devagar, ele foi em frente. Pisava as tábuas com enorme cuidado, sentindo a textura da madeira nos pés descalços. Amparava-se na parede, para aliviar o peso do corpo, tentando quase flutuar acima do chão. E afinal, ao ultrapassar a porta do quarto da avó, respirou fundo. Sabia que, dali em diante, seria fácil. Antes da copa, o corredor se abria num pequeno vestíbulo de chão de ladrilhos, com losangos desenhados. E, ali, ele estaria seguro. Ladrilhos não rangem.
Quando tocou o chão do vestíbulo, o frio do ladrilho ardeu em seus pés como uma chama. Tinha urgência, agora. E já nenhum medo. Com pressa, deu o primeiro passo. Mas o caminhar descuidado provocou um forte estalo – tinha esquecido que seus pés estalavam quando corria! – e um segundo depois ouviu a voz rouca da avó:
— Quem está aí?
Parou, como se alvejado, enquanto uma gota de suor lhe descia devagar pela têmpora. Tinha sido denunciado pelos próprios ossos.
Angra
(10/10/1999)
Eu estava em Angra, sozinha. Tinha ido passar uns dias na casa que me fora emprestada por uma amiga. Não sei se vocês já fizeram isso. Ir para um lugar sem televisão ou telefone – absolutamente sozinho. Não é qualquer um que tem coragem. Mas vale a pena. O isolamento traz uma sensação de poder, uma euforia desconhecida, uma estranha embriaguez. Era como eu me sentia, naquela tarde quieta de um dia de semana.
Saíra bem cedo. Pegara a estrada, vendo o asfalto rolar e desaparecer sob a pequena bolha de solidão que era meu carro, com os vidros fechados, o ar ligado e o som tocando baixinho jazz instrumental. Ao chegar, o sol já queimava a pele. Fui direto para o mar. A casa de minha amiga fica na ponta de uma baía de nome singelo, Pingo d’Água, para lá da entrada de Angra e já quase na altura da usina. É uma baía intocada, ainda. A casa, pendurada na encosta, quase desaparece por entre as árvores e uma escada de pedra leva a um deque, lá embaixo, para onde fui, assim que cheguei.
E agora, sentada ali, sozinha, olhava o céu, o mar, as montanhas à minha volta. Tudo era imenso, quieto, desabitado. O céu, de um azul sem nuvens, fundia-se no horizonte ao mar aberto, que se descortinava à direita. E, diante de mim, do outro lado da baía, as montanhas exibiam seus diferentes tons de verde, azul e cinza, as mais próximas com a vegetação tão nítida que eu podia discernir o desenho das copas das árvores. Sob o deque, o mar sussurrava entre as pedras, sonolento e manso. Deitei de costas sobre as ripas de madeira quente, usando como travesseiro o jornal que trouxera comigo e que nem chegara a ler, talvez meu único elo com o mundo que deixara para trás. E fechei os olhos.
Estava assim, de olhos bem fechados, quando senti o tremor.
Um primeiro estremecimento, de dois ou três segundos, pouco mais do que uma vibração. E em seguida uma explosão surda, subterrânea, que fez estremecer as ripas de madeira sob meu corpo. Arregalei os olhos, mas não me ergui. Por alguma razão, continuei pregada ao chão, as mãos junto ao corpo, imóveis. Apenas meus olhos correram nervosos de um lado para outro, em busca de uma explicação para o estranho tremor. E foi quando vi, no céu azul, por trás dos morros que cercavam a baía, uma nuvem em forma de cogumelo.
A usina!
Um grito escapou de minha garganta, enquanto eu me erguia de um salto. Apenas para ver, à minha frente, o mesmo céu azul de antes, as montanhas silenciosas, o mar sereno. Sorri, trêmula. Tinha sido um sonho.
Ainda sorrindo, esfreguei a nuca, enquanto meus olhos pousavam no jornal dobrado sobre o deque. E só então a notícia no alto da primeira página me chamou a atenção: Japão sofre acidente nuclear. Logo eles, que guardam na pele as feridas de Hiroshima, pensei. Logo eles, que são tão organizados. E, instintivamente, meus olhos se voltaram para o céu acima do morro, na direção da usina. Se no Japão pode acontecer, imagine aqui. Tomara que meu sonho não tenha sido uma premonição.
O jardim
(17/10/1999)
Acordei bem cedo e decidi dar uma caminhada. Minha idéia era seguir direto até a praia, mas, por alguma razão, virei à esquerda na Ataulfo de Paiva, indo em direção ao Jardim de Alá. O sol oblíquo, mal acabado de nascer, despejava-se por cima dos prédios de Ipanema, incidindo diretamente em meu rosto. Era um sol fraco, é verdade, um sol de inverno, mas ainda assim capaz de me toldar a vista. Caminhando com aquele sol nos olhos, toda a paisagem parecia forrada de algodão. Além do mais, fazia frio. E assim baixei os olhos, fixando-os nas pedras portuguesas do chão, e fui em frente, com o pensamento longe dali.
Só quando afinal desemboquei na beira do canal do Jardim de Alá é que ergui o rosto. O sol pareceu-me subitamente quente, e não mais inclinado. O frio também se fora, embora houvesse brisa. De repente, era meio-dia. E era primavera. As águas do canal, sempre lodosas, tinham um verde profundo e sua superfície brilhava em tremulinas sob os raios de sol. Comecei a atravessar a ponte, já notando, à distância, que as grades do jardim haviam sido pintadas de novo. Junto a elas, uma fileira de ciprestes balançava ao vento, deixando cair seus finíssimos ramos, usados pelos passarinhos para fazer ninho. Desci a escada e cruzei o portão, que estava aberto.
À minha frente, sobre o gramado bem aparado, vi os caramanchões de madeira branca, com seus medalhões ovais onde, em criança, eu enfiava a cabeça para tirar retrato. A madeira, também pintada de novo, estava quase encoberta pelas flores vermelhas de um pé de buganvília. Junto ao canal, as árvores estavam igualmente floridas e um grupo de crianças brincava de escrever seus nomes no gradil, prendendo nos espaços do arame as flores amarelas, de miolo escuro, que catavam no chão. Outras, ali perto, faziam grande algazarra nos balanços e escorregas coloridos. Aliás, havia crianças por toda parte. E mães e babás. E velhinhos conversando nos bancos sombreados. Caminhando pela aléia central, fui em frente.
No meio de um grande espaço gramado, em cujas pontas havia estátuas de pedra em forma de tigres e leões, ficava o lago. Com suas bordas de pedra, o lago tinha as águas muito claras e nelas, mesmo de longe, pude ver a sombra vermelha das carpas. Mas foi o que havia em torno do espelho d’água que me chamou a atenção. Um grupo de jovens, vestindo uniformes, cuidava dos canteiros. Havia uma cerca viva, formada por pés de bela-emília, e canteiros de flores rasteiras, parecendo onze-horas. Cheguei mais perto. Os jovens sorriram para mim, com seus rostos suados, seus olhos espertos. Conversando com eles, fiquei sabendo que todos moravam ali perto e que cada um tinha o seu canteiro para cuidar. Carentes, tinham assim a chance de se profissionalizar.
Satisfeita, saí caminhando. E, seguindo o exemplo dos mais velhos, sentei-me à sombra de uma amendoeira. Era hora de descansar. Ou talvez de acordar.
Passos
(24/10/1999)
Não que eu desejasse sua morte. Não, não, de jeito algum. Apenas queria que ela dormisse. Explico: há mais de vinte anos morando no mesmo lugar, tenho por vizinha uma mulher insone, que passa as noites caminhando. Eu própria tendo um sono muito leve, aquele caminhar permanente – madrugada adentro, noite após noite – é um tormento para mim. A horas altas, acordo ouvindo passos. Estremeço. E, no silêncio, me pergunto: para onde será que ela vai? Que lugar ermo é esse que a mulher solitária busca de forma incessante, entre as quatro paredes de seu apartamento?
Porque a verdade é que, quando começa a andar, ela não pára mais. Como se buscasse algo esquecido nos recônditos de sua memória, ou de seus armários, segue de um lado para outro com passos firmes, determinados – mas que parecem nunca levar a lugar algum. E a madrugada se esvai nesse caminhar sem fim, para mim e para ela.
Às vezes, tenho pena. Sei que ninguém tem culpa por não conseguir dormir. Mas o fato é que ela podia, ao menos, parar um pouco, olhar a paisagem da janela, ler, ligar a televisão. Ou podia, ainda, usar um chinelinho de pano e não aquele de salto, tec-tec-tec a noite toda nos tacos do chão. E mais: num gesto de deferência, num aceno de paz, ela podia ao menos mandar acarpetar o apartamento! Mas não. Nunca fez nada disso. Por todas as noites, nesses mais de vinte anos, ela caminhou – e só. De dia, reina a mais absoluta quietude em seu apartamento. Nunca a vejo sair. Pouco sei sobre ela, nem lembro bem como é seu rosto. Conheço apenas seus passos, que assombram minhas noites. Mais nada.
Mas agora devo confessar uma coisa a vocês: estou narrando no tempo verbal errado. Porque a verdade é que tudo está terminado. Há pouco, no fim da tarde, chegando do trabalho, dei com o pedaço de papel pregado na parede do elevador. O enterro foi hoje, às cinco da tarde. Não, não, por favor, não me interpretem mal! Eu jamais desejei que ela morresse. Sabia que era uma mulher de mais de 70 anos, de saúde frágil, com certeza minada pelas noites insones. Mas, repito, não desejei sua morte, jamais. Queria apenas que ela dormisse.
E agora quem vai dormir sou eu. Dormir! Uma noite inteira, como não faço há décadas. Preparei tudo para esta ocasião especial. Tirei do armário meus lençóis de cetim. Tomei um banho de banheira e me perfumei com a água de colônia alemã, a verdadeira, que tem efeito calmante. Vesti minha melhor camisola de seda e, depois do jantar, bebi um cálice de vinho do Porto. E agora estou aqui, pronta. Mas, antes de apagar a luz, queria dizer ainda uma vez que estou celebrando meu sono, não a morte dela. Não me entendam mal.
Apago a luz. E, no mesmo segundo, antes mesmo que a escuridão me envolva por completo, ouço – com toda a força e nitidez – o som de passos no andar de cima.
Nunca mais
(31/10/1999)
Sozinha dentro do carro, na esquina da São Clemente, a mulher olhou as copas centenárias por trás dos muros de um casarão, enquanto esperava o sinal abrir. As folhas das árvores eram de um verde profundo e brilhante, que lhe transmitiam uma sensação de prazer. Estava assim, distraída e relaxada, quando, sem qualquer razão especial, baixou os olhos das árvores para a calçada.
Ali, junto ao granito do meio-fio, estava um homem. De pé, no ponto de ônibus, com um menino pela mão. Nada havia nele de incomum, sequer era bonito, mas, por alguma razão, os olhos dela se fixaram nele. E, no mesmo instante, o homem, como se atraído pelo olhar da estranha, virou-se e olhou-a também. Houve um choque. Um tremor, um rasgo na realidade. O encontro daqueles dois olhares foi uma tormenta inexplicável. A mulher estremeceu, crispando as mãos no volante. Por quê? Não saberia dizer.
Enquanto, atônita, buscava uma resposta para a sensação indecifrável, um ônibus chegou ao ponto e o homem subiu nele. No mesmo lapso de tempo, o sinal abriu. E a mulher arrancou atrás.
Seguiu-o pela São Clemente, os dedos suados apertando o volante cada vez com mais força. À sua frente, dentro do ônibus, já não via o menino, que se sentara, desaparecendo. Mas o homem estava lá. Ficara de pé, diante do vidro traseiro – e olhava-a, de forma acintosa. Olhava-a como se, ele também, tivesse sido atingido pela misteriosa tormenta há pouco desencadeada. Olhava-a com o mesmo olhar avassalador do primeiro instante, o olhar que a desnudara. A mulher via perfeitamente seu rosto através do vidro do ônibus, que o sol, varando as árvores, manchava de sombras enlouquecidas. Quem era? E o que estava acontecendo? Não tinha idéia.
Continuou atrás do ônibus por vários quarteirões, olhos pregados no homem, um soco congelado na boca do estômago. A cada ponto em que o ônibus parava, ela ficava atrás, esperando, em sua instantânea obsessão. Sabia que não podia perdê-lo de vista – não agora que o encontrara. Era sua única chance. Se o perdesse, jamais descobriria uma razão para o que estava acontecendo.
Até que, sem qualquer aviso, o ônibus deu uma guinada para a esquerda e entrou na rua Real Grandeza. A mulher tentou fazer o mesmo, mas suas mãos suadas atrapalharam-se ao volante. Freou o carro, mas um carro quase bateu atrás dela. Houve um estrondo de buzinas e alguém gritou um palavrão. Nervosa, ela tentou engatar a primeira, mas deixou o carro morrer. Por alguns segundos, ainda viu o rosto do homem, seu olhar febril através do vidro sombreado do ônibus, devorando-a até o último segundo, antes de desaparecer na rua Real Grandeza. E, trêmula, ela ficou ali, um estorvo no trânsito da rua São Clemente, atormentada pela certeza de que jamais saberia quem era aquele homem, esmagada pela realidade de uma pequena frase. Nunca mais.
As árvores
(7/11/1999)
Era um homem que amava as árvores. Não plantas ou flores, mas árvores somente. Em suas caminhadas ao redor da Lagoa, mal olhava a paisagem. Para ele, o perfil azulado das montanhas, o espelho d’água duplicando os barcos, a vegetação de mangue com suas garças – nada existia. Só tinha olhos para as árvores.
Passava pelas pessoas sem vê-las. As formas humanas, com seus movimentos sempre apressados, exasperavam-no. Gostava da fixidez das árvores, de seu crescimento lento, de sua paciência. Concentrava-se nelas de maneira quase obsessiva: as amendoeiras, com suas folhas de múltiplos tons; os flamboyants, cujas folhas, rendadas, já guardavam, durante o resto do ano, um pouco da beleza das flores que um dia desabrochariam; e até as paineiras, cujos troncos, grossos e repletos de espinhos, abriam-se de repente na delicadeza de galhos finos, sustentando chumaços de algodão.
Sonhava em ir um dia à Nova Inglaterra, não para conhecer cidades mas sim seus bosques. E que fosse em outubro, para ver a beleza das árvores tingindo-se de vermelho, laranja, ocre e amarelo, todos os matizes que tomam as florestas do hemisfério Norte no outono. É o tempo em que as árvores se despojam, se decompõem e – ao contrário dos humanos – se põem nuas para enfrentar o inverno. Era essa entrega, essa humildade que o fascinava.
E foi no que pensou quando, um dia, atravessando a Atlântica – fora de seu caminho habitual –, uma enorme árvore chamou sua atenção. Era estranha. Tão incomum que ele se perguntou como nunca havia reparado nela antes, mesmo passando pouco por ali. Tinha o tronco muito grosso e os galhos baixos, com sua folhagem espessa lembrando os do ficus, embora num tom ligeiramente mais escuro. Mas sua característica mais marcante era a de que crescera na horizontal. Vergada, com certeza, pelo vento do mar, quando ainda era apenas um arbusto, fora aos poucos se esquivando, se encurvando, e adulta se consolidara numa árvore acuada e fugidia. Parecia absurdo que seu tronco, agora forte e formado por grossos nós, permanecesse naquela posição, submisso diante da brisa impalpável.
E, olhando as próprias mãos, o homem refletiu por um instante. Observou os nós dos dedos, como galhos saindo de um tronco. E pensou no quanto ele próprio guardava, na pele, as marcas da humilhação. No quanto, por anos e anos, sofrera com a tirania do pai, que sobre ele soprara como um vendaval, exigindo do menino tímido, de gestos femininos, que fosse um homem. Pensou também em como resistira, em como se recusara a sucumbir, a desesperar. E, voltando a olhar a árvore, percebeu de repente que por trás daquela submissão havia a majestade da resistência. E concluiu que, afinal, ela se parecia um pouco com ele próprio. Vergado, sim – porém íntegro. E imenso em sua delicadeza.
Segredos
(14/11/1999)
Sempre me chamou a atenção, aquela senhora. Ela almoça no mesmo restaurante que eu. Todos os dias, à mesma hora, vejo-a entrar, sozinha, elegante em sua roupa escura, quase sempre de gola rolê, os cabelos muito brancos presos num coque. Pisa o chão de lajotas com passos incertos, o corpo muito magro um pouco encurvado, como se carregasse um peso invisível – ou um segredo. Sim, porque os segredos vergam as costas, pesam como fardos. E, ao olhar para ela, desde a primeira vez, fui tomada pela sensação de que tinha algo a esconder.
Outro dia – um dia de sol, de primavera, com o ar impregnado de luz – ela chegou à porta do restaurante com um andar diferente. Passos mais rápidos. E, antes mesmo que entrasse, notei, através do vidro, que se dera alguma transformação. Fiquei observando. Entrou e passou com seu andar mais leve. Sentou-se a poucos metros de mim, mas num ângulo que não me permitia ver seu rosto, apenas o perfil e as mãos. Estavam trêmulas, mais do que de costume. E, enquanto esperava a chegada do garçom, ela tirou da bolsa alguma coisa que seus dedos nervosos trouxeram para cima da mesa. Inclinei-me para a frente e pude ver: era uma carta.
Nesse instante, ela se virou e, ainda com o envelope nas mãos, olhou o dia lá fora. Vi então, com toda a clareza, que seu olhar carregava um brilho novo, febril. E aquilo atiçou minha imaginação. Sem dúvida, a carta a transtornara. E eu poderia jurar que tinha alguma relação com seu segredo – fosse qual fosse. Os olhos traem, revelam. Nas mulheres muito velhas, são eles que exibem as marcas de antigas paixões. Por trás dos cabelos brancos, das rugas, da pele ressecada, cintila muitas vezes, nos olhos, um brilho traiçoeiro – porque é ali que os desejos cavam sua última trincheira.
* * *
Muitas semanas se passaram. Todos os dias, à mesma hora, ela continua chegando para almoçar, os olhos novamente apagados, o passo outra vez mais lento, o tremor das mãos apaziguado. Parece que o efeito da carta passou. Sei que nunca saberei o que estava escrito ali. Sei que a velha senhora nunca falará comigo, nem com ninguém. Mas há pelo menos um segredo de seu passado que já conheço. Por mero acaso. Aconteceu ontem. Ela se sentou na mesa ao lado da minha. Nunca antes isso acontecera. Era a chance para observá-la bem de perto. Vestia, como de costume, uma blusa de mangas compridas, de malha de lã, escura. E, sob o facho de luz que incidia sobre sua mesa, pegou o cardápio. Ao fazê-lo, a manga da blusa franziu-se um pouco em direção ao cotovelo, deixando à mostra uma parte do antebraço. E foi então que eu vi, no pulso muito branco, a cicatriz.
Um dia, ela quis morrer. E tenho certeza de que foi por amor.
As gravuras
(21/11/1999)
Quando saltou do carro, diante do casarão, a mulher se entusiasmou. Estava certa de que faria um bom negócio. Dona de antiquário, acostumada a comprar coisas antigas, tinha uma intuição que lhe fazia farejar, à distância, os locais onde encontraria coisas interessantes. O anúncio falava em móveis e gravuras de moda, mas era a respeito das gravuras que estava curiosa. E a fachada da casa, em frente ao cais da Urca, prometia. Era um daqueles casarões neo-clássicos, parecendo um palacete francês à beira-mar, com muros baixos e um jardim delicado na frente. Quem quer que tivesse morado ali, tinha bom gosto.
Entrou pelo pequeno portão de ferro, que estava apenas encostado, e tocou. Uma senhora distinta, sem dúvida a governanta, veio atender. Como já tinham acertado a visita por telefone, foi logo conduzindo-a à saleta onde estavam as gravuras. A mulher ficou encantada. Havia desenhos de todos os tipos e tamanhos, alguns em álbuns, alguns soltos, outros emoldurados e dispostos pelas paredes, mostrando a moda na virada do século. Por toda parte, mulheres sorridentes exibiam suas anquinhas, seus vestidos cintados, seus chapéus extravagantes.
– São lindas – disse a mulher após algum tempo. – Vou ficar com o lote todo. Quantas são?
A governanta olhou-a, parecendo indecisa. Demorou um pouco a responder:
– São… 150.
– Ótimo – disse a mulher. – E como faço para acertar os detalhes? A dona da casa…
– A dona da casa morreu – disse a governanta, rápido. – É a filha dela que está vendendo tudo. A senhora pode ligar para esse telefone aqui.
A mulher agradeceu, tomando o cartão com o telefone, mas continuou encarando a governanta. Tinha a impressão de que ela queria lhe dizer alguma coisa.
– A senhora… a senhora não gostaria de levar também algum móvel? – disse a governanta de repente, em tom casual. Mas seu olhar traía algo mais. Parecia aflita. – Essa cadeira, por exemplo.
Só então a mulher reparou na bela cadeira de espaldar alto, com assento de palhinha, atrás da mesa com as gravuras.
– Era aí que minha patroa gostava de se sentar, todos os dias, para apreciar a coleção. Fez isso durante anos, até o dia de sua morte – disse a governanta. E, depois de vacilar um pouco, continuou: – A senhora talvez não acredite em mim, mas… todos os dias, de tardinha, quando estou fechando as janelas da casa, eu a vejo. Sentada nessa cadeira, olhando os desenhos.
A mulher abriu a boca, mas não chegou a dizer nada. E a governanta completou, com ar cândido:
– Eu, se fosse a senhora, comprava a cadeira também. Talvez, assim, minha patroa possa continuar junto das gravuras de que tanto gostava…
Marinha
(28/11/1999)
Primeiro, os pés dela tocaram a pedra. Parou, por um instante, sentindo a aspereza e o frio, sorvendo num segundo os milhões de anos daquela matéria que estava ali, talvez, desde o início dos tempos. Depois, caminhou. Mas precisou fazê-lo com muita lentidão e cuidado, pois mantinha os olhos baixos, quase fechados. Apenas seus pés lhe transmitiam a delicada transformação da pedra, a umidade crescendo à medida que se aproximava do mar, de seus perigos.
Levou algum tempo até encontrar o ponto exato. Foi só quando já podia sentir, na sola dos pés, um princípio de maciez, os primeiros sinais de limo, que parou e ergueu o rosto. Mas ainda manteve os olhos fechados por um momento. Então, respirando fundo, abriu-os – muito e de uma só vez. E olhou a paisagem.
O mar tinha, naquele fim de tarde, todos os matizes de verde que sua imaginação podia conter. À esquerda, em torno das ilhas, era quase musgo, mas à medida que avançava rumo à praia tornava-se mais e mais claro, até tocar a espuma com uma transparência de pedra preciosa. Quase não havia ondas e as águas se despejavam devagar sobre a areia, como se temessem quebrar o silêncio da praia vazia. Parara de chover pouco antes e, na areia deserta, poucas pessoas pontilhavam a paisagem, onde o sol surgira, intruso, furando as nuvens. À direita, na calçada debruçada sobre o Arpoador, um gato solitário dormia. Belo e forte como um tigre, seu pelo cinza, rajado, quase confundia-se com as pedras portuguesas. Ao fundo, o perfil dos morros já ia sendo aos poucos contaminado pelas sombras azuladas do crepúsculo, mas a fileira de prédios ainda recebia com força o sol oblíquo, transformando-se em caixas de luz. A areia também. A areia ofuscava, espreguiçando-se em curva, cor de sorvete de baunilha.
Ela sorriu. Impregnada de luz, Ipanema se derramava inteira à sua frente.
Guardaria aquele instantâneo, como já guardara tantos outros, apreendidos em manhãs ou tardes, em dias de sol ou nuvens.
Gostava de fazer isso. Caminhar de olhos baixos, quase fechados, postar-se em algum lugar e abri-los de uma vez, para apreender a paisagem inteira, como um quadro. Tinha uma memória visual prodigiosa. Suas retinas precisas lhe transmitiam cada contorno, cada tonalidade e nuance do que via. Depois, mantinha essas imagens armazenadas na mente e era capaz de reproduzi-las, em pensamento, nos menores detalhes, sempre que quisesse. Era só evocá-las. Formavam sua coleção particular. As imagens não se repetiam, nunca. Como impressões digitais, como desenhos na íris dos olhos, os crepúsculos de Ipanema eram únicos – cada um deles, todos eles. Embora ela viesse fazendo aquele pequeno ritual havia muitos anos. Era sua fixação. Tinha o estranho hábito de pintar com os olhos.
A alma das coisas
(5/12/1999)
Sempre tive uma relação estranha com os objetos inanimados. Olho-os muitas vezes com a impressão de que sofrem, como nós, de que sentem frio, cansaço, solidão, cãibras.
Quando era menina e estudava no Colégio Andrews, havia, no canteiro central da Praia de Botafogo, uma estátua que me intrigava. Era uma mulher, deitada, com um bebê nos braços. Na verdade, estava apenas recostada, no ângulo em que ficamos quando estamos numa dessas espreguiçadeiras de jardim. Seu corpo de mármore, porém, não estava recostado em lugar algum. Ficava solto, encostado ao nada, naquela posição incômoda, como se fizesse um exercício abdominal que nunca tinha fim. E o pior, com um bebê nos braços. Sempre me preocupei com ela. Anos e anos depois, continua lá, na mesma posição. Até hoje, quando passo pela Praia de Botafogo, não posso deixar de observá-la. E meu olhar toca seu corpo imóvel com imensa carga de solidariedade.
Há alguns anos pensei muito nela, nessa mulher de pedra, ao ler um conto da escritora americana Joyce Carol Oates, que me deixou sem ar. Era narrado na primeira pessoa por uma santa, no altar. Com o menino Jesus nos braços, aquela imagem da Virgem falava de sua imobilidade, dos anos e anos passados ali, sem sequer poder virar o rosto para mirar o bebê que carregava nos braços, suportando os olhares aflitos dos fiéis sem ter como lhes falar. Prisioneira do gesso de que era feita.
Pode parecer estranho, mas essas coisas me impressionam, muito. É verdade. Vivo assim, a pensar na alma das coisas. Desde criança, quando cuidava que as bonecas estivessem em boa posição, para não morrerem sufocadas.
Minhas preocupações são muitas. Como por exemplo o tubinho de pasta de dentes que está encravado no asfalto, perto do lugar onde trabalho. Sinto por ele uma ternura enorme. Todos os dias, ao atravessar a rua, vejo-o ali, imóvel, descorado, ostentando apenas o revestimento de metal, seu colorido há muito desfeito. Pisoteado, coberto de poeira, às vezes afogado em chuva, ele me parece de uma solidão imensa.
E agora me aparece o tal de Saci. Nosso pobre satélite, lançado ao espaço. Li que está perdido, algo saiu errado e ele não faz contato. Ninguém sabe por onde anda. Será que já o encontraram e eu não fiquei sabendo? Tomara. Porque me causa pena. Em certas noites quietas, olho para o céu e penso nele, vagando no vazio, seu pequeno corpo de metal, esférico ou cilíndrico, enfrentando a solidão gelada. E ainda por cima com esse nome, Saci, meio pobre-coitado, meio vira-lata. Mais um anti-herói brasileiro. É, acho que é por isso que me inspira tanta compaixão. Ele se parece um pouco com o Brasil, que às vezes, quando desesperamos, também nos dá a impressão de estar assim – perdido no espaço.
A hora
(12/12/1999)
Ele era um homem muito prático, desses que só acreditam no que vêem e que estão sempre querendo controlar tudo à sua volta. Certa noite, depois de um dia de muito trabalho, voltou cansado para casa, onde morava sozinho. Deitou-se com o corpo moído e a cabeça vazia, adormecendo quase que de imediato. Mas, no meio da noite, acordou. Isso não era de seu feitio. Acordou de súbito, sem qualquer motivo e, sentado na cama, ficou à escuta. Só ouviu o silêncio. No escuro, olhou o mostrador iluminado do relógio digital, marcando exatamente 3:18.
Dando de ombros, voltou a deitar-se e, enfiando o rosto no travesseiro, fechou bem os olhos. E adormeceu. Ou talvez não. Não tinha certeza. Mas, passado algum tempo – quanto tempo? – viu-se outra vez acordado, os olhos abertos no escuro. Aquilo o irritou. Não era dado a insônias. E no dia seguinte ia acordar cedo, para mais uma jornada de…
Parou, de repente. Começara a virar-se na cama, mas reteve o gesto. Seus olhos tinham acabado de pousar no mostrador do relógio à sua direita, na cabeceira.
Eram 3:18.
O relógio tinha parado, pensou. Mas relógio elétrico só pára quando é desligado ou falta luz. E aí o mostrador se apaga. Franziu o rosto no escuro. Com certeza, se enganara.
Voltou a deitar-se, agora apertando o travesseiro ainda com mais força contra o rosto, tentando a todo custo dormir. Rolou e rolou na cama, sentindo um incômodo, uma inquietação, com a vaga sensação de que evitava virar-se para o lado do relógio. Mas, ao fim de um tempo, desistiu. E jogando o travesseiro para o lado, sentou-se outra vez na cama.
E seus olhos, muito abertos, não puderam evitar os pequenos números luminosos – que marcavam 3:18.
As horas tinham parado de correr.
Devia haver uma explicação lógica, mas, por alguma razão, a visão daqueles números vermelhos teve sobre ele um efeito imediato e paralisante. Não ousou mover-se. Tinha a sensação de que qualquer movimento seria perigoso.
Tentou controlar-se, a custo. Fechou os olhos durante um ou dois minutos, contando em pensamento o passar dos segundos, e tornou a abri-los – apenas para dar de novo com os mesmo algarismos assombrados. 3:18.
E o suor frio porejou de todo seu corpo, num átimo. Ele, o homem prático, estremeceu. Ele, que não era dado a imaginações, viu-se assaltado de repente pela poderosa certeza de que estava diante do desconhecido. E, com um arrepio, pensou que talvez aquele relógio marcasse a hora de sua morte.
Madrugada
(19/12/1999)
A primeira coisa que ele viu, ao abrir os olhos, foram as luzes. Luzes que se multiplicavam, piscando a intervalos irregulares, interpenetrando-se num jogo indecifrável. Por um segundo, um segundo apenas, ofuscado e zonzo, não soube dizer o que era aquilo. Logo, lembrou-se. Eram-lhe familiares, as luzes. Mais do que isso, eram parte de sua vida. Mas a verdade é que, naquele despertar, sentira uma estranheza imediata por trás do espetáculo conhecido.
Sentou-se, esfregando os olhos. Era madrugada. Aparentemente estava tudo em ordem. As luzes piscavam à sua volta, com seus dourados e azuis, em ondas repetitivas e hipnóticas. Mas, pelo rumor das amarras, podia sentir que o vento crescia, provocando uma certa instabilidade. Talvez fosse uma tempestade. Fora um dia muito quente.
Ficou de pé, a custo. O chão oscilava. Espiou lá fora. E viu. No céu, por cima dos morros, o dia que deveria raiar fora barrado por uma parede de nuvens negras, ameaçadoras. Era mesmo uma tormenta.
Encostou-se a um dos cabos e esperou. Em poucos minutos, o vento que arremessava contra os fios transformou-se num troar assustador e a chuva começou a cair, primeiro em pingos grossos, espaçados, depois em massas d’água, que se despejaram sobre as luzes como chicotadas. O homem, ensopado, a tudo assistia com o semblante pesado de preocupação, as mãos crispadas em torno do eixo central. À sua volta, cabos e fios rangiam, enlouquecidos, enquanto as águas embaçavam a cortina de luzes. Ele não era um covarde. Fora, desde criança, acostumado à vida difícil, às intempéries. Mas estava impressionado com a força daquela tempestade. O chão, sob seus pés, era cada vez mais instável. Caminhando com enorme dificuldade, verificou as amarras, os cabos, os fios, lutou o quanto pôde contra a força do vento e da chuva, até cair exausto, sabendo que nada mais poderia fazer a não ser esperar. E foi o que fez. Esperou, rezando baixinho.
* * *
A primeira coisa que viu, ao abrir os olhos, foram as luzes. Estavam intactas. A tempestade se fora. Da mesma forma inesperada e instantânea com que surgira, dava agora lugar à calmaria. Caminhando até a extremidade da base, o homem olhou, através da cortina de luzes, os prédios em volta da Lagoa, com suas janelas de presépio. Só agora, passada a tormenta, vencido o perigo, sentia o isolamento em que se encontrava. Há tantas semanas dando plantão dentro da árvore de Natal e nunca se importara. Era a primeira vez que se sentia assim.
E, de repente, olhando para aquelas janelas acesas, no mundo real para além da margem, ficou pensando se haveria alguém que, observando a árvore da Lagoa, parasse um pouco para pensar que, por trás daquelas luzes, ali dentro, sozinho, muitas vezes com medo – estava um homem.