2000

CONTOS MÍNIMOS

2000

 

 

 

Madrugada, ainda

(2/1/2000)

 

Na sala, agora silenciosa, você observa os destroços da festa. Cinzeiros cheios, copos vazios, pedaços de papel espalhados pelo chão, fitas coloridas, restos de bolas de gás. A árvore de Natal, apagada, tornou-se uma sombra cravejada de olhos vermelhos, que parecem observar você, com seu brilho escuro, toldado pela penumbra. Em cada um desses pequenos espelhos convexos, sua imagem está refletida. Só a sua, pois todos se foram. Ou todos dormem, não importa. Apenas você está aqui – insone e só.

Ao fundo, para além do tique-taque do relógio de parede, você ouve o som distante de uma sirene. Por um momento, pára, à escuta. Depois caminha até a janela, para olhar a noite. A madrugada vai alta e, por trás dos morros, as primeiras estrias vermelhas começam a surgir no céu. Mas seu olhar se prende à imensa árvore de Natal, no meio da Lagoa. O cone brilhante, com suas luzes inquietas, douradas e azuis, está plantado sobre a água como se fosse um templo. Até a estrela posta em seu cume se parece, de longe, com uma cruz. Essa imagem lhe transmite uma sensação de plenitude – mas também de solidão.

E, de repente, um pensamento lhe ocorre. Embora sempre olhe para a árvore, todas as noites desde que foi acesa, só agora pensa que ali dentro, sozinho, deve estar um homem. Você ouviu falar que há sempre alguém ali, um técnico em eletricidade talvez, de plantão para alguma eventualidade. E hoje, noite de festa, com certeza ele está lá.

Você aperta os olhos. Sim, agora observando melhor, quase pode enxergar sua silhueta por entre as luzes que se movem. Um homem. Sozinho numa bolha de silêncio, pairando sobre as águas escuras em seu barco mágico, feito de luzes ilusórias – que em breve serão apagadas.

Alguém como você. Como todos nós.

E, num instante, a paisagem deserta, o céu estriado, a quietude imensa do espelho d’água da Lagoa, o som distante da sirene que morre aos poucos, tudo isso se junta às luzes da árvore para formar um só sentimento, que cai sobre você como um manto, corporificando-se, materializando-se instantaneamente. Com imensa lucidez, você percebe num segundo o ser único que é,  o ser cativo, prisioneiro, condenado a viver sozinho no mesmo velho e conhecido corpo, pela vida inteira, plantado sobre um planeta que vaga no espaço sem fim, em meio a alegrias e tristezas que se alternam, como luzes piscando.

E, afastando-se da janela, você suspira. Mas não, não está triste. Apenas consciente – mais do que nunca – de sua própria individualidade. E, nessa madrugada, em que ainda paira no ar o espírito das Festas, você sorri, pensando: a solidão é uma dor limpa.

 

 

Planos

(9/1/2000)

 

 

“Hoje é dia 9 de janeiro de 2000”, pensou ela, entrando na cozinha. “9 de janeiro de 2000 e eu continuo aqui.”

Divorciada, dois filhos, com um trabalho de que gostava, poucos problemas e nenhuma doença, ia levando a vida. Não tinha do que se queixar. Mas a verdade é que se sentia um pouco frustrada. Afinal, o ano 2000 era um marco. E ela, desde muito jovem, fizera planos para a data – planos bem diversos da vidinha que levava agora.

Nunca falara a ninguém de seu projeto, na certeza de que não a levariam a sério. Mas, lá no fundo, continuara acalentando a idéia em segredo, durante anos, muitos anos.

Tudo começara quando era ainda uma menina, dos seus 14 anos. Sem saber muito bem do que se tratava, fora assistir ao filme “2001, uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick. E saíra do cinema com uma sensação estranha na boca do estômago. Estava indócil, mordida por uma inquietação que, à noite, não a deixaria dormir. Por horas e horas, ficara deitada na cama, olhos arregalados no escuro, sentindo ainda nas retinas a vertigem dos mundos coloridos percorridos no filme, ouvindo o zumbido misterioso do monolito. Demorara a entender a razão de seu desassossego.  O filme havia provocado nela um desejo avassalador, quase irracional, de viver em outro mundo, em algum lugar diverso, longe dali – no futuro, talvez.

Sim, era isso, decidira afinal. Queria viver no futuro. Não em 2000 ou 2001 (que naquele tempo ainda eram o futuro), mas muito, muito além.  E fora assim que, deitada em sua cama de menina, tomara a decisão: quando estivesse na meia idade, por volta do ano 2000, seria congelada. Já havia lido reportagens sobre o assunto, sobre os primeiros centros de congelamento que estavam sendo criados nos Estados Unidos. Muitas pessoas com doenças incuráveis já estavam lá, mantidas vivas em ambientes de temperatura baixíssima, como se hibernassem, à espera de um despertar futuro, quando suas doenças já tivessem cura. Na certa, dali a algumas décadas, por volta do ano 2000, o congelamento já seria uma coisa comum. E as pessoas, mesmo sãs, seriam congeladas para viver no futuro.

Estava decidido. Era o que ela faria. Quando estivesse com pouco mais de 40 anos, perto do ano 2000, seria congelada. Deixaria ordens expressas para só ser reanimada no fim do século XXI. Como a Bela Adormecida, dormiria cem anos. E acordaria para um novo mundo.

Abriu a porta do freezer e, sentindo o ar frio na pele do rosto, espiou. Ainda restava uma caixa de almôndegas. Era o que faria para o almoço. Enfiou a mão e tentou puxar a caixa, mas ela estava grudada no fundo. Fez mais força. Depois de várias tentativas, a caixa se desprendeu. Estava toda coberta de gelo. E de repente, ali, no meio da cozinha – no dia 9 de janeiro de 2000 – ela pensou, com um sorriso triste: “Era eu que devia estar assim”.

 

Contato

(16/1/2000)

 

 

Continuo sem entender muito bem. Hoje passou por mim um ser de sexo indefinido, que me deixou ainda mais confuso. Seu aspecto era muito estranho. Tinha um rosto delicado, um nariz pequeno, os lábios bem delineados, mas não muito grossos, formando, no conjunto, o que aqui se chama de mulher bonita. Os cabelos, muito escuros e lisos, eram também femininos, compridos, bem tratados e lustrosos. Mas, assim que se fechava em ponta a linha do queixo, dava-se a transformação: o pescoço, largo e musculoso, era estriado de veias, parecendo inflado a ponto de rebentar. O tronco, imenso e forte, abria-se para os lados em braços espetaculares, rígidos, com gigantescos nós de músculos sobrepondo-se uns aos outros e formando uma curva um pouco semelhante à que encontramos em certos primatas. As pernas eram igualmente brutais, levemente arqueadas devido ao volume dos músculos, dando ao andar uma cadência que em tudo se parecia com o dos seres do outro sexo.

Já havia visto algumas criaturas um tanto indefinidas por aqui, mas esta me pareceu um exemplo extremo. Não pude classificá-la.

Aliás, tenho tido grande dificuldade para fazer as classificações. Tudo me parece de difícil compreensão. Esse pequeno território que nos serve de amostragem traz incoerências que me deixam atônito. Para dizer a verdade, as contradições são muitas, infinitas, não tendo havido ainda um registro lógico capaz de explicar tantas coisas de que já lhe falei, como as discrepâncias na ocupação do espaço, para dar apenas um exemplo.

Mas a verdade é que, de todos os absurdos a que tenho assistido nesse primeiro contato, nenhum me deixou mais espantado do que o seguinte: como civilização razoavelmente evoluída em termos tecnológicos, eles parecem ter centrado boa parte de sua pesquisa científica na busca do conforto. Inventaram pequenos aparelhos, bastante engenhosos, que lhes facilitam a vida, tornando-os cada vez mais ociosos e aos quais dão nomes variados, como automóveis, computadores, celulares, controle-remoto etc. Tudo parece ter sido inventado com um único objetivo: o de levá-los a fazer menos esforço físico. Pois muito bem: você acredita que, nas chamadas horas de lazer, eles correm pelas ruas feito loucos, de um lado para o outro, suando em bicas, sem parecer querer chegar a lugar algum? E mais: concentram-se também em locais que chamam de academias e lá se dedicam, sozinhos ou em grupos, às tarefas mais extenuantes e inúteis, muitas vezes atados a aparelhos de tortura, os quais parecem buscar por livre vontade, e não forçados, como já vimos acontecer com outros povos bárbaros. Chegam a caminhar sobre esteiras, sem sair do lugar! Não lhe parece o maior dos absurdos?

Bem, continuarei observando e tentando entender. Espero estar de volta em breve, na paz de nossa querida Andrômeda – e longe deste planeta louco.

 

 

A biblioteca

(23/1/2000)

 

 

Ergo os olhos e admiro a estante. Deste ângulo, vista assim, de baixo para cima, ela é de uma beleza quase opressiva. As prateleiras de madeira preta, com frisos dourados já um tanto gastos, dividem a parede na horizontal, cortadas pela presença de uma enorme escada, também de madeira escura, presa a um trilho. E, dispostos sobre as prateleiras, por toda parte – os livros.

São inúmeros, e todos antigos. Há alguns raros, talvez, mas na maioria são apenas velhos, o que, de toda forma, lhes confere uma aura de importância. Gosto dos livros usados. Têm alma. Deles se desprendem os eflúvios das pessoas que os tocaram, com suas dores, alegrias, esperanças, inquietações. Gosto especialmente quando me deparo com nomes, datas, dedicatórias, quase sempre escritas com caneta tinteiro, naquela caligrafia delicada e floreada de outros tempos. Observo também os livros encadernados, com suas lombadas de couro, vermelhas, pretas ou cor de caramelo, muitas marcadas por títulos de um ouro velho, tendo rolotês de couro como acabamento.

Estou assim, absorta na observação da estante, quando, subitamente, uma certeza me assalta. A de que há mais alguém aqui. Olho em torno e encontro a resposta que já conhecia. Estou só, na sala silenciosa. Não há ninguém. Caminho até o centro do aposento, olhando agora para as outras paredes, também forradas de livros, e sinto crescer a impressão de uma presença.

Cruzando os braços à frente do corpo, fecho os olhos. A sensação aumenta. Há quase um zumbido, um burburinho, como se a sala estivesse cheia de gente. Sinto-me zonza.

Fico assim por alguns instantes, imóvel. Não sinto medo, apenas curiosidade, embora perceba que meu coração bate um pouco rápido demais. Se há um fantasma aqui, é um fantasma amigável, penso. E, de repente, surge em minha mente a imagem do rosto de Borges que, já velho, encara-me benevolente com seus olhos vazios, sorrindo o sorriso infantil dos cegos.

E então eu compreendendo. É isso. Eles estão aqui.

Abro os olhos e inspiro fundo. Em meio ao cheiro adocicado que impregna o lugar (livros antigos,  mofados, têm às vezes um cheiro doce, como as flores murchas e os cadáveres), percebo que a presença pressentida nada mais é do que os espectros de Borges, Eça, Lúcio Cardoso, de tantos outros. E sorrio. O sobressalto passou. É um privilégio estar aqui, sozinha neste lugar, neste templo sombrio e úmido, onde pairam tantos e tão doces espíritos atormentados.

 

 

As flores

(30/1/2000)

 

 

Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata borboleta cor de sangue. Na cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também, e um tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas coloridas dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu avenca.

O velhinho que vende flores.

Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez mais ainda – porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por alguns instantes, as mulheres esticando os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.

Nesse instante, o garçom, meu conhecido – e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de flores –, chegou a meu lado e disse:

— Está fazendo trinta anos hoje.

— É mesmo?

— É – respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele mesmo restaurante há mais de vinte anos.

— Como você sabe?

— Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?

— É verdade – respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.

Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano. Ele me olhou como se me varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história, eu já conhecia. Só não sabia que, naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem nascido, que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.

Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.

— Às flores – disse.

E ele sorriu. Em sua loucura, ele sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua redenção.

 

Tarde demais

(6/2/2000)

 

 

 

 

Eu caminhava pela rua deserta, numa noite de chuva fina. Mas não estava com frio. Nem sentia qualquer outra sensação desagradável, fosse medo ou solidão. Ao contrário. Seguia com passos firmes, o ar fino da noite batendo-me no rosto como se fosse um bálsamo. Estava feliz, revigorada. Tinha, como já tivera em outras ocasiões, uma sensação de domínio, de poder. Sempre que viajo, sempre que me vejo numa cidade estranha, gosto de caminhar assim, horas e horas sem rumo pelas ruas desconhecidas, embora isso às vezes me cause uma espécie de tontura, algo como o doce torpor dos maratonistas,  deixando-me num estado híbrido entre vigília e sono.

Tudo parecia real à minha volta: os prédios clássicos, com seus telhados de ardósia molhados de chuva, o asfalto brilhante das ruas, as calçadas de pedras largas, gastas pelos passos de muitos séculos. Mas a verdade é que, no fundo, em algum ponto dentro de mim, havia a dúvida sobre se eu estaria desperta ou sonhando. Só que isso não importava. Havia lucidez e havia euforia. Eu estava bem.

Até que de repente, pouco depois de virar uma esquina, tudo o que eu sentia, aquele conjunto de sensações boas – felicidade, vigor, domínio –, tudo desapareceu de um jato, dando lugar a um sentimento de pânico, imediato e inexplicável. Num primeiro momento, não entendi por quê. Algo causara a transformação. Sabia que houvera uma intervenção, a presença súbita de um elemento exterior ao cenário se fazendo sentir, de forma avassaladora. Precisei de alguns segundos até compreender que era um som. O som de passos.

Passos atrás de mim, na rua deserta.

Estanquei o andar, o estômago fechado como um punho. E esperei.

Virei-me devagar, muito devagar. E, ao fazê-lo, vi, por trás de uns latões na calçada – uma sombra.

No mesmo segundo soube, como só sabemos em sonho, que era a mim que aquela sombra queria. O vulto estava em meu encalço. E essa constatação, em vez de aprofundar meu terror, foi um alívio. Porque tamanha certeza era a prova de que eu sonhava. E, assim encorajada, movi-me em direção aos latões. Era o melhor a fazer. Enfrentar o pesadelo e assim acabar com ele. Nos sonhos, quando chega o momento do pavor maior, sempre acordamos. Era o que eu queria.

Com passos firmes, caminhei até a calçada e, juntando toda a força de que era capaz, chutei um dos latões. Ele foi ao chão, com estrondo. E, diante de mim, vi erguer-se o vulto, seus olhos loucos, o rosto muito pálido marcado por uma cicatriz. Real, dolorosamente real. E, só então, com terror inominável, percebi – tarde demais – que não sonhava.

 

Tirania

(13/2/2000)

 

 

 

Sentada sozinha em sua cadeira de praia, quase junto ao mar, a mulher, já madura,  observa. É uma manhã clara de verão, verão com ar de primavera, e o sol é quase uma carícia, pois passa pouco das 8 horas. Ela vê quando a moça desponta na areia, ao lado da babá e de dois filhos pequenos, trazendo consigo uma bolsa enorme, uma barraca com capa de plástico pendurada no ombro e um balde em forma de joaninha repleto de apetrechos de praia. Observa enquanto ela se aproxima, as pernas musculosas e morenas vencendo a areia fofa, trazendo um dos filhos, o maior, pela mão. O outro vem no colo da babá.

Param ali perto e começam a dispor suas coisas. É a moça que faz tudo. A babá apenas espera, brincando com os meninos. A jovem mãe, que parece ter menos de 30 anos, movimenta-se sem parar durante vários minutos, incansável. Vai até o mar, enche o balde, pendura as coisas na barraca, tira da bolsa uma garrafinha d’água e dá para o filho menor, que está fazendo manha. Não pára um segundo. Quando tudo parece estar pronto e todos satisfeitos, ela finalmente estende a toalha para se deitar ao sol. Só então tira a camiseta e o shortinho. Tem um corpo perfeito. Tudo no lugar, nem uma só gordurinha, o biquíni azul-turquesa contrastando com o moreno da pele, lisa e sem manchas. É uma moça linda.

De sua cadeira, a mulher, que a tudo observa, suspira. Pobre moça, pensa. Deve pagar um preço alto por tudo isso.

Sente uma pena enorme dessas jovens mães, pois tem certeza de que elas sofrem muito. Fazem tudo o que as mães de antigamente faziam, só que agora também trabalham fora. E o que é pior: precisam ser bonitas, sempre. Não poderão envelhecer nunca.

Que fardo terrível não será ter de estar sempre bonita e jovem, sofrer com a balança e suar na academia, não poder descuidar um segundo, não poder relaxar – e isso quando já se tem tantas outras preocupações, trabalho, casa, marido, filhos.

Sim, elas sofrem muito.

Uma onda vem lamber os pés da cadeira de onde a mulher observa a jovem mãe. A verdade, conclui, é que hoje lutamos uma batalha perdida. Nossa luta – de todos nós, homens e mulheres – é contra um destino estabelecido desde o início dos tempos, algo que é parte mesmo de nossa essência. E essa luta vai contra a natureza, que nesse ponto é implacável, invencível. É isto. É irônico, pensa a mulher, com um sorriso triste. As gerações que nos anos 60 e 70 fizeram a revolução dos costumes, derrubando os velhos valores e decretando a liberdade a qualquer preço, acabaram por criar a pior das prisões: fizeram nascer um mundo marcado pela tirania da beleza e da juventude, onde é proibido fazer aquilo para o qual estamos predestinados – envelhecer.

 

 

Sete vidas

(2/2/2000)

 

T. S. Eliot diz em um de seus poemas que um mistério ronda o nome dos gatos. Segundo o poeta, além daquele pelo qual atendem, os gatos têm ainda um outro nome, secreto, que só eles próprios conhecem e que nenhum ser humano poderá jamais adivinhar. Deve ser verdade, pois gatos são criaturas muito especiais e, por isso mesmo, cheias de segredos. Eu mesma acabo de descobrir mais um – um mistério que outro dia me foi revelado, por puro acaso.

Estava eu passeando por entre as estantes de uma livraria quando, de repente, meus olhos pousaram sobre uma pilha de folhinhas temáticas, dessas de parede. Havia de tudo: uma folhinha com fotos de bebês, outra sobre design, uma com diferentes paisagens de Paris. E, finalmente, uma de gatos. Era uma das últimas da pilha e seu título me chamou a atenção: “I gatti di Roma”. Curiosa, tirei-a de sob a pilha. E imediatamente parei, como se sacudida por um choque. A capa exibia o pé gigantesco de uma estátua romana, o mármore marcado pelos sulcos do tempo, uma enorme rachadura quase decepando o segundo dedo. E, sobre esse dedo, deitado porém com os olhos muito atentos para a câmera, um gato. Segurei a folhinha com as duas mãos, sem acreditar. Era ele. O gato da fotografia, que ali estava, deitado sobre uma estátua romana, não era um gato qualquer. Era o meu gato – morto no ano passado.

Não que fosse apenas parecido. Era igual. Como não reconhecer cada detalhe? Cada curva das listras que marcavam seu pêlo rajado, os sinais escuros no focinho e em torno dos olhos, o formato das orelhas, a largura das patas, tão grandes já, para um corpo tão jovem – não faltava nada. E mais: o olhar. O olhar que me fitava de dentro daquela fotografia não era outro senão aquele que eu conhecia tão bem. Não podia haver dúvida. Era ele.

E foi assim que compreendi. É por isso que se diz que eles têm sete vidas. Quando os gatos morrem e desaparecem, na verdade ressurgem em outro lugar do mundo, instantaneamente. Lá, nesse outro lugar, o mesmo gato ressurgido, o mesmo “eu” felino, a mesma individualidade, viverá uma nova vida. E outras sucessivas, em outros lugares, até que se complete o ciclo de sete, ou até mais, porque na verdade tudo isso é um grande mistério. E, em cada lugar onde renascer, o mesmo gato será novamente ele próprio – exibindo o mesmo olhar, um perfil idêntico, um jeito igual de esfregar-se contra as quinas dos móveis, tudo. Lá estará ele, outra vez, com a altivez de sempre, a mesma sutileza, a mesma meiguice, toda a ética e toda a dignidade que lhe foram peculiares na vida anterior, essa retidão que os gatos têm e que tem sido tão incompreendida ao longo dos séculos.

A descoberta me deixou feliz. Meu gatinho não morreu. Ele vive em Roma, agora. Corre solto por entre os velhos monumentos, galgando muros de hera. À tarde, deita-se ao sol sobre imensos blocos de mármore, rajado como seu pêlo, e adormece ouvindo o murmúrio das fontes. Tem outro nome, é verdade. E desse nome nada sei, pois que, como já se disse, nomes de gatos são um mistério que nem os poetas conseguem desvendar. Mas isso não tem importância.

 

Tempo

(27/2/2000)

 

 

Li outro dia sobre a formação das estalactites e estalagmites. É algo tão lento que são necessários cem anos para que elas aumentem um centímetro. Cem anos para um centímetro. Gota a gota, a água irá pingar, carregando seus minerais, que  se sedimentarão, década após década, ao longo de uma vida inteira – mais até que uma vida.

Isso me lembrou um livro que eu folheava quando adolescente, na biblioteca de meu pai. Era um livro sobre a história da humanidade, cuja página de abertura trazia um texto inquietante. Dizia o texto que, numa terra distante, chamada Svithjod, há uma enorme montanha de pedra, com mil milhas de altura e mil milhas de largura. Uma vez a cada mil anos, continuava o texto, um pequeno pássaro vai até essa montanha afiar o bico na superfície de pedra. E concluía: “Quando a montanha for inteiramente gasta e desaparecer, um único dia da eternidade se terá passado”.

Eu lia aquilo com um aperto no estômago, os olhos brilhando de fascínio. Acho que foi por causa desse texto que decidi, na época, fazer faculdade de Filosofia. Depois acabaria desistindo, ao saber que quem se forma em Filosofia não vira filósofo e sim professor. Aquilo me desanimou um pouco. E acabei no jornalismo. Mas a verdade é que minha fascinação por esse tipo de assunto continuou e tem continuado, pela vida toda.

Tempo. Essa coisa desconhecida e onipresente, que passa por nós, através de nós, a despeito de nós – mas que passa conosco. Esse algo que ganhou ainda mais estranheza neste século em que Einstein nos provou sua relatividade, mostrando que o tempo passa mais devagar para um astronauta no espaço.

Tempo. Encontro uma amiga e ela me diz que, quando está chateada, olha para os bancos de pedra da praia. “Olhando para eles, tenho certeza de que os problemas existem, mas que um dia tudo passa”. Encaro-a, sem compreender. “Por quê?”, pergunto. “Porque os bancos de pedra não mudam nunca”. Aquilo que é perene dá, assim, a medida do que é transitório. Sorrio e me despeço dela. Acho que está certa.

E, por fim, lembro de um outro texto que há muito me inquieta, escrito por Marguerite Yourcenar, em seu posfácio de “Memórias de Adriano”. Nessas notas, Yourcenar explica como fez para se transportar para a mente de um homem que viveu há vinte séculos (o livro é narrado na primeira pessoa). E, ao analisar o quão distantes estamos do Império Romano, a escritora chega a uma conclusão surpreendente: a de que precisamos de apenas 25 velhos de mãos dadas, “uma cadeia de duas dúzias de mãos descarnadas”, para nos ligar a Adriano. Bastaria somar suas idades. É curioso quando encaramos dessa forma: vinte e cinco velhos de 80 anos, juntos numa sala, formam 2.000 anos.

O Tempo é mesmo muito estranho.

 

Confete

(12/3/2000)

 

A menina se olhou no espelho e suspirou, contente. Não fosse pela pinta à direita, feita com o lápis de sobrancelha da mãe, estaria tudo perfeito. Que fazer? A pinta era horrível, mas a mãe insistira. O resto estava ótimo. Os olhos contornados de preto, o batom vermelho, o cabelo preso pela tiara de pedras cor-de-rosa, com dois tufos de plumas, um de cada lado. E, acima de tudo, a roupa. Era a mais linda fantasia de bailarina que sua mãe lhe fizera nos últimos anos. A malha cor-de-rosa fora bordada de canutilhos e lantejoulas em diferentes tons de rosa e prata, formando um desenho de coração bem na frente. Tudo combinando com as meias finas e as sapatilhas, iguais às de uma bailarina de verdade.

Saiu do quarto e foi até a cômoda que ficava junto à janela da sala. Em cima do móvel, como já sabia, estava o saco de filó cheio de confete e o embrulho comprido, de papel, contendo as rodelas de serpentina. Lança-perfume, não. Podia cair no olho e arder. Sua mãe não deixava. Tampouco deixava-a ir à praça. Lá, o Carnaval dos clóvis e dos mascarados era muito perigoso. Melhor era mesmo fazer o que faria agora: vestir a fantasia e ir para o muro da casa, apreciar o movimento.

Desceu a ladeira até o portão. Era um portão alto, que vivia fechado, sombreado por uma imensa mangueira, que nessa época do ano estava carregada. O muro de pedra também era alto, mas perto do portão ele se abaulava numa espécie de mirante, uma balaustrada redonda, à qual se  tinha acesso através de uma pequena escada, também de pedra. Foi ali que a menina subiu, para em seguida sentar-se na amurada, com as pernas para fora, balançando. E esperou.

Esperou.

Nada. A rua estava deserta. Nem carros, nem pessoas. Não passava ninguém. Depois de um tempo, as pernas da menina começaram a doer. O contato com a pedra, suas irregularidades e asperezas, incomodava. E agora? Em quem a menina iria jogar o confete, a serpentina? Bem que ouvira a mãe comentar que a abertura da nova estrada desvalorizaria o lugar onde moravam. Ninguém mais passaria por lá. Só o tempo continuava passando.

Até que de repente…

Talvez ela tenha cochilado, não saberia dizer. O fato é que, sem aviso, ali estava: diante dela, um homem. De pé na rua, os dois braços estendidos, quase tocando-a, como se pedisse alguma coisa. Vestia o uniforme azul dos internos do asilo, que ficava ali perto. E, além disso, seu olhar o denunciava. Era um louco.

Assustada, a menina encolheu as pernas, rasgando a meia. Mas no mesmo instante parou. Percebeu que o homem não olhava para ela, mas para o saco de confete. E sorria.

E foi assim que, devagar, ela se debruçou outra vez sobre o muro. Abriu o saco de confete e, lentamente, começou a atirar os fragmentos coloridos sobre o rosto do homem. Ele abriu um sorriso ainda maior. Um sorriso sem dentes. Logo, seu rosto suado estava todo grudado de confete, máscara multicolorida onde sobressaíam os olhos desvairados, formando uma visão terrível. Mas a menina não teve medo. E sorriu, também.

Afinal, era Carnaval.

 

Assombração

(19/3/2000)

 

 

Tinha mania de perseguição. Embora não fosse exatamente um maníaco, era bastante cismado e esquisito. Na rua, caminhando pelas calçadas, achava insuportável a idéia de que alguém caminhasse atrás dele. O mero som de passos em sua retaguarda o deixava tão transtornado que imediatamente atravessava a rua ou parava para fingir amarrar o cordão dos sapatos, a fim de deixar que o ‘perseguidor’ o ultrapassasse. Em casa, sozinho, tinha um problema quando lia revistas. Se na página havia a fotografia de uma pessoa olhando para a câmera, ele logo se sentia observado. Aquele olhar o trespassava. Era como se sua vida íntima estivesse sendo devassada por um estranho. Mas sem dúvida a maior de suas agonias era ouvir passos atrás de si.

Estava com pouco mais de 30 anos quando recebeu uma oferta de emprego numa cidade pequena, no Sul. Decidiu ir. Lá chegando, foi ver uma casa para alugar. Achou o preço incrivelmente baixo e quase chegou a desconfiar que houvesse alguma coisa errada com o lugar, mas sorriu quando uma vizinha lhe disse que a casa estava fechada há tempos porque tinha fama de mal-assombrada. Ele podia ter lá suas esquisitices, mas não acreditava nessas bobagens. E alugou a casa.

Nos primeiros dias, nada aconteceu. Até que, num fim de tarde, ao voltar do trabalho, achou a casa especialmente quieta. Estranhou que nem o cachorro latisse, mas não ligou. Dando de ombros, tirou o paletó e, afrouxando o nó da gravata, foi até a cozinha pegar uma cerveja. A cozinha ficava nos fundos da casa, ao final de um corredor sombrio, com chão de tábuas corridas cuja madeira, velha, rangia sob os pés. O homem deu alguns passos pelo corredor, mas de repente parou, como se atingido. No mínimo lapso de tempo entre uma passada e outra, tivera a clara impressão de ouvir a madeira do assoalho ranger atrás de si. Deu mais uns passos. Seu coração batia feito louco. O som se repetiu. Era como se alguém caminhasse atrás dele. Pensou em virar-se, mas não teve coragem. Continuou imóvel, o suor já lhe brotando das têmporas. Tornou a andar e aconteceu de novo. Passos. Passos perseguindo-o.

Ficou parado, no meio do corredor, com os pêlos eriçados, aterrorizado demais para fazer qualquer coisa. Era como se todos os seus temores se condensassem num só instante. Aquilo o imobilizara. Mas, ao mesmo tempo, sentiu subir de dentro de si, como um rumor, uma sensação nova, surpreendente, que a princípio não pôde compreender. Ao final de algum tempo, entendeu. Deu mais uns passos, apenas para certificar-se. Lá estava. Outra vez, atrás dele, o ruído de passos. E de novo, também, a sensação. Era euforia. Uma estranha euforia. Seu olhar brilhou, com uma chispa de loucura. Chegara a hora do acerto de contas. Era isso. A sensação de ser seguido, que o acompanhara e afligira por toda a vida, ganhavam enfim uma razão de ser. Seu horror se materializara – e era melhor assim, pois já não precisaria fugir. E, lentamente, começou a virar-se. Sabia o que o esperava. Estava prestes a se ver frente a frente com o próprio fantasma.

 

 

De mentira

(26/3/2000)

 

 

Correu pelos dedos o colar de pérolas, sentindo a textura acetinada e fria das pequenas esferas. Ela havia recebido aquele colar de presente dos pais ao completar 15 anos. Fazia tempo isso. Lembrava-se que, naquela época, as pessoas ainda falavam de pérolas naturais e cultivadas. Nunca entendera bem a diferença. Até que um dia, há não muito tempo, vira na estante de um sebo um belo livro encadernado, um dos volumes de uma enciclopédia. Folheando o livro ao acaso, dera com um verbete sobre pérolas e começara a ler.

No início do século, um japonês chamado Kokichi Mikimoto, filho de um fabricante de macarrão, conseguira fazer o que até então parecia impossível: cultivar pérolas. Antes disso, as pérolas eram algo raro e caríssimo. Os caçadores de pérolas abriam centenas e centenas de ostras até encontrar uma que tivesse produzido, dentro de sua concha, o pequeno objeto nacarado, resultado de uma espécie de calcificação. Mas as pérolas encontradas só tinham valor se fossem redondas e perfeitas – o que era ainda mais raro. Aperfeiçoando um método que já vinha sendo testado por outros pesquisadores, Mikimoto conseguira fazer com que as ostras por ele manipuladas produzissem pérolas perfeitas, através da introdução, no corpo dos moluscos, de um núcleo redondo extraído da concha de um determinado tipo de ostra.

A mulher lera aquilo com uma pontada de inquietação. E agora, com seu colar de pérolas nas mãos, preparando-se para sair, voltava a sentir a sensação de estranheza. Aquelas pérolas, com toda a certeza, eram cultivadas. Feitas com a intervenção do homem. Porém perfeitas. Tão perfeitas quanto qualquer pérola natural. A invenção de Mikimoto provocara uma revolução. Depois dele, nada mais fora como antes. Uma vez patenteado e disseminado o novo método, as pérolas se tinham transformado na coisa mais comum do mundo. Simplesmente porque é impossível determinar a diferença entre a cultivada e a natural.

E é isso, pensou, o que a inquieta. O fim da diferença. Num mundo em que o falso é cada vez mais perfeito, em que o virtual se expande como um câncer, tomando conta da realidade, em que computadores, biotecnologia, transgênicos, clones e provetas fazem do homem uma espécie de deus, as diferenças entre o que é e o que não é real se tornam cada vez mais sutis, quase imperceptíveis. Perigosamente imperceptíveis.

E, já com o colar no pescoço, a mulher se olhou no espelho, tentando sorrir. Mas não pode deixar de ver o brilho triste que lhe embaçava os olhos, denunciando-a. No fundo, ela sabia: seu sorriso também era de mentira.

 

Vício solitário

(2/4/2000)

 

 

Eu estava parada no sinal, com as mãos descansando sobre o volante, quando a vi. Era uma mulher de meia idade, cabelos grisalhos um pouco desfeitos, cacheados, usando saia e blusa de algodão. Sua roupa era despojada, porém limpa, e embora ela estivesse sentada quase no meio da rua, no degrau mais baixo da escada de um velho sobrado, de forma alguma poderia ser tomada por uma mendiga.

Estava encurvada sobre alguma coisa, tendo a seu lado três cães vira-latas, todos de coleira e parecendo bem tratados. Olhei mais atentamente e vi o que ela trazia nas mãos. Era um caderno, onde escrevia alguma coisa. O sinal abriu e eu fui embora. Mas a mulher dos cães me ficou na cabeça, sem que eu soubesse bem por quê.

No dia seguinte, por acaso, passei outra vez pela mesma rua. E lá estava ela. O mesmo lugar, sentada com seus cães e seu caderno de anotações. Escrevendo. O sinal abriu num instante mas, desta vez, decidi observá-la melhor. Parei junto ao meio-fio, do outro lado da rua, diante de uma garagem. E fiquei espiando. Só então notei sua extrema concentração, o cenho franzido, a maneira vigorosa com que segurava o lápis – pois era a lápis que escrevia –, parecendo centrar todas as forças naquela tarefa.

Pude ver com clareza que às vezes parava para reler o que escrevera, voltava atrás, fazia emendas. Em outros momentos, com o lápis na boca, mirava o infinito, pensativa, como se em busca de inspiração. E tive então certeza. Ela não fazia anotações ao acaso. Eu estava diante de uma escritora.

Fascinada, soltei as mãos do volante e cruzei os braços. Quem seria e o que estaria escrevendo? Que força levava aquela mulher a debruçar-se assim sobre o papel, com tanta urgência e tanto desvelo? Será que alguém leria, algum dia, aquelas linhas? E pensei na frase ouvida certa vez de Carlos Heitor Cony: “Eu escrevo e ninguém toma providências”.

Aquela mulher escrevia e ninguém fazia nada. O mundo passava por ela, indiferente, seguindo seu curso apressado, repleto de objetivos, enquanto ela continuava lá – escrevendo, simplesmente. Mas, afinal, por quê?

O som de uma buzina interrompeu meu devaneio. Alguém queria entrar a garagem. E ali estava eu, no meio da rua, paralisada diante de uma mulher e sua pena. Manobrando, fui embora. E ela ficou para trás. Solitária, perdida em seu mundo silencioso, com o lápis na mão, tendo apenas os cães por companhia.

Nunca mais passei por lá, mas penso nela, às vezes. E, ao relembrar seus gestos, concluo: ela continuará escrevendo, sempre. Deve ser sua sina, a expiação necessária, vício solitário que a condena e escraviza, mas que também a redime, salvando-a da morte e da loucura. Sim, ela seguirá escrevendo, podem estar certos. Porque é preciso.

Coisa de louco

(9/4/2000)

Falar sozinho era um velho hábito seu. Filho único, fora uma criança solitária e, desde pequeno, cultivara amigos imaginários. Já adulto, continuara travando longos diálogos consigo mesmo, chegando muitas vezes a empolgar-se, falando em voz alta, fazendo gestos, franzindo o cenho de indignação ou dando risadas. Considerava o chuveiro um bom lugar para conversas desse tipo. O barulho da água caindo abafava as palavras e, do lado de fora, ninguém podia ouvir o que ele estava dizendo.

Mas não havia nada melhor do que falar sozinho no carro, dirigindo. Com o automóvel fechado e o ar-refrigerado ligado, a acústica era perfeita, podia ouvir o som da própria voz com toda a clareza. Mas uma coisa o afligia: a crença generalizada (e absurda, em sua opinião) de que falar sozinho é coisa de maluco. Ficava furioso toda vez que, em meio a uma deliciosa conversa ou a uma discussão acalorada – consigo mesmo, é claro –, era atrapalhado pela chegada de um estranho (sendo estranho, no caso, qualquer pessoa que não ele próprio).

De vez em quando, entrava no banho e esquecia de trancar a porta do banheiro. Então, geralmente quando estava no meio de um gesto, tentando convencer seu interlocutor imaginário de alguma coisa importante, ouvia o som terrível da maçaneta. Era sua mulher, pedindo para dar uma entradinha. Ele disfarçava, pigarreava, esfregava a cabeça com vigor e abria mais o chuveiro, tentando deixar a intrusa na dúvida sobre se o que ouvira fora mesmo uma voz ou simplesmente o ruído da água. Em geral, a mulher entrava e saía do banheiro sem fazer perguntas. Mas aquelas interrupções o deixavam amargurado.

No carro, quando parava num sinal, era um problema: estava no meio de uma conversa solitária e, de repente, olhando para o lado, via a cara de espanto ou indignação do outro motorista. Com isso, precisava batucar no volante para disfarçar, fingindo estar cantando, o que considerava extremamente humilhante.

Até que, um dia, tudo isso mudou. Ele – assim como todas as pessoas que sempre falaram sozinhas – ganhou um álibi, uma desculpa, um poderoso aliado: o telefone celular. Todos os seus problemas foram resolvidos. Deixou de falar no chuveiro, é verdade, mas em compensação perdeu qualquer cerimônia na hora de conversar sozinho dentro do carro.

Agora, quando, no sinal, o motorista do lado o encara, fala ainda mais alto e com mais vigor, para não deixar dúvidas de que a conversa é pelo viva-voz – a coisa mais natural do mundo. E sua libertação definitiva se deu com a chegada dos celulares pequenos, que cabem no fundo da palma da mão, sem necessidade de se falar no bocal: agora, ele coloca a mão em concha junto ao ouvido e pronto, sai pelas ruas falando sozinho, feliz da vida. e quem vai poder dizer que ele é maluco?

Os ratos

(16/4/2000)

 

Estava um pouco nervosa. Aquela seria sua primeira sessão de análise. Da janela do ônibus, olhava as calçadas de Copacabana cheias de gente e lia os nomes das ruas com atenção. Tinha medo de saltar no ponto errado. O consultório do psicanalista ficava na Santa Clara, no quarteirão da praia. Ainda bem que viera mais cedo, porque o trânsito estava horrível, quase parado. E, no fim de tarde de verão, o ar opressivo e o céu cada vez mais escuro eram uma ameaça: ia cair um temporal.

Sua esperança era chegar ao consultório antes. Mas foi só esperança. Lá pela altura da Colombo, o temporal desabou. Ao foi uma chuva qualquer, foi quase um fim de mundo. Os primeiros pingos caíram com força, fazendo barulho na carroceria do ônibus. E logo a água já descia pelos vidros das janelas, numa torrente. Com tudo fechado, estes ficaram embaçados e ela, aflita, esfregava-os com a mão, tentando enxergar em que altura estava.

O ônibus seguia, encharcado e lento. Depois de um tempo imenso, ela percebeu que estava no quarteirão anterior à Santa Clara e resolveu saltar. Indo a pé, chegaria mais rápido e, estado com o guarda-chuva, não se molharia tanto assim. Mas estava ensopada quando chegou à esquina. E ali teve a pior surpresa.

A água que vinha do morro no alto da Santa Clara descia em direção à praia como um rio barrento e caudaloso, que já transbordava de seu leito de asfalto e começava a tomar a calçada de pedras portuguesas. Era impossível atravessar a rua. E, por azar, o consultório do psicanalista ficava do outro lado. Com um suspiro de desalento, ela esperou, junto com dezenas de pessoas, sob a marquise da esquina. Mas a chuva não parava e as águas continuavam a subir.

Lentamente, a calçada foi sendo tomada, a tal ponto que as pessoas debaixo da marquise – ela inclusive – subiram no degrau da entrada de uma loja, espremendo-se no estreito espaço limitado pelas portas de ferro, que tinham sido arriadas. A chuva diminuíra, mas a enxurrada que vinha do morro engrossava e, em pouco tempo, as águas barrentas já lambiam o degrau. E foi então que ela viu os ratos. Eram muitos, e grandes. Tinham saído dos bueiros e olhavam para o degrau onde estavam as pessoas. Eles também queria fugir das águas.

Houve um princípio de pânico, mulheres gritaram. E ela, assistindo a tudo, paralisada. De repente, sentiu-se tomar por um estranho fascínio. Olhou bem para aqueles ratos. Eles eram um símbolo. Eram seus medos, seus piores pesadelos, a materialização de tudo o que sairia dos subterrâneos, agora que tomara coragem e decidira fazer análise.

Precisava enfrentá-los. Chegou mais à beira do degrau e começou a bater o guarda-chuva no chão com toda a força. Bateu tanto e com tanto vigor que ficou com as mãos vermelhas. Ao parar, viu que os ratos tinham desaparecido. As pessoas olhavam para ela, admiradas. Respirou fundo, enxugando o rosto com as costas da mão. E só então olhou para a rua. Lentamente, as águas começavam a baixar.

 

 

O elevador

(13/4/2000)

 

 

Sempre adorei histórias de assombração. Não histórias óbvias de fantasmas agressivos ou mesmo de vampiros, com banho de sangue, explosões e gritaria. Mas sim aquelas de um terror sutil, abstrato, impalpável, que nos deixam na dúvida, sem saber se ali há mesmo algo sobrenatural, desconhecido, ou se tudo não passou de alucinação ou coincidência. Quando era criança, costumava sentar à noite na sala do nosso sítio, para ouvir os casos assombrados que minha avó contava. Eu adorava. E nunca tive medo. Ouvia aquelas histórias – muitas delas apresentadas como verdadeiras – com toda a atenção, mas jamais com temor e sim com excitação e delícia. Nem mesmo depois, já deitada na cama, sozinha no escuro, a memória das assombrações me voltava com sobressalto.

Mas, agora, tantos anos passados, sinto que isso está mudando. Estou começando a sentir medo. E mais: devo confessar que o temor começou justamente depois que passei a escrever minhas próprias histórias de terror.

Não sei bem como se deu essa transformação. Talvez tenha sido por causa de alguns depoimentos que li, de autores dizendo que escrever é, por si só, uma coisa meio mal assombrada e que muitas vezes aquilo que botamos no papel acontece. O escritor americano Paul Auster contou numa entrevista que passou meses escrevendo sobre muros em seu romance “A música do acaso” e que, no dia em que botou o ponto final, caiu o Muro de Berlim. “Toda vez que penso nisso, fico arrepiado” disse. A valer essa lógica, precisamos tomar cuidado. Se o que escrevemos pode acontecer, é bom não mexermos muito com o desconhecido – pois ele pode aparecer de repente, diante de nós.

Foi o que aconteceu comigo.

Passo os dias trabalhando sozinha num pequeno estúdio, que fica num prédio antigo, em Ipanema. É um prédio calmo, com pouco movimento, e muitas vezes volto para casa tarde, quando todos já estão recolhidos e os corredores, desertos. Foi o que aconteceu naquela noite. Tinha passado o dia escrevendo um conto assombrado, que se passa num elevador. Não estava nem pensando no assunto mas, ao chegar ao hall e apertar o botão para chamar o elevador, é claro que me lembrei da história. Dei uma risadinha, mas não pude evitar uma olhada em torno, escrutinando o hall, longo e silencioso. Depois, voltei os olhos para o mostrador luminoso acima da porta do elevador, para ver se ele estava vindo. Vi que estava parado no nono andar. Achei estranho que, àquela hora, o elevador não estivesse no térreo e, ao apertar novamente o botão, sentia-me inquieta. Voltei a olhar para o pequeno algarismo vermelho, aceso no mostrador: 9. E só então descobri que estava com medo.

Ainda demorei alguns segundos para entender a razão, mas, quando isso aconteceu, foi com um choque: meu prédio só tem oito andares.

Nem pensei duas vezes. Disparei pelas escadas.

 

Momento

(30/4/2000)

 

 

A menina enfiou pela cabeça o tubinho de seda azul, com flores de strass bordadas em torno do decote e, ajeitando uma última vez os cabelos, olhou-se no espelho. Parecia uma mulher. Ninguém diria que tinha só 14 anos. O penteado estava perfeito, os cabelos escovados e brilhantes, com as pontas viradas para dentro depois de muitas horas presos, enrolados em torno da cabeça. A maquiagem, também. No rosto, um pouquinho de pó apenas, além do batom, não muito vermelho. Tudo na medida certa. Deu alguns passos atrás, diante do espelho de corpo inteiro. As pernas tinham ficado mais bonitas, por causa da meia de náilon e dos sapatos de verniz preto, de saltinho. Estava pronta.

Apressou-se, apanhando a bolsa minúscula, de verniz preto e com fecho de strass, que a mãe lhe emprestara. E fechou a porta. Os primos já a esperavam na sala.

Chegaram à festa pouco depois das dez horas e o salão do apartamento já estava cheio. Era um apartamento enorme na Senador Vergueiro, num prédio recuado, com jardins na frente e até um pequeno lago. Em meio ao burburinho dos jovens, que riam em grupos – por enquanto, ninguém  dançava –, dois garçons passavam de um lado para o outro, com suas bandejas cheias de copos. A um canto do salão principal, uma escada levava ao terraço, mas ninguém parecia interessado em ir até lá.

Minutos depois de chegarem, e como fazia muito calor no salão, a menina decidiu subir e dar uma espiada. Foi sozinha, deixando os primos para trás. Bem, talvez não subisse apenas por causa do calor. Talvez houvesse outra razão.

Assim que começou a subir a escada, sentiu no rosto o vento fresco da noite. Respirou fundo, pisando os degraus devagar. Quando desembocou lá em cima, parou, por um instante.

Havia pouca luz no terraço, o que talvez explicasse por que estava tão deserto. A um canto, um casal se beijava, sentado num banco. No outro extremo, mais dois jovens conversavam, olhando a paisagem. Apesar do calor, a maioria preferia o salão, barulhento e cheio de vida. Ela, não. Sentia uma súbita necessidade de estar sozinha. Era estranho. A festa, que há dias lhe provocava ansiedade e excitação, perdera o brilho ao tornar-se realidade.

Caminhando lentamente, foi até o parapeito.

Olhou a paisagem, à sua volta. A massa escura pontilhada de luzes, o Cristo lá longe, figura solitária, quase solta no espaço. Era um pouco como ela. Solitária. Solta no espaço. Baixou os olhos, fixando-os nas copas das árvores, lá embaixo.

Mas depois de algum tempo sorriu. No fundo, gostava daqueles momentos – de estar só, no meio de muitos. Era seu segredo, que ninguém conhecia. E quando se sentia assim, era como se abraçasse o mundo. Sentir-se só dava-lhe uma sensação de poder. Era como estar em toda parte.

 

Lição de piano

(7/5/2000)

 

Todos os dias, bem cedo, ela começava. Era a hora da lição de piano. As notas pingavam, uma a uma, na mesma cadência, e assim continuavam por horas a fio, no exercício. Eram sempre as mesmas, dedilhadas pacientemente, dia após dia, semana após semana. Mesmo aos domingos, o som monótono se fazia ouvir. No silêncio da manhã, eu escutava perfeitamente da janela de meu apartamento e, se quisesse, seria capaz de reproduzir as notas, uma a uma, com um assobio, tantas vezes ouvira a seqüência.

Às vezes, manhã já alta, aquele martelar constante chegava a me exasperar e eu fechava as janelas, ligando o som para não ouvir mais. A tenacidade e a disciplina daquela moça me espantavam. Embora nada soubesse sobre a pessoa que produzia aquele som – não conseguia determinar sequer de que apartamento da vizinhança o som provinha – eu sempre pensava nela assim, como uma mocinha. Quase uma menina. Uma menina fazendo sua lição de piano.

Os anos foram passando e nada mudou. Todas as manhãs, lá estava. O som do piano, em sua monotonia. Dedos que me pareceram sempre solitários, ou até mesmo tristes, martelando as teclas inutilmente, sem a recompensa de uma melodia. Para quê? No início, esperei que as lições evoluíssem e que um dia eu ouvisse uma música inteira, tocada com beleza e força, algo que me recompensasse por tantas horas de monotonia. Mas isso nunca aconteceu.

Até que um dia uma amiga me chamou para ir a um concerto. Um concerto de piano. Fomos. Entramos no auditório enorme, de poltronas vermelhas, parecendo um daqueles cinemas de antigamente. E esperamos, em silêncio. As luzes se apagaram e a concertista entrou. Era uma senhora, já. Muito magra e elegante, imponente em seu vestido negro, os cabelos brancos presos num coque, apenas um fio de pérolas no pescoço. Não tenho muita intimidade com a música clássica, mas minha amiga me dissera que era uma  das pianistas mais respeitadas do Brasil. E ela provou por quê. Sentou-se ao piano e nos levou, a todos, em sua melodia, dedilhando-a com maestria, transformando as notas em água, perfume e sonhos.

Quando acabou o concerto, minha amiga me levou ao camarim. Fui apresentada à pianista e, encantada, ouvi-a falar sobre sua arte. E foi então, depois de alguns minutos de conversa que, por algum motivo do qual já não me lembro, ela mencionou onde morava. Não demoramos muito para descobrir a coincidência espantosa: era ela – e não uma mocinha, como eu supunha – quem fazia as lições de piano que eu vinha ouvindo há anos.

Ela, a concertista famosa, capaz de nos transportar com sua música, era a mesma pessoa que dedilhava, todas as manhãs, as notas insossas que eu ouvia em casa.

E foi assim que descobri qual a lição que aquele piano solitário ensinava. Paciência e humildade.

 

 

Zen

(14/5/2000)

 

Anoitecia. No templo budista, sempre silencioso, o cair da tarde era, mais do que qualquer outro, um momento de quietude. Do lado de fora, em torno do lago de carpas e seixos, nem o salgueiro, batido pela brisa, sussurrava. Apenas os pardais faziam a costumeira balbúrdia da hora de deitar, arrumando-se nos galhos das amendoeiras.

O homem entrou em silêncio, tirando os sapatos e sentando-se em posição de lótus sobre uma das muitas almofadas dispostas no salão. Era o primeiro. Ninguém chegara, ainda. Olhou em torno e observou as outras almofadas dispostas pelo chão em círculo, quadrados de cor fúcsia destacando-se sobre o assoalho de tacos, muito encerado e limpo. Nas janelas, a brisa balançava os conjuntos de sinos, fazendo tilintar seus pequenos cilindros de cobre. Fechou os olhos e esperou.

Não sabe ao certo, mas talvez tenha adormecido, porque foi despertado de seu torpor pela presença de um gato, que subira em seu colo. Abriu os olhos e acariciou-o, sorrindo. Conhecia muito bem aquele gato. Era um dos dois animaizinhos que viviam no templo e que estavam sempre por ali. Ele ouvira falar que eram mãe e filho. A mãe, uma gata mais volumosa, de pêlo tricolor, preto, marrom e branco, e o filho – esse que acabara de subir em seu colo –, todo cinzento.

Só então, erguendo o rosto, o homem percebeu que as pessoas já haviam chegado para a reunião. Estavam sentadas nas almofadas, formando um círculo quase completo. Cumprimentou-as com a cabeça, sorrindo, um pouco sem graça por ter cochilado.

Nesse instante, o gato desceu de seu colo. Caminhou devagar até uma moça que estava sentada na almofada mais próxima e, da mesma forma como fizera com ele, subiu no colo dela. Ficou alguns segundos e depois saiu, indo subir no colo seguinte. E assim continuou, de colo em colo. Em cada um, o gatinho pedia carinho, encostando a cabeça nas mãos das pessoas.

Todos olhavam a cena, curiosos. O mestre, que entrara pouco antes, também cumprimentara a todos em silêncio e, em vez de começar a reunião, ficara quieto, observando o gato, como todo mundo. O animal tornara-se de repente o centro das atenções.

Só depois de passar pelo colo de todos os presentes, o animal saiu da sala. Caminhou com seu passo cadenciado, indiferente aos olhares, desaparecendo pela porta principal. E só então o mestre falou, fazendo uma revelação: naquela manhã, a mãe do gatinho tinha morrido.

 

 

O sopro

(21/5/2000)

 

No início, ela pensou que fosse um defeito na geladeira. Tinha acordado no meio da noite, contrariada. Estava sofrendo do que alguns médicos chamam “insônia terminal”, significando mais ou menos o seguinte: deitava-se e adormecia imediatamente, sem problemas. Mas, algumas horas depois, em plena madrugada, acordava. Seu despertar era algo repentino e inexplicável. Num segundo, encontrava-se sentada na cama, de olhos abertos no escuro, sem que houvesse qualquer razão para aquilo. Nem pesadelos, nem ruídos externos, nada. E o pior: assim que se via desperta, era imediatamente tomada por uma sensação desagradável, difícil de definir, mas que beirava o medo.

Naquela noite, acontecera a mesma coisa. Aliás, eram raras agora as madrugadas em que o despertar repentino não lhe acontecia. Acendera a luz, tentando afastar a sensação ruim. Chegara a ficar algum tempo deitada, com o abajur aceso, para ver se o sono voltava. Tinha até pensado em ler um pouco, mas desistira. Depois de algum tempo, vendo que o sono não voltava mesmo, resolvera ir até a cozinha tomar um copo de leite quente.

E fora nessa hora, ao passar diante da geladeira, que sentira o frio estranho pela primeira vez.

Como um sopro – um sopro gelado.

A porta da geladeira estava bem fechada. Seria possível que o ar frio estivesse atravessando a porta, por causa de algum defeito no revestimento? Examinou a geladeira, viu que estava perfeitamente vedada. Passou a mão nas laterais de aço, sentindo o frio seco do metal. Não havia nada de anormal ali. Deu de ombros e, abrindo a geladeira, pegou o leite. Esquentou-o numa panelinha e despejou-o numa caneca de louça. Depois, encostou-se à pia e bebeu o líquido quente, com o olhar fixo nos azulejos brancos à sua frente. E, quando terminou, decidiu se deitar.

Já estava junto à porta da cozinha, com a mão sobre o interruptor, quando sentiu novamente o sopro estranho. Dessa vez, um frio ainda mais condensado, cortante, que se despejou sobre sua nuca, suas costas. E agora sequer estava perto da geladeira.

Parou, os dedos congelados sobre o interruptor. Arregalou os olhos e só então se deu conta de que estava no escuro. A sensação de frio chegara a ela tarde demais, quando a mão já recebera a primeira mensagem, que lhe mandava apagar a luz. Agora era tarde. Estava no escuro. Sozinha no escuro com aquele sopro sobrenatural. E só então compreendeu. As sensações estranhas, os sustos, o acordar no meio da noite, tudo estava ligado àquilo que a ela se revelaria agora, àquele ar gelado que continuava soprando, inexplicável, às suas costas. Ela teria a resposta. Assim que tomasse coragem e se virasse para, no negror da cozinha, encarar o desconhecido.

 

 

O apartamento

(28/5/2000)

A mulher cruzou a soleira da porta e pisou o chão de cerâmica pintada, caminhando com a circunspecção de quem entra num templo. O homem entrou atrás. O vestíbulo, de paredes forradas de madeira, tinha iluminação embutida, filtrada através de placas de acrílico branco, leitoso. Os desenhos delicados e multicoloridos da cerâmica, lembrando um mosaico, prenderam sua atenção por um segundo. Depois, erguendo a cabeça, ela vislumbrou a sala, à direita. Uma sala espaçosa, toda forrada de tapete branco, felpudo, com sofás e pufes rodeando uma grande mesa de centro, com tampo de laca escura. Na sala contígua, um aparador tomava a parede inteira, por trás da mesa de jantar, também de laca negra. E, separado das duas salas por amplas portas de vidro, ficava o  terraço.

Atravessou o salão e se dirigiu para lá, os olhos fixos no horizonte. Por trás da amurada, para além das copas das árvores, os telhados e paredes cor de terracota se espalhavam até desaparecer na névoa do horizonte. O ar frio chicoteou seu rosto, mas ela foi em frente. Precisava respirar. Ainda que por um instante, apenas.

Estremeceu. Sentia-se enregelada por dentro. Pisara aquele lugar como se caminhasse sobre um lago congelado, temendo que a crosta fina a qualquer instante se rompesse, a água mortalmente fria tragando-a para sempre. Cada passo era eterno e definitivo, carregado de informações preciosas, que lhe diriam tudo, tudo o que queria – ou não – saber.

Naquele apartamento – que ele alugara mobiliado, para lhe fazer uma surpresa –, naqueles poucos metros entre a porta da rua e o terraço, ela sabia, estariam inscritos, de forma instantânea, seu futuro, sua vida. Bastaria olhar em volta com atenção e tudo lhe seria mostrado de forma clara, irretocável. Não haveria fuga possível. E tampouco adiantava ter medo.

Sentiu a mão do homem enlaçando-a pela cintura. Virou-se, observando a sala que acabara de atravessar. E tremeu, ainda mais. Aquele toque não a aqueceu. Nada seria capaz de fazê-lo,  agora. Porque a verdade acabara de trespassá-la, sem disfarces.

Já não tinha dúvidas.

Olhando para aquelas paredes, para todos os cantos, espaços, quinas, vãos que seus olhos tinham percorrido num segundo, percebera que tudo estava dito, pronto, terminado. E  viu que o apuro, a beleza e a sofisticação daquele lugar não significavam nada.

Tinha agora a certeza que queria evitar, mas que já pressentira, que vinha crescendo dentro dela nos últimos meses. Seu amor estava acabado. E aquele não era o seu lugar.

 

 

O mal das montanhas

(4/6/2000)

 

Na encosta, recoberta por uma neve rala de verão, lá estava. Deitado de bruços, as costas, já despidas da roupa – que o tempo ou os animais tinham arrancado –, brilhando ao sol com um estranho viço. Parei olhando a fotografia, fascinada, embora sem entender ao certo o que havia ali que me atraísse com tal força.

Era a foto de um alpinista, morto há muitas décadas enquanto tentava subir o Monte Everest. Por causa de um verão especialmente forte, com temperaturas subindo mais do que de costume, seu corpo – que há tantos anos a montanha vinha escondendo – tinha afinal sido encontrado. Sabia-se que ele morrera ao tentar chegar ao cume, numa época em que ainda não havia roupas especiais nem comunicações que tornassem minimamente segura a empreitada. Mas onde, não se sabia ao certo. Agora, seu corpo, congelado em perfeitas condições, seria estudado.

Olhei ainda mais atentamente para a fotografia. A pele muito branca, intacta. Quase como se ele dormisse – embora eu conhecesse bem a história de seu sono eterno, gelado. Não podia ver-lhe o rosto, pois caíra de bruços. Os braços ainda estavam vestidos pelo que lhe restara das roupas. Mas aquelas costas nuas me comoviam para além do que seria natural. Não conseguia passar a página da revista. E sabia que o que sentia não era apenas curiosidade mórbida – era algo mais.

Olhei e olhei a foto, até que de repente me veio à mente a lembrança de uma frase, dita pelo explorador inglês George Mallory, ao ser perguntado por que razão queria escalar o Everest. Ele (que também acabaria morrendo na escalada do monte) respondera, simplesmente: “Porque está lá”. E, ante a lembrança dessa frase, senti subir de dentro de mim uma sensação cujos rumores reconheci de imediato. Uma sensação de encontro, de identificação.

É isso. Eu me sinto irmanada a esses exploradores que dedicam a vida às mais loucas expedições, lançando-se montanha acima com seus corpos castigados, enfrentando o frio mais agudo, o vento mais cortante, o ar rarefeito. Semanas, meses, anos de planejamento e dedicação, de tortura e terror, encarando o medo e a morte, apenas para alcançar o topo – um momento efêmero, que mal pode ser desfrutado, tamanho o cansaço, tamanha a adversidade das condições em que chegam lá em cima. E tudo, para quê? Por quê?

Porque a montanha está lá.

E é aí, nessa resposta, que eu me encaixo. É ela que me faz irmã desses homens. Nós, escritores, somos como eles. Deixando correr sobre o papel o sangue que se transformará em poemas, contos, livros, para quê? Por quê? Não sabemos. Nunca saberemos. Escrever é igualmente vão, igualmente louco – como essa febre que assola os exploradores,  o  mal das montanhas.

 

 

O mal, de novo

(9/7/2000)

 

Há não muito tempo, eu falava aqui do mal das montanhas, essa estranha doença que enlouquece alguns homens. Acometidos dela, eles se metem nas mais alucinadas aventuras, enfrentando todo tipo de obstáculo, afrontando o frio e o cansaço, apenas para chegar ao topo de uma montanha – sem que ao menos saibam explicar por que o fazem. Cheguei a citar a famosa frase do explorador inglês George Mallory que, perguntado por que escalaria o Monte Everest, respondeu com candura: “Porque está lá”. Essa frase, que resume tudo, mostra que o tal fascínio exercido sobre algumas pessoas é de fato uma febre. A montanha as chama e elas precisam ir.

Pois eu estava outro dia assistindo a um noticiário de televisão, quando me deparei com uma história ainda mais extraordinária. O caso de um rapaz, americano se não me engano (pois quando liguei a TV a matéria já estava no ar), que tinha perdido os dois pés e as duas mãos numa fracassada escalada no Himalaia. Uma tragédia inominável que, como qualquer tragédia, é capaz de nos prender a atenção de forma quase doentia. O rapaz era jovem, forte, cheio de energia vital e contava sua aventura sem vacilar, olhando firme para a câmera, não parecendo muito abalado com seu horrível destino. Acostumado desde muito jovem a escalar montanhas, já era um alpinista experiente quando decidira subir o Himalaia. Partira para a expedição junto com outros alpinistas, mas o grupo fora apanhado por uma tempestade de neve. Perdido dos companheiros, ele fora resgatado quando já era dado como morto, mas seus pés e mãos tinham sido congelados a tal ponto que, sem circulação, haviam necrosado, só restando aos médicos amputá-los. E o mais espantoso de toda a história ainda estava por vir: passados alguns anos, o rapaz, já usando próteses especiais no lugar dos pés e das mãos, reaprendera a se movimentar normalmente e – pasmem! – voltara a escalar montanhas.

A câmera o focalizava com suas roupas de alpinista, apoiando-se no bastão usado em escaladas, sobre o fundo nevado de uma montanha, enquanto ele sorria, dizendo que, por enquanto, ainda estava escalando picos mais baixos, mas que nada o deteria: tentaria voltar ao Himalaia. Um caso impressionante de força de vontade, sem dúvida, mas, mais do que isso, uma prova de que não tem cura esse mal das montanhas.

Eles sempre voltam. Porque elas estão lá.

Quando, há poucas semanas, eu comentei meu fascínio por esses exploradores, disse que me sinto irmanada a eles, pois nós, escritores, sofremos de um mal semelhante. Escrevemos e escrevemos, movidos por uma compulsão desconhecida, sem saber por que o fazemos – apenas porque é preciso.

E agora, após uma breve ausência, aqui estou. De volta, escrevendo. Por quê? Apenas porque o papel em branco – como um pico misterioso e nevado – continua lá, me chamando. Ele é minha montanha.

 

 

Luas, estrelas e fantasmas

(16/7/2000)

 

A mulher olhou para o alto e observou as estrelas, pensativa. Tinha acordado de madrugada, como lhe acontecia às vezes, sem qualquer razão. Desaparecido o sono, decidira levantar-se e caminhar um pouco pela casa. Gostava de andejar pelos aposentos à noite, com as luzes apagadas, vendo o perfil dos objetos rotineiros ganhar, com a penumbra, uma nova aura, um tanto misteriosa, talvez até assustadora. Fora assim, passeando pela casa meio sem rumo, que fora acabar na janela, olhando estrelas.

E agora ali estava, com os olhos fixos no céu. Não era como numa fazenda, muito ao contrário. Era um céu urbano, onde os astros cintilavam sobre um fundo enevoado e sujo, em disputa com a claridade que emanava dos luminosos de rua. Eram estrelas tímidas, quase acuadas. Mas isso não importava. Ainda assim, eram estrelas.

E havia ali, entre aquelas estrelas quase apagadas, uma que era feita só de diamante. Não tinha um nome glamuroso. Chamava-se BPM37093. Por uma razão qualquer, a mulher jamais esquecera a combinação de letras e números usada para identificar a estrela. Era pequena, do tamanho da Terra, mas quase toda feita de cristal de carbono – o que a tornava um diamante. Um diamante do tamanho da Terra, flutuando no espaço.

E a mulher suspirou, pensando em como esse assunto a fascinava. Lia quase tudo que lhe caía nas mãos sobre astros e estrelas. Lera recentemente um livro cheio de informações e curiosidades. Falava, por exemplo, de uma das luas de Saturno, Japetus, dizendo que é um corpo celeste único. Em sua órbita em torno de Saturno, Japetus cintila de forma desigual, sendo seis vezes mais brilhante quando está de um dos lados do planeta. Essa lua misteriosa vem sendo estudada há mais de 300 anos sem que os astrônomos consigam compreender direito por que isso acontece.

O livro traçava ainda alguns paralelos interessantes. Dizia que o número de pessoas que já viveram no planeta Terra, desde o início dos tempos, é de pouco mais de cem bilhões, número que se imagina equivalente ao de estrelas existentes na Via Láctea – o que daria uma estrela para cada um de nós.

E dizia mais: dentro desse total, de mais de cem bilhões de almas, os mortos são em muito maior número do que os vivos, claro. Os mortos de todos os tempos. Assim, cada um de nós, vivos, carrega atrás de si um séquito de 30 fantasmas.

E de repente a mulher esfregou os braços, arrepiando-se. Quase podia sentir, na sala escura, atrás de si, a presença maciça e silenciosa.

Mas não teve coragem de olhar para trás.

 

 

Um dia comum

(23/7/2000)

Apesar do frio, parecia um dia comum. Uma segunda-feira como qualquer outra. Amanhecera nublado, chovendo fino, é verdade. E há algo de diabólico nas segundas-feiras de chuva. Mas, fora isso, parecia mesmo um dia qualquer. A paisagem diante de sua janela era uma só massa esbranquiçada, onde janelas turvas pareciam querer proteger as casas do frio que fazia lá fora. Os morros dormiam, ainda, como envoltos em paina e nem os pássaros matinais pareciam dispostos a cruzar o céu naquela manhã de preguiça.

Mas logo a névoa matinal se esgarçou um pouco e você se apressou, pois já se atrasara – como acontece em qualquer segunda-feira.

Quando chegou à rua, viu que o frio continuava. E apressou ainda mais o passo, fechando o casaco de náilon em torno do corpo. Enquanto você caminhava, evitando as poças d’água, ouvia o ressoar dos próprios sapatos na calçada de pedras portuguesas. É estranho o Rio com frio, pensou. É estranho ver uma cidade tão colorida e luminosa vestir-se de repente de cinza, fechar-se em casacos, em braços cruzados, em ombros encolhidos e olhares baixos. É verdade. Sempre andamos de vista baixa quando caminhamos no frio. E foi assim, olhando para o chão, que você o viu.

A princípio, pensou que fosse um monte de lixo. Era um volume irregular, coberto por papelões e por um pedaço de plástico preto, muito sujo. Estava atrás de um canteiro, junto a um muro de pedras, onde não havia marquise, nem portas. Você já ia passando pelo amontoado de sacos e talvez nem o notasse se não tivesse sido colhido por aquele olhar. Um olhar fulminante. Um olhar pedinte, brilho vivo que se cravou em você como duas brasas negras, parecendo querer saltar de dentro do corpo decrépito.

Você estancou, o coração subitamente acelerado. Olhou mais atentamente. Viu um pedaço do rosto. Entendeu que era um velho. Pensou em dizer alguma coisa, mas calou-se. E logo se refez, virando o rosto. Lembrou-se de como já era tarde e seguiu em frente, fechando ainda mais o casaco, no frio que apertava.

Voltou a ouvir o ressoar dos sapatos na calçada. Voltou a observar os próprios pés, driblando as poças. Voltou a pensar no Rio, no frio, no dia que começava.

Mas já não era a mesma pessoa.

Você mal o vira. Fora apenas um olhar, um segundo. Mas, naquele instante, estabelecera-se entre vocês um contato mudo, um mútuo entendimento. E agora você levaria consigo, colado às retinas, o olhar de súplica daquele velho mendigo – pelo resto do dia. Um dia comum.

 

 

 O boneco

(30/7/2000)

Eu caminhava pelos becos estreitos sem pensar muito bem aonde ia, querendo mesmo me sentir perdida naquele emaranhado de ruas. Havia passagens tão mínimas que o alto das casas parecia a ponto de se fechar sobre mim, lugares quase intocados pelo sol, cujas paredes transpiravam uma umidade de muitos séculos. Somente nos andares de cima, as janelas pareciam respirar um pouco mais e algumas delas ostentavam jardineiras com gerânios, mas estes nem de longe exibiam o mesmo esplendor que eu vira nos espaços abertos, nas praças ensolaradas ou à beira dos canais.

Anoitecia e, naquela região úmida, já não havia quase ninguém nas ruas. Respirei fundo, sentindo nas narinas o vento frio que começava a soprar por entre as vielas. E, apertando um pouco o passo, levantei a gola do casaco para me proteger. Baixei a vista por um instante e, ao erguer os olhos, percebi que enveredara por uma rua diferente das demais, pois seu traçado era curvo, não sendo possível enxergar aonde levava. Segui por ela, curiosa. E, vários metros adiante, desemboquei numa pequena praça.

Na verdade, era apenas um largo, um quadrado aberto entre as casas, como se ali colocado para arejá-las. Não havia plantas ou flores, apenas um chão de cimento e, no centro, um poço, com suas paredes de pedra terminando num tampo de bronze, muito antigo. Era sobre esse tampo que estava o boneco.

Vestia uma vistosa roupa de palhaço, as mãos enluvadas envolvendo uma bola de gomos coloridos. Na cabeça, levava um chapéu alto, sob o qual, em meio aos tufos de cabelos azuis, cintilava um rosto muito branco, com uma bola vermelha no nariz. Era quase de tamanho natural, o que por um segundo me fez pensar que fosse um homem de baixa estatura, um desses artistas de rua que se fingem de estátua para ganhar dinheiro. Mas não. Sua imobilidade era tamanha, tão grande a palidez de seu rosto, que não podia ser. Trazia os olhos fechados e suas pálpebras pareciam feitas de cera. Não havia carne, nem músculos, nem vincos naquela face. Nem suas mãos ou seu corpo traíam qualquer movimento, qualquer mínimo tremor. Além do mais, o que faria ali, naquele largo sombrio, abandonado de transeuntes? Não. Só podia mesmo ser um boneco.

Fiquei parada, observando-o, fascinada.

E de repente um pombo – um dos muitos pombos que habitam essa cidade – surgiu por entre os telhados, vindo pousar justamente na bola colorida que o palhaço tinha entre as mãos. Por um segundo, o pássaro ficou ali, imóvel, ele também tornado estátua, como se contaminado pela imobilidade do boneco. Mas no instante seguinte estremeceu as asas. E, em sincronia com o movimento do pássaro, os olhos do boneco se abriram, movendo-se nas órbitas. Sua boca vermelha se fendeu, pregueando os músculos que existiam sob a aparência de cera. E ele sorriu para mim.

 

O espelho e a máscara

(6/8/2000)

 

Tudo começou num lindo dia de sol, quando eu saía dos Jardins de Luxemburgo. Tinha justamente cruzado o espaço central do parque, onde na manhã ainda fria reluzia a água do lago, quando, atravessando um dos portões laterais, dei com uma rua larga, na qual nunca antes havia reparado. Por sua largura e imponência, era diferente da maioria das ruas que contornam o parque – e assim decidi descer por ela.

Escolhi por acaso o lado direito – pois ali havia mais sol – e caminhei devagar, observando os prédios enfileirados, alguns tão antigos que suas fachadas eram inclinadas para a frente. De repente, por alguma razão, parei, abrindo o livro que trazia,  com informações sobre lugares de Paris onde haviam vivido pessoas célebres. Aquela rua, com prédios tão antigos, certamente já devia ter abrigado alguém famoso. Consultando o índice, pelos nomes das ruas, vi que justamente ali, naquela avenida que eu escolhera por acaso, vivera Casanova. Pela numeração, percebi que estava a poucos metros do prédio dele. E fui até lá.

O palacete onde Casanova morara um dia fora transformado num prédio de apartamentos. Apenas uma placa oval, à direita da porta, confirmava que o famoso conquistador vivera ali. À esquerda, havia uma espécie de vitrine ou janela francesa, cujo vidro ia até o chão. E embora estivesse coberta por uma cortina fina, espiei através de uma fresta para ver o que havia lá dentro. Era uma sala vazia, um tanto sombria, com o chão de pedras muito antigas, formando um mosaico do qual faltavam várias partes, completadas com cimento. E, ao fundo, refletindo a luz filtrada pela cortina, um espelho. Um imenso espelho que tomava toda a parede, parecendo mais antigo do que tudo, a superfície já quase toda coberta por manchas douradas.

Voltei a consultar o livro. E, lendo-o, descobri espantada que aquela sala era um dos cômodos da casa que restavam intactos, sendo aquele espelho o mesmo em que Casanova costumava se mirar.

Voltei para o hotel encantada com a descoberta.

Horas depois, sozinha no quarto e já esquecida do que vira, remexia as malas em busca de alguma coisa, quando de repente meus dedos tocaram um objeto pontudo. E, num segundo, lembrei-me o que era: a máscara veneziana, que eu escondera entre as roupas para que não se quebrasse. Já nem me lembrava de tê-la comprado, tantas eram as emoções da viagem. Tirei o embrulho da mala e abri. Não era uma máscara qualquer. Era justamente a ‘baúta’, a máscara usada por Casanova em seus disfarces, a fim de facilitar suas conquistas. Entre tantas máscaras, eu escolhera aquela.

Observei-a, hipnotizada. Depois, fui até a frente do espelho e coloquei-a no rosto. Do fundo dos buracos escuros, em meio àquele rosto fantasmagórico, semelhante a uma caveira de queixo pontudo, vi então brilharem dois olhos – que não me pareceram os meus.

 

 

Pequenos heróis

(13/8/2000)

 

 

Eu subia distraída a escada rolante do metrô, quando ouvi a música. De imediato, meus ouvidos ficaram em alerta. Havia na tristeza daquela melodia qualquer coisa de especial, um toque raro. Era quase um lamento, aquele som sofrido que só os violinos são capazes de produzir – e que é como seria a dor, se a dor fosse música. Era-me estranha aquela lamentação em forma de melodia, não só por estar sendo expressada num lugar onde todos pareciam tão brutalizados em sua pressa, mas também porque naquele dia, em particular, eu me sentia alegre e leve. Mas fiquei curiosa.

Paciente, esperei que os degraus onipotentes da escada rolante me levassem para cima, no ritmo ditado por eles, mas queria chegar logo, alcançar a saída da estação e descobrir quem produzia a música tão delicada.

Assim que desemboquei na galeria onde ficava a saída, eu o avistei. Era um homem de meia idade, vestido com um terno preto já um pouco gasto, mas muito limpo, que ali estava, a cabeça debruçada sobre o instrumento, os cabelos brancos e cheios estremecendo ante a vibração da música que ele próprio produzia.

E parei para admirá-lo. Ali fiquei, por muitos minutos, sentindo o fluir daquele som tão especial, cujas notas doloridas se perdiam em meio ao alarido de passos e vozes apressadas. Ninguém parava, poucos olhavam para ele, mas o violinista continuava lá, vibrando seu arco, o cenho franzido na concentração, dando tudo de si como se tocasse para uma multidão – ou como se não tocasse para ninguém. Sim, era isso. Como se apenas ele e seu violino existissem.

Os músicos me comovem, sempre. Em qualquer show, no momento da apresentação dos músicos, sou daquelas pessoas que se demoram nos aplausos, até quase sentir doer as mãos. E aquele violinista, tão majestoso em sua solidão, me comovia talvez mais do que qualquer outro.

Foi então que me lembrei de ter lido em algum lugar que, todos os anos, a prefeitura de Nova York realiza, com dinheiro público, um show com os artistas de rua da cidade. É um show de verdade, dentro de um teatro, com cenário, iluminação e figurino. Chance rara de se apresentar num palco para aqueles anônimos que, dia após dia, ganham a vida nas esquinas, nas praças e nas estações do metrô, enfrentando o calor, a chuva e o vento – muitas vezes sem ter ninguém que lhes dê atenção. E pensei em como seria bom se  fizessem o mesmo aqui. Como seria bom se alguém desse uma chance a esses pequenos heróis, que pontuam de melodia e cor nosso cotidiano tão massacrado e tão massacrante.

 

 

O banquinho

(20/8/2000)

 

 

Tenho falado de artistas de rua, esses heróis esquecidos que exibem sua arte, seja ela qual for, não importando se estão sendo admirados ou não. E me dei conta de que nunca contei aqui uma história que me impressionou muito: a história do banquinho.

Aconteceu numa noite de festa. A sala do casarão, em Botafogo, estava cheia de gente conversando e rindo. Havia música ao fundo. De repente, as vozes começaram a baixar de tom – e também a música –, até que se fez um silêncio imenso. E todos os olhos convergiram para a porta principal. Ali, de pé, muito sério, estava um rapaz, trazendo nas mãos um objeto inusitado: um banquinho de madeira.

Sem nada dizer, ele entrou. Muito sério, cravava o olhar nas pessoas que o cercavam e que logo foram abrindo caminho para que passasse. Atrás dele, vieram outros. Todos jovens, rapazes e moças, sempre com o mesmo olhar e o mesmo silêncio. E todos, como o primeiro, trazendo nas mãos um banquinho.

Espalharam-se pela sala. No salão, os convidados aguardavam, sem saber o que pensar. Então, o que entrou primeiro colocou no chão o seu banco – subindo nele em seguida. E assim, pairando um pouco acima das pessoas que enchiam o lugar, começou a falar. Era uma fala teatral, cheia de beleza e sabedoria, uma reflexão sobre a necessidade que o ser humano tem de se expressar através da arte, seja ela feita de palavras, sons, cores ou formas. Todos ouvíamos, fascinados. Terminada sua parte, o rapaz desceu do banco, voltando a segurá-lo entre as mãos, enquanto outro, subindo no seu, retomava o texto de onde ele tinha parado. Cada um deles, rapazes e moças, sempre subindo em seus banquinhos, recitou um trecho do texto – o tempo todo falando dessa luta permanente por deixar um rastro sobre a terra, e de como ela é heróica e bela. Até que chegou a vez do último. E este, com o olhar ainda mais brilhante que os outros, demorou-se um pouco antes de começar. Encarou, uma a uma, as pessoas que estavam mais próximas. E só então falou:

– Todos nós devemos expressar a arte que carregamos em segredo. É essa nossa pequena imortalidade. Por isso, convido cada um de vocês a, pelo menos uma vez na vida, seja de que forma for, tomar coragem e subir no seu próprio banquinho.

E o salão inteiro explodiu em aplausos.

* * *

Levei algum tempo perguntando a um e a outro quem eram aquelas pessoas. Até que alguém me disse: era o grupo teatral do diretor Márcio Vianna, que organizara o texto. Nunca mais esqueci daquela cena e daquelas palavras, até que um dia, não muito tempo depois, fiquei sabendo da morte de Márcio. Era uma triste ironia que alguém que organizara uma apresentação tão bonita, sobre a efemeridade da vida e da arte, morresse assim tão jovem, pensei. Mas, logo, outro pensamento me apazigou. A morte, ali, era o que menos contava. Afinal, Márcio cumprira sua parte.

 

 

Lili

(27/8/2000)

 

Na primeira vez em que a vi, percebi de imediato que era pouco mais do que uma menina. Eu saía da casa de uma amiga na Avenida Atlântica e atravessava a calçada larga, de pedras portuguesas, com o olhar preso ao chão, apertando o casaco contra o peito para me aquecer. Era uma noite fria, de chuva fina e vento, passando um pouco da meia-noite. Andando a passos largos, preocupada, eu erguia de vez em quando o rosto para espiar se havia algum perigo. Quando cheguei a poucos metros do estacionamento, já tirando a chave da bolsa, eu a vi.

Estava encostada no capô do meu carro e, ao ver que eu me aproximava, olhou-me com ar de desafio. Mas eu sorri – e isso a desarmou. Deu-me boa noite, sorrindo também, e afastou-se alguns passos. Não foi embora. Enquanto eu abria a porta, observei sua figura esguia, toda vestida de negro, parecendo uma mulher da década de 20, os cabelos muito escuros e lisos cortados rente ao queixo, os imensos olhos amarelados, que brilhavam ante a aproximação dos faróis, como os olhos de um gato. Mas, por trás daquele jeito de mulher fatal, vi que não teria mais do que 17, 18 anos.

Alguma coisa nela me marcou. Seu sorriso triste, o olhar felino. Ou talvez tenha sido a expressão de seu rosto, um misto de desafio e tristeza, de quem muito cedo foi maltratada pelo mundo e luta para sobreviver. E, criando para ela uma história, dei-lhe secretamente o nome de Lili.

* * *

Passaram-se meses.

Numa noite de verão e lua cheia, parando o carro no mesmo lugar – para apanhar a mesma amiga, com quem iria a uma sessão de meia-noite no cinema – voltei a ver Lili.

Por um segundo, hesitei. Sabia que era ela, não só pela coincidência de lugar e hora, mas porque usava a mesma roupa negra da outra vez, o mesmo cabelo cortado curto, os olhos pintados como os de uma melindrosa. Mas estava tão mudada que precisei de um segundo olhar para me certificar de que era mesmo ela. Muito magra, o vestido lhe caía frouxo sobre as formas. Os cabelos tinham perdido o brilho e os olhos – reparei – já não faiscavam à passagem dos faróis. Estavam baços, sem vida, assim como a pele, que perdera o viço. Era quase uma velha, de repente. Ao perceber a aproximação de meu carro, ela ficara à espera. Mas, ao ver que não era ninguém que lhe interessasse, dera-me as costas. E agora se afastava, devagar, como se andasse com dificuldade.

Mantive o olhar fixo nela, até que desaparecesse de vista. Sua figura, de costas, caminhando pela Atlântica sob a luz da lua, me encheu de uma doce melancolia, como a cena final de um filme de Chaplin.

E tive certeza de que não a veria nunca mais.

 

 

 

 Presença

(3/9/2000)

 

Era a primeira vez que eu me hospedava naquele hotel, perdido numa ruazinha de Montparnasse. Não o conhecia, nem tinha dele muita informação, mas gostei de sua fachada clássica, do saguão com cadeiras de veludo escuro. E principalmente do elevador. Parecendo muito posterior ao prédio que o abrigava, o elevador tinha uma característica: sua porta se abria sozinha. Não a interna, pantográfica, que abre e fecha automaticamente em quase todos o elevadores. Mas a externa, de madeira. Assim que o elevador chegava ao andar, a porta se abria em ângulo para a pessoa entrar. E na hora de sair do elevador, a mesma coisa. Mal as grades se recolhiam e a porta externa se abria, como se mãos invisíveis a tivessem empurrado. Certamente algum mecanismo automático com ajuda de ar comprimido. Mas não importa. Aquilo me fascinou.

Assim que me instalei, saí (como devem fazer os viajantes) e só voltei horas depois – quando já era noite. No saguão escuro, virei a chave na porta e entrei no quarto. Era pequeno, de teto inclinado como uma mansarda, e aconchegante. Mas, por alguma razão, me senti estranha. Cansada, deitei-me, com um livro nas mãos, na certeza de que o sono viria logo. Mas não veio. À medida que a noite avançava, crescia a sensação indefinível, uma inquietação sem sentido, que me foi envolvendo de tal forma que acabei por pular da cama e ir até a janela, como se buscasse ali uma resposta para o estranho mal-estar. E na janela, de costas para o quarto, fui assaltada pela certeza de que havia alguém atrás de mim. Virei-me, sentindo um arrepio na nuca. E, observando o quarto vazio, suspirei, pensando em como estava sendo tola. Devia ser o cansaço da viagem.

Mas o fato é que passei quase toda a noite desperta, com a sensação nítida de que estava sendo observada. Só adormeci quando o dia clareava, o corpo moído de me revirar na cama.

Já passando do meio-dia, levantei-me e saí. E foi ao fechar a porta que me deparei com a placa na parede do saguão. Não a tinha visto na véspera. Uma placa de bronze burnido, dizendo que ali, naquele andar, vivera durante um ano, em 1923, o escritor James Joyce.

Imediatamente lembrei-me das sensações estranhas que sentira. E, enquanto ia em direção ao elevador, pensei em Joyce. Imersa em meus pensamentos, tomei um susto quando a porta do elevador se abriu sozinha na minha frente.

Mãos invisíveis. Uma presença me espreitando – foi o que me ocorreu, num segundo.

Mas no instante seguinte sorri. E, entrando no elevador, enquanto a porta de madeira se fechava por conta própria, disse em voz alta, desafiando meu próprio medo:

–        Thank you, Mr. Joyce.

 

 

Os filhos do sim

(10 /9/2000)

 

 

A mulher estava sentada lendo um livro, na sala, quando ouviu o grito da filha. Depois, um estrondo de porta batendo. Murmúrios, passos. E a mocinha apareceu na sala, com uma expressão terrível no rosto. Tinha acabado de se pesar na balança do banheiro. Engordara um quilo. Um quilo! dizia, aos gritos, a ponto de a mãe pedir que baixasse a voz, por causa dos vizinhos. E a menina saiu da sala, com o rosto amarrado. Pouco depois, entrou o filho. Suando, chegava da academia. Tinha, também, um ar atormentado. Entrou, cumprimentou a mãe e desapareceu, a caminho do chuveiro, parecendo imensamente cansado.

E a mulher ficou outra vez sozinha na sala, pensando. Fechou o livro e levantou-se, caminhando até a janela. Pensava no sofrimento dos jovens de hoje.

Filhos e filhas daqueles que fizeram a revolução da contracultura – dos hippies, loucos, guerrilheiros – esses jovens poucas vezes ouvem um não na vida. É uma geração para a qual quase nada é proibido. Os pais de agora, que foram jovens nos anos loucos, têm enorme dificuldade em impor disciplina. Deixam os filhos fazer tudo. Chegar tarde, sair durante a semana, trancar-se no quarto e dormir com a namorada ou o namorado – tudo. Talvez isso tenha criado um vazio na vida desses rapazes e moças, refletiu a mulher, olhando as luzes da rua, com seus halos incertos.

Os jovens de hoje formam uma geração que pode tudo, com acesso livre a todas as informações, que tem diante de si enorme variedade de ofertas de consumo. Biscoitos, por exemplo, pensou a mulher. No tempo dela, só havia dois ou três tipos de biscoito doce. Hoje, em qualquer lojinha de posto de gasolina, há prateleiras inteiras de biscoitos de todos os tipos, recheados ou não, com chocolate amargo ou de leite, com nozes ou passas, tudo. Biscoitos demais. Mas, para quê? Inútil paisagem. Não se pode comer. E quem proíbe? São eles mesmos, os jovens.

Eles mesmos inventaram aquilo que não se pode fazer. Precisaram criar suas próprias impossibilidades – talvez pelo excesso de vezes em que ouviram um sim dos pais. Porque o ser humano precisa do proibido. Então agora é proibido comer, é proibido não ter músculos, é proibido ser feio, é proibido envelhecer. O padrão de beleza vigente é irreal. Parece ter sido criado apenas para fazer sofrer – pois é inalcançável. Qualquer mocinha que não viva à base de alface e água – a não ser as que, por natureza, tenham a sorte de ser excessivamente magras – vai se olhar no espelho e chorar porque não tem aquele aspecto de campo de concentração que se vê nos anúncios de moda (incluindo os olhares, tão tristes).

É essa a vida dos jovens, hoje – concluiu a mulher, dando de ombros. Coitados. São os filhos do sim.

 

Fronteiras

(17/9/2000)

Tenho refletido sobre fronteiras. Sobre a linha tênue e imprecisa que divide realidade e sonho, sanidade e loucura. E me vêm à mente duas histórias.

A primeira é narrada por Otto Friedrich em seu livro “Going crazy” (Enlouquecendo). Ele diz que andava um dia pelas ruas de Nova York  a caminho do trabalho – como fazia todas as manhãs – quando de repente, diante de um cruzamento, parou, assaltado por uma sensação desconhecida. Era algo avassalador, a impressão exata de que algo se rompera, seguida de uma sensação de impotência e pânico. Ficou ali na calçada, paralisado, sem saber o que se passava. Demorou alguns segundos até compreender. Como fazia o mesmo percurso todas os dias, costumava andar totalmente desligado, imerso em seus pensamentos, no “piloto automático”. Ocorre que, naquele dia, se deparara de repente com um sinal de trânsito quebrado – um elemento estranho à sua rotina. E aquela “ruptura” provocara uma espécie de curto-circuito em seu cérebro, justamente por estar num estágio de semi-consciência, tal a sua distração. O sinal quebrado provocara uma pane em seu sistema de percepção. Fora coisa rápida, não mais do que alguns segundos. Mas o que o perturbava era perceber que, naqueles instantes, vivera numa fronteira: estivera à beira do que se convencionou chamar “loucura”.

A outra história é narrada pelo antropólogo americano Loren Eisely no livro “O despertar dos mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Eisely conta que caminhava a pé um dia por uma estradinha perto de sua casa, em meio a uma densa neblina. Ia devagar, mal conseguindo enxergar o caminho, quando de repente, a poucos palmos de seu rosto, surgiu a figura de um pássaro voando, que por pouco não se chocou com ele, em meio a um piado horrível e a um farfalhar de asas. Era um corvo. E Eisely diz que jamais, enquanto viver, se esquecerá da expressão que viu nos olhos daquele pássaro. Era terror que havia neles. O antropólogo passou o resto do dia impressionado, sem entender o que seu rosto tinha de tão terrível para provocar um olhar como aquele. Até que compreendeu: com certeza, com a neblina, o pássaro julgava estar voando alto. E de repente se vira diante do impossível – um homem no céu. Um homem que atravessara a fronteira do plausível e caminhava no ar, pelo mundo dos corvos. Aquela era uma visão aterradora.

E Eisely se diz convencido de que aquele instante transformou o corvo para sempre: “Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos.”

Assim são as fronteiras.

Alguém já disse que os escritores são personalidades fronteiriças. É verdade. Nós, assim como talvez os atores, vivemos no limite entre dois mundos, caminhando sobre o fio da lâmina, podendo resvalar a qualquer momento para um dos lados. Sofremos de uma espécie de esquizofrenia – quase sempre benigna.

 

A síndrome

(24/9/2000)

 

 

A mulher acordou cedo naquele domingo e foi preparar a mesa de café. Era um prazer que se concedia nos fins de semana. Durante o resto do tempo, acordava sempre em cima da hora de sair e comia alguma coisa em pé, na cozinha. Mas aos domingos era diferente. Mesmo morando sozinha, gostava de saborear o café com toda a calma, lendo seu jornal. Sem pressa.

Abriu a toalha quadriculada de azul e branco, esticando-a com a palma da mão, para depois arrumar a louça, os talheres, os descansadores. Fez café, despejando-o num bule, ao mesmo tempo em que esquentava o pão. Este foi posto numa cestinha trançada, que ela arrumou na mesa ao lado de uma faca serrilhada, de lâmina comprida, junto com os potes de manteiga e geléia, também estes um luxo de fim de semana. E em seguida sentou-se, satisfeita.

Estava passando manteiga num pedacinho de pão quando reparou na notícia, numa das páginas internas do jornal. Falava de uma doença misteriosa que vinha sendo estudada pelos cientistas, sem que fosse possível estabelecer suas causas exatas. Fora assunto de debate durante um congresso médico na Inglaterra. E tinha um nome curioso: Síndrome do Dr. Strangelove. O nome era uma referência ao personagem de Peter Sellers no filme “Dr. Fantástico”, aquele cujo nazismo disfarçado teimava em aparecer num movimento involuntário da mão, que se erguia fazendo a saudação a Hitler, contra a vontade dele. Segundo os médicos, os portadores da doença exibiam sintomas parecidos, já que suas mãos apresentavam movimentos súbitos, involuntários. A mulher continuou lendo a notícia, fascinada. Os cientistas achavam que aquilo era provocado por uma espécie de curto-circuito num dos lóbulos frontais do cérebro, mas admitiam que essas explicações físicas ainda eram pouco consistentes. Ainda mais porque havia uma história de doenças psiquiátricas em quase todos os pacientes. A mulher mordeu os lábios. E mexeu-se na cadeira, inquieta.

As pessoas acometidas da síndrome exibiam sintomas aterradores. Uma delas chegara ao consultório de um médico com a mão amarrada atrás do corpo, dizendo temer que aquele braço anárquico pudesse lhe fazer algum mal. Outro doente dizia que não podia comer peixe, porque a mão afetada pela síndrome de repente começava a enfiar-lhe as espinhas na boca.

Ao ler aquilo, a mulher baixou o jornal, sentindo um arrepio subir-lhe pelas costas. Ficou paralisada. Sentia uma súbita pressão na garganta, no peito. Por muito tempo, não moveu um músculo. Muito tempo.

Até que, com os olhos injetados de horror e fascínio, viu a própria mão direita encaminhar-se lentamente para a faca de pão, com sua lâmina comprida e brilhante.

 

Mensagem

(1/10/2000)

 

 

Ficou chocado quando recebeu o telefonema sobre a morte da amiga. Ele a conhecia havia muitos anos e nunca soubera que tivesse doença alguma. Era uma mulher relativamente jovem, bonita, que se cuidava. Muitas vezes caminhava com ele pela praia, sempre animada e contando casos engraçados. Tinham estado juntos poucos dias antes. Como é possível, perguntou ao amigo comum que lhe dava a notícia, ele também perplexo. Foi um mal súbito, respondeu o outro.

Mal súbito. A expressão ficou ressoando em seu ouvido. Era a junção de duas palavras fortes, incontornáveis em seu sentido, que resumiam com tirania aquela morte para ele absurda. Mal súbito. Não podia acreditar.

Passaram-se alguns minutos e ele ali, parado junto ao telefone, olhando para o aparelho como se esperasse ver brotar de seus fios a explicação que buscava. De repente, tomou um susto. Tão confuso ficara ao receber a notícia, que não havia perguntado nada sobre horário e local do enterro. Folheou com dedos úmidos o caderno de telefones, procurando o número do conhecido que acabara de ligar. E, sem querer, abriu justamente na página que trazia o telefone da amiga morta. Estremeceu, olhando aquele nome, seguido de algarismos que já não faziam sentido. Seus olhos ficaram turvos.

Mas em seguida pensou que talvez fosse melhor ligar para a casa dela. Ela morava sozinha, é verdade, mas com toda a certeza haveria alguém da família atendendo ao telefone, justamente para informar sobre o enterro. Talvez, ligando para lá, ele soubesse mais alguma coisa, algum detalhe que o ajudasse a aceitar o que acontecera.

Ligou. O telefone tocou uma, duas, três vezes e, em seguida, após um clique, ele ouviu a última coisa que esperava ouvir – a voz da amiga.

Por um instante, ficou imóvel, apertando o bocal, os dedos muito brancos, enquanto a voz suave da mulher morta falava com ele. Claro que num segundo se recuperou. Claro que percebeu logo ser apenas a voz dela gravada na secretária eletrônica – que continuara ligada.

Mas, passado o primeiro susto, redobrou a atenção. Começou não apenas a ouvir, mas também a escutar o que ela dizia. E constatou que não era uma mensagem comum, apressada, como as que são gravadas pela maioria das pessoas. A amiga deixara na secretária eletrônica um recado lírico, como um poema, que, curiosamente, até então ele nunca ouvira. No fim, ela dizia que não estava, mas que logo voltaria – e eles se reencontrariam. E era como se houvesse, por trás de suas palavras, um sorriso. Como se falasse de verdade com ele, a ele se dirigisse. E era como se dissesse que estava feliz.

Ele próprio sorria, também, ao repor o fone no gancho, os olhos ainda úmidos. Estava pacificado.

 

 

Pela janela

(8/10/2000)

 

Reparei pela primeira vez naquele apartamento quando passava de carro, enfrentando o trânsito lento do fim de tarde, na Lagoa. Pelas cortinas entreabertas, conseguia ver apenas uma parede, banhada pela luz indireta de um abajur. Mas nessa parede havia uma estante, que me chamou atenção por sua beleza e solidez: estava repleta de livros, com sua lombadas multicoloridas. Alguns eram encadernados, outros não. Muitos pareciam antigos. Mas o importante é que a estante não tinha enfeites, nem plantas, nada – apenas livros.

Imediatamente, comecei a imaginar quem seria o morador daquele apartamento. Não sei por que, mas achei que os livros pertenciam a um homem. E fui além. Pensei num historiador, um apaixonado por pesquisa, alguém de mais de 40 anos, talvez ruivo, de cabelos encaracolados, usando óculos de aro fino para leitura. Imaginei um homem sensível, mas um pouco ranzinza, sempre implicando com a empregada por tirar do lugar os papéis da escrivaninha, e logo depois dizendo alguma coisa engraçada, para que ela o perdoasse. Alguém que vivesse sozinho – e feliz.

Mas o sinal abriu lá na frente, perto da Fonte da Saudade, e eu segui, deixando para trás meu amigo imaginário.

Desde então, sempre que passava por aquela pista da Lagoa, mesmo em velocidade mais alta, eu aproveitava para espiar. Só dava certo se estivesse escuro. Esse tipo de observação precisa da noite para acontecer. Quando a luz agressiva do dia se dissolve e surgem, através das janelas, as salas e os quartos com sua luminosidade artificial – só então – é possível observar, captar fragmentos, compor histórias. E penetrar um pouco na vida das pessoas, irmanar-se a elas, vencendo o isolamento das paredes.

Mas como eu sempre passava pela Lagoa ao cair da noite, podia observar à vontade. A cortina estava sempre entreaberta, no mesmo ângulo, o abajur aceso, e para mim aquele apartamento era apenas isso: uma parede, a estante e seus livros. Jamais consegui ver o resto da sala. Nunca vi, tampouco, alguém na janela. Mas meu amigo historiador continuou existindo, por meses e meses, em minha imaginação, com uma clareza quase sobrenatural. Eu gostava dele, de sua solidão delicada, de seus fins de tarde à meia-luz, na companhia dos livros. Porque, embora eu não o visse, sabia que estava ali.

Até que outro dia, passando por lá, tive um choque. Era crepúsculo, mas ainda havia luz e eu dera uma olhada rápida, despretensiosa, sabendo que talvez não conseguisse ver nada. Mas vi. Vi, por trás das janelas abertas, uma parede nua, onde restavam apenas as cicatrizes das prateleiras, único sinal de que ali tinham estado por muitos anos. A estante já não existia. Tampouco os livros. Meu amigo se fora.

Nesse instante, uma buzina vociferou atrás de mim. O carro da frente andara e eu ali parada, atrapalhando o trânsito, sentindo-me traída, roubada – sozinha na tarde que caía.

Estranho mundo

(15/10/2000)

 

É um fim de tarde. Nem está escuro ainda, pois nestes dias de primavera já começa a anoitecer mais lentamente. Mas, como a rua por onde você caminha, de volta para casa, é muito arborizada, há, senão escuro, sombras. Sombras que as copas das árvores deitam sobre a calçada de pedras portuguesas, fazendo com que a noite chegue um pouco mais depressa. É uma rua transversal, aquela que você atravessa, e não muito movimentada. Você vai distraído, assobiando baixinho uma melodia que se funde ao ruído dos pardais, recolhendo-se nos galhos das amendoeiras. Não há ninguém à vista, nem mesmo os porteiros, alguns deles seus conhecidos, que costumam sair à calçada para ver a noite cair.

De repente, em algum nível de sua consciência, você ouve um som. Um barulho indistinto, mas que logo toma corpo – cresce. São risadas. Vêm de trás de você. E se aproximam. Tudo isso aconteceu numa fração mínima de tempo. Tempo em que você esteve, ainda, mergulhado em seus pensamentos, entretido com o próprio assobio, com a agitação dos passarinhos nas árvores. O som das risadas, vindo de trás de você, chegava a seus ouvidos, mas parecia esbarrar em seu cérebro embotado, que divagava longe dali. Até que, por fim, a idéia daquele som materializa-se dentro de sua mente e, cristalizada, vira algo real. Você pisca os olhos, inquieto, pondo-se imediatamente em alerta. Numa rua deserta, ao cair da tarde, um grupo de pivetes. Vão cercá-lo, vão pedir dinheiro e, se você não der, poderão talvez assaltá-lo. Instintivamente, você apressa o passo. E só então olha para trás.

No mesmo segundo sorri, aliviado. Eram apenas crianças brincando. Um grupo de meninos de dez ou doze anos, um deles com uma bola de futebol debaixo do braço, a caminho de um folguedo qualquer. Novamente assobiando, você segue em frente, os ombros outra vez relaxados. Vai para casa.

* * *

Chegando, você vai direto para o banho, como de costume. Mas, assim como aconteceu há pouco com aquele som de risadas, há qualquer coisa lhe roçando a consciência de leve, batendo muito devagar, mas batendo. E de repente as coisas se clareiam. No momento em que se olha no espelho – vendo o próprio rosto através da névoa morna que sai do chuveiro quente – você sente vergonha. Sim, vergonha. O sentimento lhe surge puro, sem meios tons, embora você demore algum tempo até entender por quê. Mas afinal percebe. É vergonha por pertencer a um mundo assim estranho, de valores tão tremendamente distorcidos, onde os adultos aprenderam a ter medo das crianças. Porque se, ao ouvir às nossas costas um alarido infantil, o que sentimos é medo – isso é sinal de que alguma coisa está profundamente errada com todos nós.

Presente

(22/10/2000)

 

Minha avó fez aniversário outro dia – 97 anos. Está lúcida, ainda, mas um pouco desanimada, com um olhar meio perdido, um ar de cansaço. Sempre sentada em sua cadeira, as mãos repousando sobre o colo, não parece fixar-se em nada. Olha para a televisão sem muito interesse, ouve nossa conversa e dá um sorriso mínimo, como se o fizesse apenas por delicadeza. Sempre que vou visitá-la, tento puxar conversa, mas ela responde apenas com monossílabos. É frustrante. No dia de seu aniversário não foi muito diferente. Estava toda arrumada, os cabelos muito alvos e finos presos atrás, num coque, mas seu olhar guardava o mesmo embotamento que já me acostumei a ver, um olhar sem brilho, quase sem vida.

Ao vê-la, pensei instantaneamente na avó de meu tempo de menina, quando ela era ainda uma senhora corpulenta, os cabelos começando a embranquecer. Naquela época, ela adorava contar histórias – histórias assombradas. As noites no sítio, principalmente as noites de chuva – e chovia muito à noite, porque era sempre verão na minha infância –  eram passadas assim: nós, as crianças, sentadas em torno dela, no sofá que ficava perto da janela, e ela contando, contando. Tinha um jeito especial para prender nossa atenção.

E agora, décadas depois, ela estava ali, tão quieta, me olhando com seu quase sorriso. Eu mexia as mãos, na cadeira a seu lado, sorrindo de volta para ela, mas sem saber o que dizer ou fazer. Até que de repente me veio uma idéia.

Decidir fazer o que ela fazia quando eu era criança. Decidi contar-lhe uma história. Talvez assim conseguisse prender-lhe a atenção. E não seria uma história qualquer. Seria o tipo de história de que ela mais gostava e que é também meu tipo predileto: uma história de assombração.

Comecei. Escolhi justamente uma história que ela adorava me contar quando eu era criança e da qual, com certeza, já não se lembrava. Era um caso que me assustava especialmente, porque minha avó garantia ter acontecido de verdade. Continuei. Fui contando aos poucos, criando um clima de suspense, dando detalhes, fazendo ruídos. E, de repente, bem diante de meus olhos, a transformação aconteceu. Os olhos, aqueles olhos antes tão turvos, estavam agora muito abertos, brilhantes e atentos, as pequenas íris negras fazendo movimentos quase imperceptíveis, como se acompanhassem a trajetória das palavras no ar. A boca, antes entreaberta no sorriso vazio, estava agora crispada, em atenção. Ela não perdia nada do que eu dizia. Pela primeira vez, em muitos anos, seu rosto, ainda que descarnado, reassumia a expressão que eu conhecera tão bem, em outros tempos.

Eu conseguira. Quarenta anos depois, dera de volta para ela toda a emoção com que ela permeava as noites de chuva da minha infância. Era – para nós duas – o melhor presente de aniversário.

 

A história

(29/10/2000)

 

 

Era um casal jovem, ainda, nessa época. Não tinham filhos. Ele, médico do Exército, fora transferido para aquela pequena cidade da fronteira, onde deveria servir por alguns anos. Ela o acompanhara. Alugaram uma casa boa, de dois andares, com tábuas corridas no chão e forro no teto, providenciais para enfrentar o rigoroso inverno do Sul. Estranharam que o aluguel fosse tão barato, mas não deram ouvidos para os rumores de que a casa estava fechada havia vários anos.

Logo na primeira noite, estavam no quarto, preparando-se para dormir, quando ouviram um ruído estranho no andar de baixo. Da primeira vez, apenas o homem ouviu. Ou pelo menos foi ele que ergueu o rosto. E logo o ruído se repetiu. Agora a mulher também ficou atenta. Mas não encarou o marido. Apenas permaneceu alerta, as mãos que dobravam roupas brancas subitamente paradas no ar. O ruído aconteceu pela terceira vez. Só então se entreolharam. Sem nem perceber o que fazia, a mulher deu alguns passos em direção ao marido, que se voltava para a porta. Passaram-se muitos segundos, a casa muda.

O homem voltou a virar-se para a mulher e já abria a boca para dizer alguma coisa quando o ruído aconteceu pela quarta vez, agora mais forte. Com dois ou três passos, a mulher estava abraçada ao marido, como a querer retê-lo, evitar que fosse lá embaixo ver o que era. Mas ele parecia tão paralisado quanto ela. Já não fazia menção de mover-se em direção à porta. Aquele som os congelara, aos dois, em seus lugares, porque havia nele qualquer coisa de incomum – de sobrenatural. Mas foi só quando ele ressoou mais uma vez que o casal percebeu, com absoluta clareza, que se tratava de uma chicotada.

O som fino de um açoite, seu assobio cortando o ar quase como um grito, seguindo-se o estalo estridente no chão de madeira. E agora outra vez, e mais uma. As chicotadas repetiam-se num ritmo cada vez mais rápido e se antes pareciam ressoar na sala, lá embaixo, agora explodiam na escada, chegando cada vez mais perto.

Marido e mulher abraçaram-se com toda a força, de olhos fechados, ambos. E foi assim, cingindo-se com braços trêmulos, que ouviram o chicote ir subindo as escadas – até retinir dentro do quarto. Continuaram imóveis. Abraçados, os rostos enterrados um no outro, rezando baixinho. Enquanto isso, as chibatadas estalavam sem piedade à sua volta, formando em torno deles um círculo de pavor.

Foi só muito depois – eles não saberiam dizer quanto tempo – que o som cessou e a casa voltou a respirar em silêncio. Quando a mulher ergueu afinal o rosto do peito do marido, foi para dizer, num murmúrio quase inaudível:

– É preciso mandar rezar.

 

Obs: Para quem leu meu conto anterior, essa é a história que minha avó me contava quando eu era criança e que outro dia narrei para ela, numa inversão de papéis. Ela  sempre me garantiu que aconteceu de verdade,  com seus sogros. Será? Não sei. O que importa é que essa história fez renascer o brilho nos olhos de minha avó.

 

Esperança

(5/11/2000)

 

 

Foi um momento, apenas. Mas a cena ficou registrada em minha mente com extrema nitidez. Passava um pouco das cinco da tarde – das quatro, na verdade, já que estamos em horário de verão – e eu, sozinha em meu carro, acabara de parar no sinal de uma rua do Leblon. Era uma daquelas transversais sobre as quais as amendoeiras se debruçam, as copas das árvores plantadas de um e de outro lado da rua entrançando-se no alto, confundindo-se, transformando-se numa só cobertura, túnel verde e filigranado que recebe e filtra a claridade do céu.

Fazia um desses dias perfeitos de primavera, de muito sol e vento fresco, quando o Rio é banhado por uma luz excepcional, uma luminosidade branca, quase leitosa, que se despeja sobre a paisagem transformando-a num cartão postal antigo e que talvez por isso tenha sido descrita por Tom Jobim como a “luz de 1910”. Tudo, a areia da praia, as árvores, o mar, as pessoas – tudo – parece flutuar numa nova dimensão, fixados por essa luz com cor de passado. E era essa a paisagem que eu tinha diante de mim, para além do vidro do carro – como um fotografia.

O ar refrigerado enchia o interior do automóvel de uma atmosfera fria e fina, delicada também. E, no rádio, ligado baixinho, um piano dedilhava com doçura uma melodia que eu depois ficaria sabendo ser “Sonhos de amor”, de Liszt. Aquele momento se imprimiu em mim com a clareza da luz que se descortinava à minha frente. Meus sentidos captaram em sintonia fina os sons, o ar frio, a paisagem banhada pelo sol oblíquo do fim de tarde. E eu pensei em como o mundo pode ser belo, às vezes, e em como eu gostaria de espalhar sobre ele a delicadeza daquele instante, de contaminá-lo, de neutralizar-lhe os horrores com o bálsamo daquela luz.

Mas, como disse no início, tudo durou um momento, apenas. No instante seguinte, pensei com tristeza em como minhas sensações eram apenas o resultado de um isolamento. Trancada no carro, encerrada em minha bolha de silêncio, respirando toda aquela paz, quietude e beleza, eu apenas fechava os olhos para a vida lá fora, que ricocheteava nas paredes e nos muros suas balas, seus gritos, seu ódio.

Enquanto pensava nisso, minha mão esquerda se dirigiu quase instintivamente para o botão do vidro elétrico. Eu queria deixar entrar o mundo real. E logo, junto com o chiado do vidro baixando, o burburinho do fim de tarde penetrou no carro e se espalhou num segundo, como estilhaços. Mas, no mesmo instante, a poucos centímetros de meu rosto, surgiu junto à janela uma borboleta amarela, trazendo um toque de surpresa em seu voejar incerto. E eu pensei, com um sorriso triste, que o mundo talvez ainda tome jeito, um dia. Às vezes, a esperança é amarela.

 

A linha azul

(12/11/2000)

 

 

Fui ao Paço Imperial ver as Imagens do Inconsciente e reencontrei um pedaço da minha infância. Foi uma sensação estranha, inesperada. Claro que, se você se dispõe a ver uma exposição de arte feita por pessoas supostamente loucas, já deve estar preparado para se deparar com a estranheza. Mas o que eu não esperava era aquela súbita viagem ao passado. Vou contar tudo, do princípio.

O primeiro impacto já foi impressionante. O rapaz da bilheteria me indicou a sala por onde começar e, como era um fim de tarde e já não havia quase visitantes, eu me vi de repente sozinha numa sala escura – muito escura –, caminhando sobre um chão instável e macio, feito de alguma coisa que me pareceu terra fofa ou pó de serragem. Foi como penetrar num mundo paralelo ao real. E havia um personagem, nesse mundo novo. Era a Dra. Nise da Silveira. Diante de mim, numa tela enorme, a imagem dela me dizia coisas, com seu jeito ao mesmo tempo suave e enfático, sobre seu trabalho com os doentes mentais. Ouvi tudo com interesse e atenção e depois saí da sala escura, subindo a escadaria antiga do Paço em direção à sala seguinte.

Era a sala com as obras de Arthur Bispo do Rosário. No centro dela, como se solto no ar, estava seu manto, cheio de bordados, cordões, borlas e escritos. E, logo atrás, seus navios, feitos de madeira e plástico, de pedaços de tecidos, bordados com a mesma linha do manto. Foi essa linha que me chamou a atenção. Segui pelas salas silenciosas, observando todos aqueles objetos retirados do lixo do cotidiano e ordenados por Bispo, por ele bordados e rebordados – sempre com a mesma linha azul. Não era um azul qualquer. Era um azul desbotado, lavado, quase cinza, que me lembrava alguma coisa distante, perdida no passado, embora eu não soubesse precisar o quê.

De repente, me lembrei. Aquele azul era a cor do uniforme dos internos da Colônia Juliano Moreira. Claro. Eu já havia lido que Arthur Bispo do Rosário desfiava o próprio uniforme para, assim, obter a linha para seus bordados. E ali estava a resposta: o azul daquela linha era o vínculo com meu passado. Quando eu era pequena, passava as férias no sítio do meu avô, na Taquara, a pouca distância da Colônia. E via, pelas ruas, os internos mais mansos, que tinham permissão para sair. Um deles trabalhava no sítio ao lado do meu. Muitas vezes fiquei debruçada no muro, observando-o, fascinada. Ele carregava água, o dia inteiro, para cima e para baixo, em dois latões presos nas pontas de um bambu que colocava sobre os ombros. Lembro de sua silhueta encurvada, de seu uniforme azul, de seu olhar. Menina, eu tentava entender o que havia nele de diferente. Daí o meu fascínio. A mim, me parecia apenas um velho triste. E, até hoje, não consigo compreender bem o que nos separa dessas pessoas, nem determinar onde, afinal, está a fronteira – essa linha azul, tão tênue – que separa sanidade e loucura.

Na penumbra

(19/11/2000)

 

Queria falar um pouco mais sobre a exposição das Imagens do Inconsciente, no Paço Imperial. Na semana passada, disse da minha perplexidade ao descobrir, na linha azul dos bordados do Bispo, lembranças da minha infância em Jacarepaguá, onde convivia com os internos da Colônia Juliano Moreira, muitos dos quais andavam soltos pelas ruas. Mas houve ainda outra parte da exposição que me impressionou muito.

Foi com curiosidade que entrei numa das muitas salas do segundo andar, entre outras razões por causa de sua iluminação peculiar. As paredes eram escuras e a luz muito tênue, direcionada, apenas alguns focos concentrados sobre os quadros, dando ao visitante a impressão de mergulhar num mundo de penumbra. Nessa sala, contígua àquela onde estão as obras do famoso Fernando Diniz, notei de imediato que os quadros tinham um elemento comum, chamando a atenção: rostos. Perplexos, com expressões tocantes, havia, em quase todos os quadros daquela sala, rostos. Rostos que me olhavam do fundo das pinturas iluminadas, quase como se fizessem um pedido mudo de socorro.

De imediato, eles me impressionaram. Passei por eles, um por um, sentindo cravados em mim aqueles olhares pedintes, repletos de uma angústia indefinida. Repito: parecia que eles me pediam socorro.

Como a sala era um pouco escura e eu não vira na entrada nenhuma indicação sobre a autoria daqueles quadros, julguei que também fossem de Fernando Diniz, só que talvez pertencentes a uma outra fase do pintor, já que eram em tudo diversos das obras da sala anterior. Mas achei-os, aqueles quadros da sala imersa em penumbra, mais impressionantes que todos os outros.

Só quando cheguei ao fim da sala foi que dei com o painel na parede explicando a autoria deles. Não eram de Fernando Diniz. Eram de uma mulher. Uma mulher de São Paulo, chamada Aurora Cursina dos Santos, de quem eu jamais ouvira falar. Sempre me interessei pelo trabalho da Dra. Nise da Silveira e pelas obras de arte produzidas por pessoas como Arthur Bispo do Rosário, Fernando Diniz ou Emygdio de Barros. Mas aquele nome, Aurora, era novo para mim. Aproximei-me mais, para ler o painel, banhado por um foco de luz. E li. Internada ainda jovem com problemas mentais, Aurora demonstrara, desde o início, uma incrível aptidão para as artes plásticas. Chegou a fazer cursos de pintura, sendo logo reconhecida por seu talento. Mas tudo isso aconteceu nos anos 50 e naquela época havia um preconceito ainda maior a respeito das doenças mentais, até hoje tão estigmatizadas. E o resultado foi que, apesar de seu reconhecido talento, em 1959 Aurora foi submetida a uma lobotomia, a incisão no cérebro que torna a pessoa quase um vegetal. Senti um arrepio ao ler aquilo. E não pude evitar olhar para trás. Do fundo de um dos quadros, um par de olhos me encarou, ainda uma vez. E eu vi que não me enganara. Aqueles olhos pediam socorro.

 

O sonho

(26/11/2000)

 

Foi um daqueles sonhos que a princípio não se fazem recordar com clareza. Assim que acordou, ainda deitada, a mulher sentiu-se tomada pela sensação do sonho – mas não por suas imagens. Era uma doce inquietação, um rubor, qualquer coisa que lhe pareceu perturbadora, instigante. Uma sensação forte, muito forte. Mas não conseguia recordar os fatos. Logo sentou-se na beirada da cama e, dando de ombros, levantou-se, disposta a não pensar mais naquilo.

Mas, enquanto escovava os dentes, tomava banho, bebia seu café preto com torrada, a sensação a acompanhou. Não como algo contínuo, mas em breves lufadas, sopros que a tomavam de repente, inesperadamente, num misto de prazer e susto. Nessas ocasiões, parava o que estivesse fazendo e se concentrava, o rosto franzido, as mãos crispadas, todo seu corpo em alerta, esperando a chegada da imagem que afinal revelaria o sonho. Mas a imagem não vinha. Apenas a sensação, sempre. A cada vez que isso acontecia, pensava que era tolice estar tentando recordar um sonho sem importância (pois se tivesse importância, ela se lembraria). Mas, ao longo do dia, a sensação continuou, envolvendo-a de quando em quando num doce sobressalto, que qualquer estímulo externo era capaz de despertar, sem que ela conseguisse determinar por quê.

E era algo crescente. No fim da manhã, percebeu que a sensação deixada pelo sonho dera nova dimensão a seu dia, preenchido por uma força desconhecida, uma euforia que a fazia sentir-se viva como há muito tempo não acontecia. Na hora do almoço, estava alegre, leve. Saiu do trabalho a pé e decidiu dar um pulo na livraria que ficava ali perto. Estava diante de uma estante, estendendo a mão para apanhar um livro sobre arquitetura gótica, quando, por fim, recordou o sonho num átimo, com toda a clareza. Sonhara que estava de pé, diante de alguma coisa que lhe prendia a atenção – como agora –, mas não uma estante de livros e sim uma estátua de mármore, a figura de uma mulher nua, de cabelos esvoaçantes, sendo enlaçada por um homem. Talvez Apolo e Dafne, de Bernini. Estava parada, fascinada pela leveza daquelas figuras de pedra, quando alguém chegava por trás. Era um homem, um desconhecido – ela sabia. Mas não tinha medo ou surpresa, nem mesmo ao perceber que ele se aproximava muito, quase tocando-a, e sussurrava algo em seu ouvido. Não conseguia discernir as palavras, mas a doçura daquele sussurro fazia seu sangue ferver. E, de olhos fechados, sentia os lábios dele pousarem de leve em seu pescoço.

A sensação daquele beijo – suave, reverencial, apaixonado, mas ao mesmo tempo absurdo e proscrito, por vir de um estranho – era a força motriz que transformara seu dia. Suspirou, retirando o livro da estante. E já ia começar a folheá-lo, quando percebeu a sombra, aproximando-se por trás. Imobilizou a mão sobre a página, o coração em sobressalto, enquanto a sombra aproximava-se mais e mais, já quase a ponto de tocar-lhe a pele. E sorrindo ela fechou os olhos, à espera do beijo.

 

O perfume

(3/12/2000)

 

Não era uma manhã alegre. Eu acordara um pouco acabrunhada e, antes de sair, olhara pela janela, a estreita janela do meu quarto, de onde vejo apenas telhados, paredes e uma nesga de céu, acima da confusão de fios e antenas. No prédio bem em frente ao meu, o revestimento vibrava de luz, mas os vidros refletiam um céu esbranquiçado, triste. Olhei para cima e vi que uma névoa engolira o azul, deixando o mundo monocromático. Eu já estava atrasada para o trabalho e, como era dia de feira e não haveria onde estacionar, teria de ir a pé. Portanto, não podia perder mais tempo. Foi assim, portanto, sem muita cor nos olhos ou na alma, que saí de casa naquela manhã.

Com passos apressados, apanhei a correspondência no escaninho do correio, junto com a revista americana que recebo toda semana. Depois de guardar as cartas na bolsa, dobrei a revista em dois, ao comprido, e com ela debaixo do braço atravessei a porta de vidro. Assim que cheguei do lado de fora, senti o perfume.

Inspirei fundo. Parecia jasmim. Engraçado. Não sabia que havia pés de jasmim por ali. E pensava que os jasmins cheiram mais à noite. Inspirei de novo, mas no segundo seguinte lembrei que estava atrasada e apertei o passo. O cheiro, porém, continuou. Sim, jasmim. Só que um pouco mais doce, mais forte, talvez jasmim-do-cabo, daqueles grandes, que minha avó plantava no sítio, debaixo de sua janela. Nunca soube de nenhum pé de jasmim naquela rua.

Segui em frente, dando de ombros. Dobrei a esquina. Já começava a pensar no trabalho que tinha para entregar quando o cheiro me envolveu outra vez. Cheguei a parar, por um instante. Como podia o cheiro continuar, tantos metros adiante? De que poderosa fonte viria? Olhei em volta. Talvez alguém perfumado que caminhasse comigo pela calçada. Mas a rua estava deserta. Inspirei com toda a força. Não, era mais forte que jasmim. Talvez fossem lírios. Ou angélicas. E pensei de repente no amigo morto há muitos anos, que gostava do cheiro de angélicas. Na manhã de sua morte, ao entrar em casa, eu sentira um perfume forte. Chegara a pensar que alguém já comprara as flores que levaríamos para o enterro. Mas não havia flor alguma.

Recomecei a caminhar com passos mais lentos, sem saber o que pensar, fascinada pelo perfume e pela lembrança. Até que, ao parar na beira da calçada para atravessar a rua, a revista americana que eu levava debaixo do braço caiu ao chão. Abaixei-me para apanhá-la e o cheiro me invadiu, mais forte do que nunca. Só então entendi. O cheiro vinha da revista. De um daqueles anúncios em que o fabricante imprime uma gota de perfume numa página dobrada, para atrair o consumidor. O cheiro de angélicas, envolvente, doce, quase sobrenatural, nada mais era do que um anúncio de revista.

E minha manhã – agora sem cor e sem perfume – voltou a ser apenas uma manhã comum.

 

 

A faca

(10/12/2000)

 

Seria um exame de rotina. Ele andava sentindo umas dores nas costas, um pouco de falta de ar, mas acreditava – e o médico que o atendera também – ser apenas um mau jeito, misturado talvez com um pouco de cansaço. De fato, andava muito extenuado. Pelas dúvidas, o médico sugerira que ele fizesse um raio-X do tórax.

Foi até a seção de radiologia e sentou-se na sala de espera vazia. Começava a folhear uma revista quando um enfermeiro, todo vestido de azul, veio chamá-lo. Seguiu o rapaz por um corredor comprido e entrou na sala de raio-X. O enfermeiro ajudou-o a tirar a camisa e a encostar-se ao aparelho, com as recomendações de praxe para que parasse de respirar e ficasse imóvel na hora em que fosse batida a chapa. Ele fez tudo que lhe foi pedido, voltando para a sala de espera, onde em seguida receberia o resultado.

Nem dez minutos tinham transcorrido quando a porta se entreabriu e o enfermeiro espiou, desaparecendo um segundo depois. Tinha uma expressão estranha. Mais alguns minutos e a porta se abriu de novo. Agora, era o médico que o atendera. Também o olhava de um jeito diferente. Sem dizer nada, fez sinal para que o seguisse.

Ele se levantou e foi atrás.

– Surgiu um problema e vamos precisar repetir – disse o médico.

– Problema? – perguntou, quando já chegavam ao fim do corredor. Mas o médico não disse mais nada. Entraram numa sala em cuja parede havia um quadro de luz. E nele uma chapa, pendurada. O médico apontou para o quadro, ainda em silêncio.

Ele chegou mais perto. Seu coração estava acelerado. Era uma chapa de tórax. Muito provavelmente a que acabara de tirar. Mas não uma chapa qualquer. Porque o raio-X mostrava, com toda a clareza, uma faca atravessada em sua garganta.

– O radiologista me chamou, mas não encontramos explicação. A chapa de raio-X vem selada da fábrica e não há como botar uma faca dentro do aparelho. Sabe que, por um momento, eu cheguei a pensar que a faca estivesse realmente cravada no pescoço do senhor? É incrível! Nunca vi nada igual…

Ele não disse nada.

– O radiologista garante que não pode ter sido na hora da revelação… – insistiu o médico, ele próprio parecendo ainda mais perplexo do que o paciente. – Mas é claro que vamos entrar em contato com o fabricante das chapas e…

Ele já não parecia ouvir o que o doutor dizia. Deu alguns passos para trás, o olhar vítreo, levando instintivamente a mão à garganta. Num segundo, a falta de ar voltara – mais forte do que antes. E, com um esgar, quase um arremedo de sorriso, ele pensou de repente na mulher que abandonara. Ela jurara vingança.

 

 

Viagem

(17/12/2000)

 

Foi uma sensação repentina, que me pegou de surpresa. Um conhecido meu, dono de um sebo, comprara de uma editora algumas caixas contendo dezenas de livros lançados nos anos 60, mas que por alguma razão tinham ficado esquecidos num depósito, sem jamais chegar às livrarias. Eram, assim, livros antigos porém novos, já que nunca tinham sido lidos – ou sequer abertos.

Ele me indicou o canto da livraria onde estavam e eu fui até lá espiar. Olhei para a estante, reluzente de lombadas novas em meio ao caos sempre reinante em sebos, e dei logo com o título em letras pequenas, como se datilografadas numa velha máquina de escrever: “A borboleta amarela”. Rubem Braga. Tirei-o da estante com reverência, envolta por uma estranha sensação, por saber que aquele livro tivera de esperar quase quarenta anos para ser tocado, aberto – lido.

Examinei primeiro a capa. O título e o autor também vinham em letras minúsculas, como se datilografadas, e a asa de uma borboleta, com seus desenhos estriados, abria-se sobre o fundo amarelo forte, quase mostarda, que continha ainda o nome da editora: Editôra do Autor. Assim mesmo, com acento, como era antigamente. Fascinada com aquele visual gráfico dos anos 60, abri o livro. E me vi, num átimo, transportada para um outro mundo.

A cor do papel, seu cheiro e textura, a tipologia usada na época, tudo me remetia a um tempo passado. Eu já lera muitos livros antigos, usados, mas nunca um como esse, velho-novo, guardando em suas páginas limpas o frescor de um objeto intocado. Por serem novas, aquelas páginas que eu olhava tinham exatamente – exatamente – o mesmo aspecto de tantos livros que eu abrira um dia, adolescente ainda, descobrindo os mistérios da leitura.

A sensação que me percorria era a mesma sentida quando, ao chegar de uma livraria, abria um exemplar de Graciliano Ramos ou José Lins do Rêgo, mais de trinta anos antes. Ou quando esquecia da vida dentro da biblioteca de meu tio, com suas poltronas de couro tacheado e as estantes forrando as paredes, de alto a baixo. Lá fora, através da janela, eu via o azul sem igual do céu da Bahia, mas nada – nada – me atraía para a rua. Gastava as tardes das minhas férias ali, entre aquelas paredes, sentindo o cheiro dos livros.

E agora aquele mesmo cheiro estava de volta. Não o cheiro de um livro antigo – mas o cheiro de um livro congelado no passado. E não apenas o cheiro. Tudo o mais. Todos os meus sentidos me transmitiam a mesma mensagem. No exato instante em que meus dedos tocaram as bordas das páginas, de recorte incerto, e meus olhos se fixaram naquele papel cor de creme, que se mantivera novo, foi como se eu já não estivesse ali. Tinha sido transportada no tempo – instantaneamente.

 

O roubo da árvore

(24/12/2000)

 

 

Era um homem tímido e solitário – mas não triste, de jeito algum. E tinha fascínio pelo Natal. Dizem que as pessoas sozinhas têm horror a essa época, quando a solidão se faz sentir de forma mais aguda. Mas ele não. Adorava as festas de fim de ano. Vivia só num apartamento antigo, cercado de prédios modernos que tinham crescido em torno como cogumelos, mas da janela da sala tinha a visão de um bom pedaço do espelho d’água da Lagoa. E o melhor pedaço de todos – pois era bem ali que a prefeitura armava a árvore de Natal.

Quando chegava novembro, ele – que já passava dos 60 – acompanhava a construção da árvore como uma excitação infantil. A imensa estrutura metálica levava semanas sendo armada e, depois de pronta, era deslocada até o meio da Lagoa, felizmente ainda dentro de seu campo de visão. Ali ficaria, toda iluminada, até o Dia de Reis.

Este ano, a estrutura da árvore parecia ainda maior do que nos anos anteriores. Além disso, o homem lera no jornal que ela teria uma iluminação ainda mais espetacular, com vários padrões de luzes controlados por computador. Foi também através do jornal que ficou sabendo a data em que a árvore seria acesa, em meio a uma chuva de fogos de artifício. E esperou, ansioso.

No dia marcado, acordou cedo e foi espiar para ver se a árvore já fora rebocada até seu lugar definitivo. E então percebeu, com um choque, que ela havia desaparecido. Encostou-se ao parapeito da janela, os olhos varrendo o espelho d’água em busca de  uma explicação, algum sinal. Nada. O que teria acontecido?

Após algum tempo, concluiu: com certeza este ano tinham decidido colocá-la um pouco mais para lá, perto do Cantagalo, onde ele ouvira dizer que fora montado um palco, para um show. Se fosse isso, não haveria jeito. Teria de se conformar. Mas sentia-se ofendido, perplexo. Aquele sumiço o atingia pessoalmente. Tinham roubado sua árvore de Natal.

Torceu as mãos, ainda guardando a esperança de que, na hora da cerimônia, a árvore estivesse de volta ao espaço onde sempre ficara. Mas, à noite, foi com os olhos úmidos que ouviu o espoucar dos primeiros fogos da festa. Por cima dos edifícios altos, lá pelas bandas do Cantagalo, viu os clarões dos fogos de artifício – apenas os clarões, mais nada.  Àquela altura, sua árvore já devia estar toda iluminada, cintilando no meio da Lagoa – mas para outros olhos, pensou. E foi dormir com o coração triste.

No dia seguinte, evitou ir à janela. Andejou pela casa o dia inteiro, sem muito o que fazer, pois era domingo. Remexeu em papéis velhos, leu um pouco, ouviu música, mas preferiu não assistir ao noticiário da televisão. Já era de noitinha quando ouviu um barulhinho de chuva e, quase sem perceber, foi até a janela espiar. Seus olhos de velho-menino então ficaram úmidos, como a noite lá fora.

No meio da Lagoa, brilhando por entre as gotas de chuva, lá estava ela. Sua árvore de volta.