2001

CONTOS MÍNIMOS

2001

 

 

 

Susto

(07/01/2001)

 

Sonhei que estava vivendo no futuro. U m futuro de ficção científica, com cenário de filme, naves cruzando o espaço, colônias fora da Terra e computadores capazes de falar e sofrer. Um futuro em que homens, com suas roupas espaciais, passeavam soltos pelo espaço ao som de uma valsa de Strauss. Ou mergulhavam em espirais alucinógenas, resvalando até um universo paralelo, uma nova dimensão, onde renasceriam, imensos como um deus. Eu estava lá com eles, com esses homens intrépidos, e lembro perfeitamente do tremor em minhas mãos enluvadas, no momento exato em que as estendi para tocar a parede lisa e escura do monólito desenterrado no sol lunar, primeira e inquietante prova da existência de vida fora da Terra. Foi um sonho vívido, cheio de colorido e sentimento, estranhamente real – mas de repente acordei.

Na penumbra do quarto, abri os olhos, sem me mover. Com a visão ainda toldada pelo sono, entrevi as formas difusas dos móveis, espectros banhados pela claridade mínima da noite, que penetrava através das cortinas. Pisquei os olhos, numa catatonia que não me é comum. Não entendia bem onde estava, não reconhecia de todo aquelas formas espectrais que me cercavam. Por imensos segundos, continuei imóvel, sentindo-me atordoada, confusa, embora não soubesse precisar por quê.

Até que de repente surgiu em minha mente uma sentença: estamos em 2001. O século 21 chegou. Fechei os olhos, subitamente assustada. Mas a voz dentro de mim repetiu a afirmação, sem rodeios. É verdade. O futuro chegou. Permaneci de olhos fechados, a mente rodando, rodando, como se quisesse mergulhar de novo na espiral louca do sonho.

Senti meu temor crescer, de súbito. Tinha medo de ainda estar sonhando, medo de que a fronteira do real se tivesse rompido, embaralhando os mundos. Então, talvez, eu jamais voltasse a despertar. Vagaria prisioneira daquele mundo de ficção, como um astronauta perdido no espaço. Não podia deixar que isso acontecesse.

Com grande esforço, voltei a abrir os olhos, correndo as mãos pelo lençol. Aquilo era real, eu tinha certeza. Num movimento brusco, encontrei-me sentada na cama. Sem dúvida, aquele era meu quarto. Agora, eu estava mesmo desperta. E então a voz dentro de mim disse de novo: estamos em 2001. O século 21 chegou. Mas dessa vez já não me assustou. Olhei em volta e tive certeza: era verdade, embora eu estivesse bem acordada. O futuro chegou. Estamos mesmo num outro século. Só que nosso velho mundo continua o mesmo.

 

 

A cápsula

(14/01/2001)

 

Ela abriu o jornal, bocejando. Tinha 15 anos. Todos os dias, procurava dar pelo menos uma olhada nas notícias, por causa da insistência do pai, que achava aquilo importante. Mas a menina ainda não se acostumara ao ritual das manhãs. Na verdade, detestava manusear o papel grosseiro, folhear as páginas que lhe sujavam os dedos. E, quase sempre, achava o conteúdo desinteressante.

Gostava de ler, sim, mas não jornal e sim livros. Principalmente romances. Nesses, mergulhava por inteiro, sentindo-se transportada para outros mundos – melhores, mais vibrantes, mais fáceis de lidar do que o mundo real que a circundava. Horas depois de fechado um livro, ainda flagrava-se pensando nas personagens, conversando com elas.

Os livros, sim, eram capazes de envolvê-la completamente. O jornal, não. O jornal era quase uma obrigação. Mas naquele dia seus olhos distraídos pousaram sobre uma notícia que a prendeu de imediato. A cápsula do tempo. Dizia que um grupo francês se preparava para enviar ao espaço uma cápsula contendo mensagens da Terra.

As mensagens, que poderiam ser enviadas pela internet por quem quisesse participar, seriam armazenadas em cem discos de vidro à prova de radiação, guardados dentro de uma espécie de caixa-preta, semelhante às dos aviões – para serem lidas no futuro. Mas, ao contrário de outros projetos parecidos dos quais a menina já ouvira falar, a cápsula dessa vez não seria enviada às profundezas do espaço, para ser talvez um dia resgatada por outra civilização.

Não. Dessa vez, ela ficaria em órbita da Terra e estaria programada para reentrar na atmosfera, caindo de volta em nosso planeta – só que daqui a cinco mil anos. As mensagens contidas na cápsula eram assim destinadas a nós mesmos – ao nosso futuro. A menina ajeitou-se na cadeira, debruçando-se um pouco mais sobre o jornal estendido na mesa e apertando com força as bordas do papel áspero que lhe tingia as pontas dos dedos. Continuou lendo.

Além dos discos com as mensagens, a cápsula levaria outras amostras do que é nosso mundo atual, como uma gota de sangue humano e um diamante artificial contendo água do mar. A menina ficou imóvel, as mãos agora espalmadas sobre a página do jornal, pensando. Cinco mil anos.

O que seria do mundo, então? Haveria, ainda, o mar? Ou dele restaria apenas uma pasta lodosa e infecta? Quanto sangue – como aqueles mesmo sangue guardado na cápsula – teria sido derramado ao longo de 50 séculos? Haveria, ainda, o homem, nossa civilização? Ou seríamos só fragmentos de memória, de nós restando apenas as mensagens gravadas em nossos pequenos sarcófagos de vidro, os discos encerrados na cápsula do tempo?

Neste instante, a página aberta diante da menina recebeu em sua superfície uma gota. Uma gota, apenas. E ela pensou, com um sorriso triste, que a cápsula deveria conter, também, uma lágrima.

 

 

OVNI

(21/01/2001)

Passava um pouco das 4h da madrugada quando acordei. Com a janela aberta, o quarto estava banhado pela lua cheia, que incidia sobre a mesinha e o chão, despejando sua luz leitosa e fria. Bem, nem tão fria. Apesar do ar fresco da madrugada, fazia muito calor. Era uma típica noite de verão.

Decidi me levantar e ir até a janela, respirar o ar da noite.

Se por acaso acordo no meio da madrugada – o que é raro –, sinto prazer em olhar as ruas quietas, a cidade desprovida de seus ruídos, o asfalto brilhante se estendendo inútil, imaculado, sem a presença dos carros. É bonito. Transmite uma sensação boa, de paz. Era o que eu sentia naquele instante. Mais ainda porque, naquela noite, havia o lugar colorindo o silêncio.

            Não havia nuvens, nem nebulosidade de qualquer espécie. A noite estava limpa, o céu de uma nitidez impressionante. Observei bem a lua. Dava para ver perfeitamente, a olho nu, os desenhos das crateras. E havia também as estrelas. Não muitas, é verdade, porque nas cidades, mesmo em noites claras, a luz das estrelas nos chega meio apagada. Mas de repente, no céu, à esquerda da lua, bem acima de um prédio alto da vizinhança, vi uma luminosidade diferente que em chamou a atenção.

            Era uma pequena bola de fogo, cintilando no céu. Pisquei os olhos, ajeitando o foco da visão. Num primeiro momento, pensei tratar-se de Vênus, a estrela da manhã. Já a vira muitas vezes, ela que surge no céu ao fim da madrugada, com seu brilho muito forte. Mas daquela vez era diferente. Nunca na vida eu observara uma estrela de tal magnitude, quase um pequeno sol, seu corpo de fogo perfeitamente visível, de um brilho estático, alaranjado.

            Fiquei olhando para o estranho corpo celeste, intrigada. Talvez fosse a nitidez da noite que, de tão limpa, estivesse refletindo a luz da estrela como uma lente de aumento. Mas era estranho, incompreensível. Talvez fosse um objeto não identificado, um disco voador parado no ar, nos observando. Decidi ir até a janela da sala, de onde teria talvez um ângulo melhor de visão.

Lá chegando, tudo se transformou. Não sei bem como, talvez pela mudança de ângulo, mas o fato é que dali, da janela da sala, um outro objeto se tornou visível para mim, um objeto que antes eu não conseguira enxergar: uma haste, uma longa haste de metal que sustentava a pequena bola de luz alaranjada. A estrela era apenas uma luz de sinalização, dessas que se colocam em cima dos prédios mais altos, para alertar helicópteros e aviões. Estranho que eu não tivesse podido enxergar a haste ao olhar o céu do meu quarto. Talvez ainda estivesse meio sonolenta. Ou talvez fosse culpa de minha mente fantasiosa, que ultimamente anda pensando muito nos mistérios do espaço.

Dei de ombros. Sem minha estrela, meu OVNI, a noite voltou a ser apenas mais uma madrugada de verão. Hora de voltar para a cama.

 

As tartarugas de Heron

(28/01/2001)

 

Amanhece na ilha de Heron. Sobre a imensa faixa de areia, que se estende em curva até desaparecer na bruma da manhã, despeja-se uma luz violácea, que pouco a pouco se encorpa. Mas é somente quando o sol oblíquo já incide sobre as areias e a água, sobre a vegetação rasteira e os tufos de algas que brilham nas pedras com a maré baixa, é só então – nunca antes – que se pode notar o primeiro movimento na praia.

De início, quase imperceptível. Alguns grãos de areia deslocados, apenas. Depois um movimento um pouco mais brusco, mais ousado, pequeno terremoto que suga a areia para dentro de si mesma. Os grãos estremecem, revolvem-se, revoltam-se, até q eu, finalmente, após longa luta, uma forma de cor escura irrompe à superfície. É a cabecinha de uma tartaruga.

Logo, surgem outras. E mais outras, por toda parte. Ao longo de uma enorme extensão de areia, as tartarugas recém-nascidas caminham com seus passos incertos em direção ao mar da Austrália. Nem todas conseguirão alcançá-lo. Muitas morrerão ao longo do caminho até as ondas, levadas por aves predadoras, ou se perderão, confundida pelo sol. Outras, tenazes, resistirão. Serão mais rápidas ou terão mais sorte – e logo seus pequenos corpos escuros serão apenas uma nódoa no mar de esmeralda líquida. Estarão salvas para cumprir seu destino.

E esse destino é nadar, seguir em frente. As tartarugas de Heron, assim que mergulham no mar, nadam incansavelmente em direção à Nova Zelândia, atravessando as águas do Mar da Tasmânia por anos a fio. Levam praticamente a vida toda nessa travessia, apenas para, um dia, voltar. Então, descrevem uma longa curva e atravessam de volta o oceano, rumo à mesma praia da ilha de Heron onde nasceram. Ali, já adultas, vão pôr seus ovos na areia – para que o ciclo da vida recomece.

Soube de tudo isso ao assistir a um documentário na televisão. E fiquei pensando. As tartarugas de Heron se parecem um pouco conosco.

Elas, como nós, atravessam o longo arco da vida – tão atribulada, tão cheia de pequenas batalhas – e, no fim das contas, vão parar no mesmo lugar. São navegantes sem sentido, mas que continuam, sempre e sempre, nadando rumo a seu destino. Nadam com grande afinco, empregando nas braçadas toda sua energia, ano após ano, sem saber bem por que o fazem, talvez sem sequer pensar no sentido dessa trajetória. Mas vão em frente, navegam – como nós. Porque é preciso.

 

 

Um brasileiro

(04/02/2001)

 

Eram onze horas da noite. Sendo dia de semana, a pista da Lagoa, junto ao Estádio de Remo, estava quase vazia. Eu, sozinha ao volante, ouvia música com o pensamento longe dali, distraída – como não se deve ficar nos sinais, à noite – quando vi surgir do canteiro central um menino.

Era preto e magro, aparentando no máximo 8 anos. Estava descalço, a pela das pernas e do joelho esbranquiçada de poeira, e vestia bermuda e camiseta, ambas velhas, desbotadas. Por um segundo, pensei que pudesse representar algum perigo, mas em seguida percebi que trazia algo nas mãos. Devia estar vendendo alguma coisa.

Apertei os olhos, tentando ver o que o garoto levava consigo, enquanto se dirigia para o meio da pista. Eram umas coisas redondas, esverdeadas. Seriam limões? Não dava para ver direito. Havia um carro na frente do meu. Mas ninguém vende limões a não ser em feiras, dentro daquelas redes de náilon que nos cortam os dedos. Além disso, as bolas pareciam grandes demais para serem limões. Mangas, talvez. Não, não, concluí. Mangas, nunca. Mangas não têm esse redondo perfeito.

Por um segundo, ergui os olhos e observei o sinal. Continuava vermelho. E no instante seguinte voltei a olhar para a frente. Só então, com um sorriso, percebi o que o menino portava entre os braços. Eram bolinhas de tênis. E então, em sincronia com meu olhar, ele começou seu número.

Plantado de pé no meio da faixa de pedestres, jogou para cima as bolinhas, que giraram no ar, em torno dele, em perfeito equilíbrio. Durante todos os longos segundos que ainda restavam de sinal vermelho, ele as manteve assim, voando num semicírculo acima de sua cabeça, com extrema graça e agilidade. Mais do que isso: com a compenetração, a dignidade e a altivez que caracterizam os verdadeiros artistas de rua.

E, enquanto olhava para ele, encantada, vi rodopiarem à minha frente, junto com as bolinhas, tantos conceitos, tantas idéias, palavras. Infância, miséria, alegria, luta, suor, fantasia, noite, abandono, brinquedo – tanta coisa me vinha à cabeça e girava e girava no ar, num movimento hipnótico.

Um segundo antes que o sinal abrisse, ele encerrou o show, recolhendo as bolinhas sem deixá-las cair e fazendo uma elegante mesura, em agradecimento. Achei que seu rosto exibia um sorris quase imperceptível.

E eu, que não gosto de dar esmola em sinais, fiz descer o vidro do carro. Sem tirar os olhos do garoto, acenei pela janela com uma nota de um real. Aquele menino, com suas bolinhas sujas, com sua fantasia maltrapilha – era irresistível. A representação perfeita desse grande malabarista que é o brasileiro.

 

Erótico

(11/02/2001)

 

Em torno, havia a noite de verão, morna e suave. Uma brisa mínima soprava por entre os coqueiros e amendoeiras, trazendo o cheiro do mar. No deque, as ripas de madeira escura estavam mornas, guardando ainda um pouco do sol. Dali, de onde eles estavam, na pequena amurada de madeira, era possível ver a sombra do mar, lá embaixo. Havia pouco movimento em torno. Apenas algumas mesas do restaurante estavam ocupadas, suas toalhas brancas caindo ao chão como fantasmas adormecidos. E havia, também, pouca luz. Além da luminosidade natural da noite, apenas os tocheiros de jardim, com suas chamas tremeluzentes, incertas.

A mulher pousou as duas mãos na balaustrada de madeira e respirou fundo, fechando os olhos. Sentiu o perfume das amendoeiras, mesclado ao odor mais forte que vinha do mar. “Cheiro de florestas menstruadas”. Quis sorrir ante a lembrança da frase de Nelson Rodrigues, que sempre a fascinara, mas mordeu o lábio, invadida por um desejo súbito, selvagem. Porque nesse instante, ainda de olhos fechados, sentiu o calor da mão do homem deslizando em torno de sua cintura pela primeira vez – a primeira vez, após tão longa espera.

Manteve-se imóvel, ainda por um momento, olhos cada vez mais apertados, lábios também, toda ela resistindo àquele toque, o prenúncio da loucura. Mas sabia que era uma resistência vã. Ela própria tecera a noite com os fios da sedução. Vestira o vestido preto de seda, cujo decote deixava-lhe os ombros nus, e enfeitara o colo com seu mais belo colar, de coral vermelho. Preparara-se para aquela entrega.

E logo sucumbiu.

Abrindo os olhos, virou-se, as mãos ainda cravadas na madeira, como num último pedido de socorro. Encontrou os olhos dele, faiscando à luz das tochas. Virou-se mais, com a lentidão da tortura, o sangue incendiado por aquelas mãos que – as duas – a enlaçavam agora com mais firmeza, puxando-a. E deixou-se ir.

Deslizou as mãos pelos braços dele em direção aos ombros, ao pescoço, prendendo-as ali como ervas daninhas. Não havia volta, mais. Nem arrependimento. Rendida, entreabriu os lábios e ergueu o rosto, à espera. E foi assim, entre prazer e dor, que recebeu o beijo proibido, sentindo cravadas na nuca as pontas irregulares das contas de coral – como coroa de espinhos.

 

 

Flores e espinhos

(18/02/2001)

 

Foi passando junto ao gradil do Jardim de Alá que reparei nos espinheiros em flor. A tarde caía e, em meio ao barulho dos pássaros, senti o ar perfumado, de repente. Olhei em torno e vi, por trás das grades, as silhuetas dos arbustos, com seus tufos pontiagudos, ostentando no alto uns buquês muito brancos – as flores.

Lembrei então que, nesta época do ano, os espinheiros sempre dão flor. Na verdade não sei que nome têm esses arbustos, mas chamo-os de espinheiros porque são plantas de folhas duras, com grandes espinhos nas extremidades, formando tufos no alto de seus caules longos e finos. Estão por toda a parte. Durante o resto do ano, são uns arbustos feiosos, comuns, incapazes de nos despertar a atenção. Mas de repente, um dia, surge de dentro do tufo espinhoso um buquê de flores delicadas, parecendo um cacho de uvas ao contrário, ou um buquê de acácias mimosas, só que com pétalas da mais perfeita alvura. E o que é mais surpreendente: essas flores que, com sua delicadeza, emergem de um arbusto tão agreste e feio, têm perfume de jasmim.

É esse contraste entre a flor e o espinho que me fascina, por paradoxal.

Ainda me lembro da primeira vez em que me deparei com ele. Eu estava casada de pouco e alugara um apartamento, onde tinha encontrado, largado a um canto, um vaso de  espada-de-são-jorge, planta que acho muito feia. Cheguei a pensar em jogar o vaso fora, mas fiquei com pena. Ainda mais porque alguém tinha me dito que a planta protegia contra mau-olhado. Pelas dúvidas, deixei o vaso num canto da área de serviço. Molhava a planta de vez em quando, mas não dava muita atenção a ela, ao contrário do que fazia com outras mais nobres – samambaias, unhas-de-gato e avencas, que vicejavam na varanda.

Mas uma noite, fazendo alguma coisa na área, fui invadida por um forte cheiro de jasmim. E, com enorme surpresa, vi que o aroma se desprendia de um pendão florido que brotara da espada-de-são-jorge. A planta – que jamais pensei ser capaz de dar flor – pagava com perfume o desprezo que eu lhe devotara.

Como podia, uma planta tão rude se abrir em tal demonstração de delicadeza? Fiquei fascinada. Era a primeira vez que me deparava com essa contradição.

Anos depois, eu prestaria atenção nos cactos, que também produzem as flores mais delicadas, e nos espinheiros das ruas, de cujas folhas agrestes nascem pendões perfumados. Mas na época aquilo foi uma surpresa para mim. Eu, que já começava a entender que o casamento está longe de ser um conto de fadas, me deparei assim, pela primeira vez na vida, com esse paradoxo feito de flores e espinhos.

 

 

O grande irmão

(25/02/2001)

 

Recebo pelo correio um envelope azul-marinho. Na capa, traz meu prenome em letras garrafais, seguido de uma frase sobre a emoção de morar no Leblon. É um folheto de propaganda de um produto qualquer. Olho para aquele pedaço de papel e sinto uma sensação estranha. Não gosto de ver meu nome estampado em letras tão grande num envelope, jogado na mesa da portaria. Eu, uma pessoa tão discreta, que não falo alto, não me meto com os vizinhos. Sinto como se o vendedor do produto tivesse tomado comigo uma intimidade que não lhe dei, de certa forma me desnudando em público.

No meu aniversário foi a mesma coisa. Recebi um envelope que trazia um gigantesco “Parabéns”, seguido do meu nome em letras imensas. O prédio inteiro ficou sabendo que era o meu aniversário. E se eu detestasse esse tipo de efeméride? Se preferisse que ninguém soubesse o dia em que faço anos?

Isso não deveria acontecer. Outra coisa que me incomoda são os telefonemas oferecendo coisas. Ou os e-mails com convites enviados por pessoas de que nunca ouvimos falar. Ou ainda a nossa total impossibilidade de caminhar nas ruas – caminhar, simplesmente –, sem ter de receber, ou recusar, um folhetinho a cada esquina.

Estamos, o tempo todo, recebendo, por meios diversos, uma quantidade enorme de informações e ofertas que não pedimos. Acho isso um abuso, uma invasão – uma violação de direitos humanos.

Nossos nomes completos, endereços, telefones e e-mails estão por aí, disponíveis, em listas que são cedidas ou vendidas a quem interessar possa, para que as empresas nos venham oferecer seus produtos – sem ser convidadas. Cartões de crédito, revistas, serviços telefônicos, produtos de todo tipo nos são impostos e precisamos fazer um esforço enorme para fugir deles. Onde está nossa privacidade?

Sim, onde?

Mas, pensando bem, quem, hoje em dia, está interessado em privacidade? Se as pessoas se desnudam na internet, se exibem ao público seu cotidiano, fazem amor, entram em trabalho de parto, vão ao banheiro, tudo isso on-line, para quem quiser ver? Se são capazes de vender a alma ao demônio para aparecer um minuto que seja na mídia?

A própria sociedade em que vivemos incentiva essa promiscuidade, o fim dos limites, das paredes. O exibicionismo é a palavra de ordem. E não importa se eu, você e alguns poucos ainda prezamos a intimidade como algo só nosso. Nossa resistência é inútil.

Isso me faz lembrar o Grande Irmão, a câmera que, na fantasia futurista de George Orwell, espionava as pessoas, tomava conta da vida de todos, poderosa, onipresente e onisciente. Assim como no livro, nossas vidas não mais nos pertencem. Só que nós mesmos – a sociedade como um todo – somos os culpados.

O Grande Irmão somos nós.

 

O gato e a pipa

(04/03/2001)

 

Seu pêlo lustroso, muito negro, reluz ao sol, ganhando matizes cor de cobre em alguns pontos. O dorso forte, musculoso como o de um puro-sangue, está em repouso, as patas colocadas com elegância sobre o balcão de madeira, embaixo da janela. O rabo forma uma curva graciosa para a direita, como se quisesse abraçar o próprio e pequeno corpo. E seu olhar está perdido lá fora, as pupilas reduzidas a um traço pela força da claridade. Embora esteja ereto, parece dormir de olhos abertos, tal a sua imobilidade.

Mas, de repente, dá-se o alerta. Os gatos são assim, capazes de passar do mais completo estado de relaxamento para o alerta absoluto. Estão inteiros, completos, em tudo o que fazem – e isso acontece sempre, nos momentos de repouso ou atenção. É portanto num segundo que ele se põe em guarda, as orelhas projetadas para cima, dois pequenos cones negros recortados contra a luz. Viu algo.

Chego mais perto, sem fazer ruído. Ele não move um músculo. É claro que sabe que estou ali, observando-o, mas não se importa. Toda a sua atenção se concentra em algo que se mexeu lá fora e tudo o que se move é, para um gato, uma presa em potencial. Talvez seja um pássaro. Olho para além da janela e sorrio. Não é um pássaro. É uma pipa.

Da janela de um prédio mais baixo, um menino solta pipa, um papagaio colorido de vermelho, azul e branco, com uma rabiola enorme, como eu não via desde pequena. Com agilidade, o menino move a linha, fazendo a pipa costurar o espaço, em pequenas curvas nervosas. São esses movimentos rápidos que chamaram a atenção do gato. Excitado, ele corre pelo balcão e chega a pôr as patas dianteiras no parapeito, talvez analisando suas possibilidades. Mas logo pára, percebendo que a presa é inalcançável. E, algum tempo depois, com um suspiro, volta a sentar-se. Desistiu.

* * *

Agora, adormeceu. Está deitado de lado, com os olhos fechados, relaxado. Apenas seus bigodes se movem de vez em quando, os fios compridos captando alguma coisa, como antenas. Logo, começa a franzir o focinho, remexe-se um pouco. Mas continua dormindo. Acho que está sonhando. Outro dia os cientistas descobriram que os ratos sonham como nós, sonhos longos, com enredo, emoção – prazer e medo. E os sonhos dos gatos, como serão?

Com o que sonha meu gato?

Com seu pássaro-pipa, na certa. Com alguma presa inalcançável e fugidia que, por isso mesmo, é sua maior fonte de desejo. Ele é como todos nós.

 

Janela indiscreta

(11/03/2001)

            Todo escritor é um pouco voyeur. E eu não sou exceção, claro. Mas como durante anos morei num apartamento que dava para a Lagoa, tive de limitar minhas observações ao movimento das ruas e às nesgas de janelas que vislumbramos ao caminhar por elas.

Só que agora a situação mudou. E eu ganhei uma nova perspectiva – um prédio inteiro à minha frente, com dezenas de janelas abertas só para mim. É uma beleza. Passo horas observando o movimento das pessoas, seus hábitos, o ambiente em que vivem. E criando, para cada um daqueles núcleos de vida, uma história.

Há a velhinha magra, sempre muito bem vestida, que, do primeiro andar, observa a rua com um sorriso melancólico, como se olhasse para o próprio passados (só faz isso de manhã, quando o sol incide sobre sua pele clara, cujas veias azuladas eu chego a adivinhar). Há a mocinha da última janela à direita que, à noite, se mira interminavelmente no espelho, sem nunca resolver que roupa vai usar. Ou a empregada que sonha debruçada na varanda da cobertura, sempre vazia. E há, ainda, aquela que mais me fascina: a vizinha solitária.

Seu apartamento fica bem na altura do meu. É uma mulher gordinha, de meia-idade, cuja solidão salta aos olhos, janela afora. Nunca vi ninguém no apartamento com ela. Tem mania de limpeza e dedica as tardes de sábado a fazer faxina, sempre. Primeiro, abre as cortinas de pano e enrola-as em si mesmas, jogando as pontas para o lado de fora do parapeito. Depois, vejo sua figura passando para lá e para cá de vassoura na mão, carregando coisas, esfregando portas e arrastando móveis. Até que afinal chega a hora dos vidros, para a qual ela parece preparar-se como num ritual. Munida de um pano, senta-se no parapeito a cavaleiro e começa a acariciar o vidro, em movimentos circulares que fazem surgir na superfície desenhos que lembram petas furta-cor. Do lado de cá, eu observo tudo, a respiração em suspenso. Quando ela se debruça um pouco mais, no afã da limpeza, sinto um arrepio. Há, em cada gesto dessa mulher solitária, um sopro de perigo – um pressentimento.

Outro dia, alta madrugada, cheguei à janela depois de assistir a um filme e lá estava ela. As luzes acesas de seu apartamento contrastavam com o resto do prédio, adormecido e às escuras. Vi que caminhava de um lado para o outro, sem parar, e demorei algum tempo até compreender o que fazia. Estava limpando a casa. Era um fim de semana, madrugada de sexta para sábado, e ela limpando a casa. Talvez, naquela noite vazia, sua solidão a tivesse ferido com tal agudez que ela precisasse se entregar logo à faxina redentora. Talvez não pudesse esperar sequer o dia amanhecer.

Janela indiscreta (2)

(18/03/2001)

 

Falava outro dia aqui das minhas observações sobre a vida que se desenrola no prédio em frente ao meu. Mas acabei deixando de lado os personagens que prendem mais minha atenção – pelo contraste que existe entre eles. São dois casais, cujas janelas, a poucos metros uma da outra, mostram realidades díspares, que me fascinam.

No primeiro andar, mora o casal feliz. Ele é um homem maduro, de cabelos grisalhos. Ela, uma mulher mais jovem. Vivem com um gato amarelo e um cachorro vira-latas, que dormem à vontade por cima da cama e dos sofás. A casa tem uma estante repleta de livros, na mais perfeita desordem. No chão, de lajotas, há tapetes de tear, e os sofás, talvez já um pouco gastos, estão recobertos por mantas coloridas. Em mais de uma ocasião, já vi o gatinho roendo as folhas do pé de orquídea que enfeita o balcão, embaixo da janela. Reina, por toda a casa, uma doce desordem, uma imperfeição calorosa e humana.

Muito diversa daquilo que vejo apenas duas janelas acima. Ali, vive o casal infeliz.

São jovens – muito jovens. E têm um bebê. Talvez tenha sido este o motivo do casamento, não sei. O fato é que os dois, ainda quase crianças, se casaram. E montaram (imagino que com a ajuda dos pais) esse apartamento para morar. É o apartamento mais triste que já na vida. tudo branco, tudo limpo, as paredes descarnadas, a estante sem enfeites, sem livros. Não há tapetes, nem quadros, nem cortinas na sala. Os móveis, de madeira escura, repousam sobre o chão claro, soturnos como esquifes. Está na moda, parece (talvez tenham dito isso a eles). Mas a moda é às vezes cruel. Aqueles dois meninos vivem presos num cárcere de vidro. Sinto uma pena enorme deles.

Quase não saem. Passam os dias entre quatro paredes, sentados em seu sofá branco, inertes diante de um dos poucos objetos (talvez o único) que têm cor naquela sala: o aparelho de TV. Parecem tão tristes, derrotados, tão indefesos diante de um destino que lhes foi imposto, não sei por quem nem por quê. A mocinha passeia pela sala de vez em quando com o bebê nos braços, para em seguida desaparecer na direção do quarto. Algum tempo depois, volta sozinha e, de pé, junto ao sofá, faz um carinho no marido. Mas depois olha para a televisão e mergulha, ela também, naquela tela que parece ser o único ponto do apartamento onde existe vida e colorido. E, num transe hipnótico, ficam os dois ali, imóveis, apáticos, impávidos diante da televisão – duas figuras de cera. São quase uma natureza morta.

Olho para as duas janelas, esse jogo de contrastes, essa balança que oscila à minha frente, tendo de um lado o colorido e o aconchego, do outro, o gelo e o vazio. Mas às vezes, com um sobressalto, me pego pensando: e se, afinal, não for nada disso? Se a cor esconder a frieza e as paredes brancas forem o invólucro da ternura?

Sim, e se for tudo ao contrário?

 

 

Despertar

(25/03/2001)

 

A mulher já estava acordada, mas retardava, ainda, o instante de abrir os olhos. Saboreava aquele momento entre a vigília e o sono, em que parecemos navegar num mundo amorfo, de contornos imprecisos. Gostava disso, de errar através dessa fronteira, retendo as imagens dos sonhos, seus aromas e sabores.

Sentia-se feliz, plena. Ainda que permanecesse imóvel, podia sentir o calor que emanava do corpo a seu lado. Um corpo de homem – seu homem. Suspirou, movendo-se devagar sob os lençóis, mas com cuidado, muito cuidado, para não romper a fronteira do sonho onde ainda se encontrava, não esgarçar seus tecidos, de imensa delicadeza. Sentia sobre o corpo nu o toque macio do lençol, uma carícia. E nas narinas o cheiro das amendoeiras, a brisa da manhã que entrava pela janela. A manhã de outono sabia a verão, trazendo em seu sopro o burburinho das pessoas que saíam para a praia de domingo. Mas, mais forte do que o aroma das árvores e das ruas, havia o cheiro dele, do homem deitado a seu lado. Era um cheiro másculo, cítrico, mesclado de suor, um odor penetrante e sensual, capaz de despertar os sentidos da mulher, ainda meio adormecidos. Seu homem. Mesmo de olhos fechados, imaginava o contorno do corpo moreno, de espaldas largas, deitado de bruços. As pernas musculosas, os braços frouxos sobre o travesseiro, a agressividade das veias no dorso das mãos contrastando com a lassidão do gesto. Seu homem. Ela o amava.

Seus cílios estremeceram. Ainda envolta pelo torpor do sono, a mulher tornou a mover-se, agora um pouco mais, embora ainda lentamente. Manteve os olhos fechados, mas pensou que já devia ser tarde. Precisava acordar. Num último espreguiçar, contorceu-se com languidez e suas pernas, esticadas em diagonal, tocaram o ponto onde a cama estava fria.

Vazia.

Num segundo, abriu os olhos. Olhou o espaço a seu lado. Não havia ninguém.

Sentou-se, com um aperto no peito. Sim, a cama estava vazia. E, agora totalmente desperta, a mulher encarou – como em todas as manhãs dos últimos meses – a verdade que a dilacerava. Ele não estava mais ali. Seu homem – fora embora.

Tinha sido um sonho. Enquanto dormia, a presença dele, seu cheiro e calor, se haviam apresentado com tamanha força e nitidez que ainda permaneciam no quarto, invadindo o real. A mulher fechou os olhos, procurando reter um pouco mais a sensação perdida de tê-lo a seu lado. Mas não foi capaz. Era tudo mentira.

Pôs-se de pé, uma angústia indefinida subindo-lhe à garganta. E nesse instante seu olhar pousou no calendário da parede. A angústia explodiu numa gargalhada de escárnio. E a mulher sorria ainda, seu sorriso selvagem, quando disse em voz alta?

– Hoje é dia 1o. de abril.

 

O que era?

(01/04/2001)

 

Ela estava apressada, naquele dia. Tinha um compromisso importante, uma reunião de trabalho que talvez significasse uma transferência para o exterior. Talvez por isso, pelo nervosismo e a ansiedade que antecediam a reunião, esquecera a pasta no sofá da sala. O fato é que, estando já na portaria, teve de voltar. Deu um suspiro de impaciência. Passava um pouco das dez da manhã. Não podia chegar atrasada de jeito algum. Deu meia-volta para pegar outra vez o elevador. Já estava abrindo a porta quando ouviu passos atrás de si. Era um casal, bem jovem ainda, que chegava da praia. A mulher esperou, segurando a porta para eles, mas no fundo estava impaciente. O rapaz aproximou-se e agradeceu. A moça veio logo atrás, um pouco esfogueada, segurando nas mãos um papel que o porteiro acabara de lhe entregar.

Entraram. E o elevador afinal começou a subir.

– Um telegrama para mim – disse a moça, mostrando ao rapaz o papel que tinha na mão.

– Telegrama?

– É. Estranho, não é? Um telegrama para mim, aqui? – a moça insistiu. Tinha um ar perplexo no rosto ainda avermelhado pelo sol.

Os dois se entreolharam durante alguns segundos, sem dizer nada. No silêncio constrangido do cubículo, a mulher observava o casal com o canto dos olhos. Nunca os vira no prédio. Podiam ter alugado um apartamento por temporada. Talvez estivessem em lua-de-mel. A moça era quase loura. Devia ser do Sul.

– Não é estranho? – insistiu a moça, agora não mais olhando para o rapaz e sim para o pedaço de papel.

– É. Por que você não abre logo? – perguntou o rapaz.

E a mulher atenta, ouvindo.

– Hum… Não gosto disso! – exclamou a moça de repente, baixando a mão, como se quisesse tirar o telegrama de seu campo de visão.

O rapaz ia dizer alguma coisa, mas naquele instante o elevador parou. A porta de metal se abriu. O ruído metálico pareceu ecoar ainda por uma fração de segundos, antes que o casal começasse a se mover, antes que o rapaz estendesse o braço e abrisse a porta. Era o andar deles. A moça tinha o rosto contraído, o olhar distante. O rapaz sorriu para a mulher, com uma quase imperceptível mesura. E os dois saíram, a moça com o telegrama fechado ainda apertado na palma da mão.

E a mulher ficou só, entre as paredes do elevador.

Por um momento, esquecera a ansiedade, a reunião de trabalho, a viagem, tudo. Por um momento, estava só com a pergunta que faiscava em sua mente, e cuja resposta talvez jamais viesse a saber.

O que havia naquele telegrama?

 

 

 

O querubim

(08/04/2001)

            Foi junto à parede dos fundos de um supermercado que eu o vi. Virei a esquina e lá estava ele.

Fazia sol naquela manhã, pois muitos têm sido os dias de sol. Mas, como era ainda bem cedo e a cidade mal despertava, o sol esbranquiçado e preguiçoso lançava sobre a calçada uma luz tímida, oblíqua. Seus raios, depois de esgueirar-se por entre os prédios ainda envoltos pelas últimas sombras, incidiam sobre o chão apenas num determinado ponto. E o facho de luz, reticulado pelos grãos de poeira em suspensão, derramava-se sobre as pedras portuguesas com um toque quase sobrenatural – como um raio de anunciação.

Pois era bem ali – no trecho da calçada banhado por aquele sol primeiro – que ele, o anjo, se encontrava.

Diante da visão, sustei o passo. Minhas mãos, até então frouxas ao longo do corpo, se entrelaçaram num gesto instintivo, como se postas para uma prece. E, imóvel, observei por um longo instante a cena que tinha diante dos meus olhos, de uma beleza renascentista.

Era um menino. Dormia. Descalço, vestia apenas um calção rasgado e sujo, tendo à mostra o torso magro, de costelas pronunciadas. Deitado de costas no chão, trazia os braços abertos, largados, e as pernas cruzadas uma sobre a outra, como um crucificado. Mas parecia feliz. Sorria no sono. Dormia profundamente, trazendo estampada no rosto aquela inocência que só as crianças adormecidas têm. Em seu sorriso e em sua postura havia um tal abandono, uma tamanha entrega, que era como se ele tivesse absoluta certeza de que nenhum mal podia atingi-lo.

Mas eu sabia bem que não era assim. Não conhecia sua história, mas imaginava que procurara o primeiro sol para se aquecer, talvez depois de uma noite insone e perigosa, percorrendo os caminhos traiçoeiros das ruas. Seu rosto, de traços perfeitos, estava imundo, assim como os cabelos, cujos anéis alourados mal se distinguiam em meio à poeira. Apesar do aspecto frágil, ele exibia, na pele morena e nos músculos justos, uma história de força, de luta e resistência. Uma história de dor.

Era com certeza um menino-homem, calejado já pela solidão e a violência. Apenas naquele instante – no abandono do sonho – voltara a ser criança. Apenas naquele instante se permitia o sorriso infantil, o gesto desarmado dos braços em cruz. Talvez, se o encontrasse desperto, eu tivesse uma sensação bem diferente, eu sentisse medo.

Pensando isso, retomei meu passo. Ao me afastar, ainda me virei para olhar, como a me certificar de que não fora uma visão sobrenatural. Mas ele continuava lá.

E eu fui embora, levando nas retinas a imagem do meu querubim abandonado.

 

Ficção científica

(15/04/2001)

 

Outro dia tive um sonho terrível. Um sonho do qual eu era apenas expectadora, um ser incorpóreo que não participava da cena – só assistia. Um sonho como um filme. Eu simplesmente acompanhava o olho da câmera, que me conduzia num travelling cinematográfico por um jardim em direção a uma casa e depois através da janela aberta até penetrar numa sala. Era um salão enorme, de poucos móveis, com paredes brancas quase vazias. Numa delas, oposta à janela, havia uma televisão de tela plana, imensa também, de onde emanava uma luz azul. Era a única luminosidade do ambiente.

No centro da sala, um sofá branco estava colocado diante da tela, mas não se via ninguém sentado nele. E, contudo, mesmo em meio àquela penumbra azulada, tive a certeza imediata de que a sala não estava vazia.

Minha câmera deslizou mais para perto do sofá. E só ao transpô-lo, como só acontece nos filmes ou nos sonhos, num vôo de outra forma inimaginável, foi que me deparei com as duas crianças. Estavam sentadas, lado a lado, e quase desapareciam diante da magnitude do sofá, tão grande que parecia feito para seres de outra espécie, para alguma super-raça de outra galáxia. Mas os dois meninos pareciam muito à vontade em meio às almofadas gigantescas. Estavam concentrados numa tarefa qualquer, que a princípio não me foi possível distinguir. Mas logo o olho da câmera aproximou-se mais e eu vi que um deles tinha nas mãos um objeto do tamanho de um maço de cigarros, com uma pequena tela iluminada pelo mesmo azul da tela maior. Com a ponta de uma caneta, ele tocava a superfície de cristal do pequeno objeto, que ia sofrendo transformações, exibindo imagens em miniatura, letras e algarismos.

Embora eu não ouvisse suas vozes – era um sonho sem som –, as duas crianças pareciam envolvidas numa acalorada discussão, cujo teor afinal compreendi: estavam escolhendo o programa ou filme que iria passar na TV. A certa altura, pareceram chegar a uma conclusão. Ajeitaram-se melhor no sofá e, com o pressionar da ponta da caneta no pequeno aparelho de comando, a sessão começou. A tela azul se dissolveu na imagem de um longo corredor e, como um filme dentro de um filme, o olho da câmera nos conduziu por ele, rumo a uma porta de ferro, que se abriu.

Estávamos agora numa cela de alta segurança. Sobre uma cama, todo amarrado por correias de couro, havia um homem. Lembro bem de seus olhos injetados, loucos. Ao lado dele, uma máquina cheia de ampolas de vidro, parecendo pistões, movendo-se lentamente para baixo. Estavam conectadas a cateteres que iam dar numa agulha em seu braço.

De repente, percebi com horror que a cena era real. Aqueles meninos, duas crianças, estavam assistindo a uma execução, ao vivo, pela TV. E eu não podia fazer nada para impedir. Ainda bem que é só um pesadelo – pensei, no sonho – e que isso jamais vai acontecer de verdade.

Mas horas depois, desperta, sozinha no escuro do quarto, pensando neste nosso louco mundo e em tudo o que se lê nos jornais, me veio a dúvida terrível. Será que um dia meu sonho de ficção científica vai se transformar em realidade? Será?

 

 

Outono

(22/04/2001)

 

Finalmente parece que o outono chegou, pensou a mulher enquanto olhava para a vitrine. Ainda fazia calor, é verdade. Um calor úmido, pegajoso. Mas já não sufocava como antes, como durante todos aqueles meses de secura e brasa, em que as pessoas já clamavam aos céus por uma enxurrada, por piores que fossem as conseqüências. Sim, o outono estava ali, acima de tudo naquela loja, cuja vitrine apreciava agora, com seus blazers elegantes, suas botas, seus tons de ferrugem e o chão coalhado de folhas secas de mentira. Estava bonito. Era uma loja de rua. A mulher só gostava de lojas de rua, nunca de shoppings, porque sentia como se só na rua vivesse a vida real. Para ela, estar dentro de um shopping era como estar num universo paralelo, virtual – onde todas as cidades de todos os países do mundo são iguais. E mesmo aqueles a céu aberto, que pretendiam parecer quarteirões de verdade, lhe pareciam semelhantes a cenários de televisão.

Pensou em comprar uma das malhas que estavam na vitrine, aquela blusa marinho, de gola rolê, muito parecida com uma que tivera nos anos 70. Mas acabou desistindo. Tinha uma preguiça horrível de comprar roupa. Melhor seria sentar-se em frente à praça, logo ali ao lado, para tomar um café. Foi.

Sentou-se numa das mesinhas de ferro do lado de fora e pediu café com creme, uma extravagância que raramente se permitia. A garçonete trouxe e ela bebeu bem devagar, olhando para as folhas filigranadas das árvores da praça. Alguns galhos já estavam ralos e havia folhas amareladas espalhadas pelo chão. Poucas, é verdade. Mas isso não tinha importância. Com a tarde quase terminando, as árvores estavam banhadas por um sol fraco, enviezado, que mais parecia um sol europeu. Finalmente, parece que o outono chegou, convenceu-se.

Depois do café, a mulher decidiu ir caminhando para casa, para aproveitar a brisa da noite que começava a cair. Ao fim da caminhada, quando atravessou o canal – com passos rápidos, pois ali era perigoso à noite – sentiu o vento do mar chegando e chegou a ter um arrepio de frio. Achou ótimo. Ah, era o outono, sem dúvida.

Chegou em casa e ainda espiou da janela, para ver os últimos sinais de luz no céu, acima dos telhados, a luminosidade agonizante do crepúsculo, com seus matizes lilases. Mas depois virou-se e deu com a própria imagem no espelho sobre a cômoda, ao lado do abajur, que acendera ao entrar. E aproximou-se.

Olhou a própria imagem, detidamente, debruçando-se sobre o móvel embaixo do espelho para se ver melhor. E tocou com a ponta dos dedos os cantos dos olhos, onde, mesmo à meia-luz, as rugas já eram visíveis. E pensou, com um suspiro: finalmente parece que o outono chegou.

 

 

Um pombo

(29/04/2001)

            Eu ia passando junto ao chafariz da praça quando o vi. Um pombo. Ou melhor, o cadáver de um pombo. Sobre a pedra central do chafariz, seu pequeno corpo jazia emborcado, a penugem branca contrastando com o cinza escuro do granito. E, por artes do vento, um penacho se erguera em sua nuca e tremulava – como um gesto de adeus.

Parei e fiquei olhando.

Vou confessar uma coisa: eu não gosto de pombos. Mas aquele pombo morto me comoveu. Quando digo que não gosto de pombos, quero dizer apenas que eles não me atraem, não me encantam. Não quero dizer que os odeio – embora saiba de gente que odeia pombos. E tenho enorme dificuldade em aceitar as pessoas que o fazem.

Na verdade, amo os animais desde muito pequena e me lembro bem da sensação horrível que sentia quando, nos verões que passávamos no sítio, meu irmão saía para caçar na mata e voltava com uma fieira de rolinhas mortas. Eu corria de olhos fechados, tentando não ver seus pequenos cadáveres ensangüentados, que meu irmão, com seu sadismo infantil, brandia para mim. E ficava escondida, por um longo tempo, esperando que ele se esquecesse do assunto. Geralmente, nesse meio tempo, meu irmão pedia à caseira que acendesse um fogo no quintal e ali assava os animais, já depenados e temperados. Eu, que continuava escondida, de repente sentia aquele cheirinho delicioso de passarinho assado – que é muito melhor do que o cheiro de qualquer ave de maior porte. E, enxugando as lágrimas, saía do esconderijo. Ia chegando para perto da fogueira e acabava aceitando um pedacinho da iguaria. Ainda com uma lágrima furtiva equilibrada no canto do olho, comia os passarinhos assados e lambia os beiços, pensando: que pelo menos a morte deles não tenha sido em vão.

Fazia isso sem culpa. Assim como, igualmente sem culpa, sempre adorei pescar. Pescávamos muito, em geral siris, no canal da Barra, sempre com meu pai e durante os meses sem “r” no nome. Mas ver um animalzinho sofrendo é diferente. Isso sempre foi intolerável para mim. Lembro que quando aprendi a dirigir, andava pela estrada morrendo de medo de ver um cão ou um gato atropelado. Aquilo estragava o resto do meu dia.

Tudo isso eu pensei enquanto ali, parada no meio da praça, olhava para o pombo morto. E, repito, mesmo sendo um pombo, eu me comovi. Ou talvez justamente porque fosse um pombo – e ainda por cima branco –, o velho e batido símbolo da paz. Essa paz de que o Rio anda tanto precisando.

 

 

A neve do tempo

(06/05/2001)

 

O homem tirou os olhos do jornal e, erguendo o rosto, olhou através da porta de vidro que dava para a varanda. Ali estava ela. Sua mulher. Com o sol da manhã, que batia no chão de mármore e fazia arder os olhos, ele via apenas a silhueta contra a luz. Ela molhava as plantas.

Durante um longo tempo, ficou observando-a.

Mas só quando ela caminhou para a extremidade da varanda, onde ainda havia sombra, foi que ele pôde olhá-la melhor. Tinham ambos acordado tarde, naquela manhã de domingo. Fazia calor e ela vestia ainda a camisola de algodão fino, quase transparente, com que dormira. Através do vidro que separava a sala da varanda, ele a viu estender os braços para tirar os galhos secos de uma planta com folhas em forma de coração. Aqueles braços, antes bem feitos, eram agora descarnados. As mãos – de onde estava, ele podia ver bem – traziam veias no dorso, espraiando-se como rios. No pescoço, a pele sem viço formava dobras em alguns pontos. E os cabelos eram brancos, completamente brancos.

Os olhos do homem saltaram da mulher para o horizonte, onde as montanhas, já banhadas pelo sol, estavam tão nítidas que era possível discernir cada árvore da mata. Depois, voltaram para ela, que agora se punha na ponta dos pés para regar a planta. A marca do tempo estava em cada gesto. Sua mulher envelhecera. Ao contrário das montanhas que, imutáveis, enchiam o horizonte desde que eles se tinham casado, mais de quarenta anos antes.

Enquanto o homem observava, vieram-lhe à mente os versos de uma velha canção, que falava da neve do tempo nos cabelos de uma mulher.

De repente, como se percebesse que estava sendo observada, a mulher virou-se. E sorriu para ele. O mesmo sorriso de sempre. Seu rosto, ainda que envelhecido, se iluminava ao sorrir, ganhando uma beleza extraordinária. E os olhos, inquietos, guardavam a vivacidade de outros tempos.

E ele sorriu de volta, pensando em como ainda a amava, tantos anos depois. A vida deles tinha sido assim uma vidinha tola, sem grandes emoções. Nada de muito bombástico acontecera naquelas quatro décadas juntos. Mas e daí?

Era isso. Era só isso – uma história, mais nada. Sem metáforas, sem figuras de linguagem, sem surpresas no final. Uma história comum. Até um pouco piegas, talvez.

Mas não tinha importância. Era uma história de amor.

 

 

A melhor vingança

(13/05/2001)

 

Ela acordou inquieta.

Tinha sonhado com ele – e fazia tempo que isso não acontecia. Fora a princípio um sonho banal, confuso, sem muito significado. Nem conseguia se lembrar direito. Sabia apenas que estavam num porto e que ele ia embarcar num navio, mas nada fazia muito sentido, nada era muito marcante. Ao contrário de outros sonhos que ela costumava ter, aquele fora um sonho sem cor e sem cheiro. Mas, de repente, no momento da despedida, ele a abraçava e tudo se transformava. No instante do abraço, o sonho crescia, ganhava substância. O mundo inteiro suspendia seus murmúrios, sua respiração, e o tempo se congelava no martelar daqueles dois corações, um contra o outro. Era uma sensação tão forte, avassaladora, que ela subitamente percebia – mesmo em sonho – o quanto a presença dele ainda latejava em silêncio, oculta em alguma região abissal de sua alma.

E foi por isso – por causa do abraço sonhado – que ela acordou inquieta.

Levantou-se. Era cedo ainda e o apartamento estava silencioso. Descalça, vestindo ainda a camisola de seda, subiu a escada em caracol em direção ao terraço, sem saber bem por que o fazia. Sabia apenas que precisava sentir o sol, respirar o ar exterior, sacudir do corpo as sensações da noite – do sonho – que lhe tinham ficado impregnadas na pele.

Seus pés pisaram as lajotas de pedra, já mornas naquela manhã que prometia ser quente. E, dando mais alguns passos, quase como uma sonâmbula, ela mergulhou na piscina.

Mergulhou e nadou, sentindo o peso da seda colada ao corpo, como uma pele a mais. Para seu corpo, que acabara de sair da cama, a água estava um pouco fria. Mas era bom assim. precisava estar bem desperta, precisava de água e sol e vento, precisava de tudo o que não fosse noite, para ver se arrancava de si o abraço anacrônico, absurdo, que teimava em continuar lhe mordendo o peito.

Foi só depois de um longo tempo
que parou, apoiando os braços na borda, e olhou em torno. Era lindo, seu terraço. A parede de pedra onde vicejavam bromélias, as lajotas, de matizes cor-de-rosa, que cintilavam no sol da manhã. As poltronas de vime branco, o azul da piscina, cuja linha d’água quase se confundia com o chão.

Suspirou, sentindo contra a parede de ladrilhos o martelar do próprio coração.

Sim, ele ainda estava ali, dentro dela. Mas a dor não mais. A dor se fora.

E viver bem era sua melhor vingança.

 

Ressaca

(20/05/2001)

 

Meio escondida atrás do quiosque fechado, a mulher espiou. Para além da murada, o mar, de um verde-acinzentado, estava quase inofensivo. É verdade que engolira a areia do Leblon, ou pelo menos boa parte dela. Verdade também que sua borda de espuma era excepcionalmente larga, rendada de vagas de um tamanho fora do comum, que se chocavam umas com as outras. Mas dali, do alto do mirante, sua fúria era estática, como numa fotografia. E por um instante – um instante, apenas – a paisagem parecia serenada.

A mulher deu alguns passos à frente, quase debruçando-se na fita amarela que impedia a passagem para o deque de madeira, cuja estrutura vinha sendo abalada pelas ondas. E pôs-se na ponta dos pés, tentando espiar as pedras lá embaixo. O vento frio ainda lhe cortava o rosto, como quando ela saíra do carro, mas também parecia amainado.

Ergueu os olhos, voltando a admirar a paisagem. A bruma formada pelas gotículas de água salgada envolvia os prédios e os morros, formando um mundo de cores esmaecidas, adoentadas. E o instante de refluxo, em que o mar parecia preparar-se em silêncio para uma nova investida, continuava – hipnotizando-a. Era como estar no olho do furacão, sabendo que a qualquer momento a fúria voltaria. Ainda pior.

E voltou.

Ela não sentiu a onda chegar. Nem sequer uma trepidação. Foi algo surpreendente, inexplicável. Era cedo, ainda, e a mulher estava só – não havia ninguém para gritar, dizer-lhe que corresse. Não, não houve qualquer aviso. Ou talvez tudo tenha acontecido rápido demais.

De repente, descendo do céu – como um raio ou um castigo – caiu sobre ela a massa d’água. Compacta e encorpada, envolveu-a de um só jato, molhando-a por inteiro, mas molhando-a de verdade, não respingos ou borrifos, mas uma água quase sólida, que a deixou instantaneamente ensopada, roupas, cabelos, toda ela, da cabeça aos pés.

Deu um grito. Encolheu os ombros, ergueu os braços, tentou defender-se tardiamente daquela água que bateu nela como chicotada. Por um segundo, mal compreendendo o que se passava, ficou no mesmo lugar, os pés presos ao chão, sentindo que até mesmo suas meias, dentro do tênis, estavam molhadas de torcer.

Somente quando eu um passo atrás, baixando a vista e olhando-se, foi que pareceu despertar. E caiu na risada. Uma risada sonora, desabrida, que preencheu o mirante vazio, rivalizando com o rugido do mar. Uma risada de alívio, uma explosão.

Aquela pancada a fizera sentir-se viva outra vez. A beleza das ondas corria em suas veias e seu corpo fora ungido pela força da natureza.

Não queria mais pensar na morte.

 

Pássaros do Islã

(27/05/2001)

 

A fotografia ocupava meia página da revista. Era uma foto em preto e branco, de extrema beleza plástica, realçada pelo papel brilhante, de boa qualidade. Mas alguma coisa naquela imagem me chamou a atenção, embora a princípio eu não entendesse o quê. A foto mostrava uma praia de águas calmas, desaparecendo rumo ao horizonte sem ilhas, um horizonte que quase fazia adivinhar a curvatura da terra. Na areia, uma areia dura, recém-lavada pelas águas, havia um bando de pássaros. Eram muitos, uns cinqüenta talvez, pontilhando o chão com suas silhuetas negras. Era só isso, a foto. Por que, então, me inquietava?

Franzi o rosto, olhando melhor. Botei os óculos (minha vista começa a falhar). E então percebi, com espanto, que não eram pássaros – mas mulheres.

Mulheres islâmicas, com suas vestes negras, passeando numa praia deserta. Com as cabeças cobertas pelo mesmo manto que escondia seus corpos, em tecido preto, elas eram a imitação perfeita de um bando de pássaros. Havia vento, naquela praia, e as vestes de algumas esvoaçavam, lembrando o movimento de asas. Era impressionante a semelhança. Apenas apurando bem a vista, era possível ver que havia pés – e não garras – tocando a areia. Pés descalços.

Nesse instante, eu pensei na mulher apedrejada. Tinha lido sobre ela no jornal, um ou dois dias antes. Uma atriz de filme pornô, de 35 anos, condenada e executada no Irã. Segundo as leis locais, fora enterrada num buraco e deixada apenas com os braços, os ombros e a cabeça de fora, sendo apedrejada até a morte. Tentei imaginar sua dor, seu suplício, o desespero de lutar até o fim tentando se libertar. Isso porque, pela lei islâmica, o condenado que consegue se desenterrar, é perdoado. Por isso os braços são deixados de fora. Mas ela, a mulher condenada, não conseguiu.

Tornei a olhar a foto na revista, a observar aquelas mulheres. Algumas, talvez as mais afoitas, já pisavam a parte mais dura e brilhante da praia, onde uma fina camada de água empapava o chão. Pareciam querer entrar no mar. Outras, atrás, estavam mais contemplativas. Mas havia, em todas aquelas mulheres envoltas em seus mantos negros esvoaçantes, uma chispa de liberdade.

Só então dei uma olhada na legenda e vi que não era uma foto, mas a cena de um vídeo, feito por uma iraniana que vive em Nova York, Shirin Neshat. Um vídeo chamado “Rapture”, que quer dizer êxtase, mas também rapto. Esse título confirmava minha impressão. Aquelas mulheres, aprisionadas em suas vestes, presas a todo tipo de grilhões, viviam, ali, naquela hora, um momento – ainda que breve – de libertação, de ruptura. Pairavam acima da opressão e do terror. Por um instante, voavam.

 

 

O rosto

(03/06/2001)

 

Foi um rosto, apenas. Um rosto que se estampou diante dos meus olhos. Um rosto de mulher, de traços grosseiros, pele macilenta e lábios entreabertos num sorriso de escárnio, que deixava vislumbrar os dentes mal-arrumados. Em seguida, o sorriso, antes apenas insinuado, abriu-se mais, escancarou-se, e eu vi com horror que os caninos traziam em sua forma pontiaguda uma sugestão do sobrenatural.

Num segundo, a imagem se desvaneceu. Mas não, eu não sonhava. Ao contrário, estava bem desperta. Completamente desperta. Só não tenho certeza se no momento da visão tinha os olhos abertos ou fechados, mas estou certa de que não dormia. Não, isso de forma alguma. A imagem intrusa surgira diante de meus olhos com força e nitidez inexplicáveis, sem qualquer razão. Surgira, simplesmente. Como um aviso.

Mas não sou uma pessoa impressionável. Dando de ombros, continuei a fazer o que fazia antes – e que já não lembro o que era. As horas se passaram e quase não pensei mais no assunto. Digo ‘quase’ porque, a bem da verdade, devo confessar que, de vez em quando, um fragmento da imagem daquele rosto se acendia em meu cérebro, fazendo-me estremecer.

Tudo isso aconteceu ao longo do dia, um dia ensolarado e quente, sem qualquer presságio de assombro. Mas, logo, anoiteceu. E, com a noite, vi crescer dentro de mim uma agonia, uma necessidade de sair. Eu, que quase não vou à rua à noite. Eu, que sempre prefiro ficar em casa com meus gatos e meus livros. Mas dessa vez não tinha vontade de ler. Quanto aos gatos, também pareciam inquietos, esquivos, como se pressentissem algo.

Fiquei andando de um lado para o outro, os olhos fixos na janela. Não me importava com o escuro que aos poucos ia envolvendo tudo. Só depois de muito tempo fui acender o abajur. A lâmpada de 40 velas – sinal dos tempos – banhou a sala com sua luz amarelada, mas meus olhos continuavam perscrutando a noite lá fora.

Afinal, cedendo ao impulso, caminhei até a janela e olhei, tentando talvez entender de onde vinha o estranho chamado. E vi que era noite de lua cheia. Que tremendo clichê!, pensei. E caí na risada.

Mas nesse instante meus olhos pousaram no espelho, do outro lado da sala – e meu coração parou de bater. Iluminado pela luz mortiça do abajur, lá estava, um rosto de mulher. Um rosto de traços grosseiros, de lábios abertos num sorriso de escárnio. Um sorriso sobrenatural, prenúncio de sangue e morte. E só então compreendi a premência de sair na noite, a estranha sede que me tomava.

Aquele rosto era o meu.

 

 

Um vendaval

(10/06/2001)

 

O velho ia caminhando, encurvado, como se batido pelo vento – mas não havia vento, ainda. Havia, ao contrário, uma grande quietude na calçada da Avenida Atlântica àquela hora. Quietude do mar, que se espraiava em silêncio sobre a areia. Quietude do ar, que pairava pesado no fim de tarde. Quietude das pessoas passando mudas, como se esperassem a tempestade que – todos sabiam – cairia a qualquer momento.

Já quase anoitecia, mas o velho estava de óculos escuros, que usava para esconder os olhos cegos. Vestia uma roupa alinhada, perfeitamente limpa e passada, sapatos lustrados com afinco, e trazia no braço direito uma pulseira de ouro. Era também o braço direito que segurava a bengala, o castão envolto com firmeza na mão fechada, com dedos formando grossos nós.

Era curioso que saísse só, e tão tarde, e numa tarde com promessa de chuva. Mas ele nem parecia importar-se. Na verdade, nem parecia cego, tal a desenvoltura com que se movimentava, agitando a bengala de um lado a outro, a farejar o caminho. Ninguém o vira atravessar a rua, mas, uma vez na calçada, andava muito à vontade, como se não temesse nada. E havia em seu rosto uma expressão de tamanha felicidade que, não fosse pela curvatura das costas, dir-se-ia que a qualquer instante ele começaria a dançar.

Mas de repente parou.

E por um instante permaneceu imóvel, as costas agora quase eretas, o cenho franzido, as narinas em alerta. Quem o visse de longe poderia pensar que estava assustado, que fora talvez atingido por uma lufada de vento, primeiro sinal da ventania que se anunciava. Mas não. Os primeiros sopros do vento ainda rugiam sobre o mar, muito além da curva protetora de Copacabana. O que fora, então? O que o fizera parar assim, como se fulminado?

Era, na verdade, um vendaval. Um vendaval sem vento, aquilo que o atingira. Uma lufada poderosa, que o fizera estancar os gestos, o coração batendo como louco, a garganta apertada.

Seus olhos adormecidos nem viam a mulher jovem, de pernas longas e porte esguio, que estava parada a poucos metros dele, olhando a praia. Ele jamais viria a saber quem ela era, nem por que estava ali. Tampouco saberia a razão de seu olhar perdido, da mão que segurava com força a lata de cerveja. Mas de uma coisa o velho sabia: ali estava o vendaval. Porque, fosse quem fosse, a moça usava um perfume. O mesmo perfume da mulher que ele amara um dia – muito tempo atrás.

 

Livros

(17/06/2001)

Li certa vez que Alma Mahler guardava, na sala de sua casa, o berço em que dormira na primeira infância. Era um berço antigo de madeira, tosco, desses com um dispositivo que os faz balançar docemente, ao menor toque. Ali, no bojo vazio daquela que um dia fora sua própria cama, Alma guardava seus livros prediletos.

Arrumava-os, empilhados, em várias camadas, enchendo todo o espaço onde um dia houvera um colchão, lençóis, brinquedos e uma criança – ela própria. Certamente, quando remexia nos livros, buscando algum em especial, um livro para enternecer-se, para recordar ou esquecer – que é para isso que serve reler livros prediletos –, certamente, então, seu braço, esbarrando na lateral gradeada, fazia o berço balançar. E ela os ninava, talvez sem perceber.

Essa imagem de livros queridos sendo acalentados me encheu de ternura. Assim como um dia me comoveu ler o depoimento de Isak Dinesen, falando sobre a ansiedade que sentia, em sua fazenda na África, enquanto aguardava a chegada dos livros encomendados na Inglaterra. E de como, ao recebê-los, tocava cada volume com a ponta dos dedos, como se retirasse da caixa copos de finíssimo cristal. Sabia, ao tocá-los, que aqueles seriam seus únicos exemplares durante meses, até que chegasse nova remessa. Eram um tesouro insubstituível.

“Por isso, eu torcia para que os escritores tivessem dado tudo de si ao escrevê-los”, explicou. É curioso. Porque ela própria, Isak Dinesen, escrevia assim, sem economizar, sem fazer concessões, pegando cada camada da narrativa e dissecando-a até o último fio. Escrevia dando tudo de si, entregando-se em cada linha – como se esperasse ser lida por um náufrago numa ilha deserta.

Esse amor pelos livros me comove, um amor que venho aprendendo a desenvolver, nos últimos anos. Antes, guardava meus livros de qualquer jeito, sem qualquer ordem nas estantes. E, ao lê-los, pouco me importava se os abria demais, se os virava ao contrário, se deixava a ponta da capa se enrolar numa feia orelha.

Estou mudando. Hoje, presto atenção nas pessoas que sabem cuidar bem de suas bibliotecas e observo a maneira como decidem a posição de cada volume nas estantes, o carinho com que tiram os mais antigos das prateleiras para tentar restaurar as lombadas, alisando-as cuidadosamente com goma e pincel. São gestos de uma delicadeza comovente, cuja observação me faz refletir. E, cada vez mais, tenho diante dos livros uma atitude de reverência. Olho-os e vejo como eles são puros, íntegros – como as crianças e os cristais.

Na estrada

(24/06/2001)

 

Tinha ido passar o fim de semana sozinha no sítio de uma amiga. Ela, mulher sempre cercada de gente, de casa ruidosa, com três filhos e dois netos sempre por perto, decidira ficar um pouco só. Perigo, não havia. A casa tinha um casal de caseiros muito prestativos, que moravam nos fundos. Qualquer coisa, só precisaria chamar.

E lá se fora. O lugar era deslumbrante, o dia estava lindo. E, ao chegar, ela decidira logo fazer aquilo de que mais gostava: dar uma caminhada. Pegou a estrada de terra que enveredava pela mata à esquerda da casa e seguiu por ali, com passos firmes. Logo após a primeira curva, reparou que o chão de barro estava cheio de poças, restos de chuva da véspera, mas mesmo assim foi em frente, driblando a lama, pois a caseira lhe dissera que aquela estradinha levava à região mais bonita das redondezas. Em pouco tempo, a mata se fechava sobre o caminho, de um lado e outro, sombreando o barro úmido que ela esmagava com os pés. As touceiras de bambu, muito densas, vergavam-se ao sopro do vento que agitava a manhã e, nas bordas do caminho, a cobertura compacta de marias-sem-vergonha respirava umidade. Era uma beleza de estrada. Uma deliciosa sensação de solidão. Tudo o que ela queria. E respirou fundo, satisfeita.

Já caminhava há mais de meia hora quando, ao contornar uma curva, num ponto em que a estrada se estreitava ainda mais, viu, alguns metros adiante, parado no meio da estrada com os olhos fixos nela, um cachorro. Não teve medo. Sempre gostara de cães. Mas deparar-se com um animal desconhecido, solto e sem dono, num lugar assim, longe detudo, era diferente. Precisava tomar cuidado. Por isso, manteve o passo firme, mas colou os olhos no chão, evitando encarar o animal, como alguém lhe ensinara a fazer quando criança. O animal não se moveu quando a mulher passou por ele. Mas, mal ela se distanciara uns metros, ouviu, no silêncio quase intolerável da mata, o som dos passos do cachorro contra o chão molhado. Estava vindo atrás dela. Ainda dessa vez, não teve medo. Apenas manteve-se em alerta. Era normal que o animal a seguisse. Evitaria olhar para trás, para não encará-lo, e seguiria normalmente seu caminho. Durante mais uns dez, quinze minutos, foi o que fez. Só quando começou a ofegar foi que concluiu que era hora de voltar. E, diminuindo o passo para fazer a volta, procurou dar aos movimentos a maior naturalidade possível, de forma a não assustar o cachorro, cujos passos continuava ouvindo atrás de si, com toda a nitidez.

Virou-se.

Estava sozinha na estrada. Voltou alguns passos, os olhos baixos, fixos nas marcas de seu tênis desenhadas no caminho. E viu que não havia patas de animal no barro. O cão não deixara pegadas.

 

 Estrela-do-mar

(01/07/2001)

 

Olharam-se. Foi um olhar material, como se os raios invisíveis emitidos por cada um se misturassem no ar, fundindo-se, encorpando-se, tornando-se palpáveis. E ao olhar mútuo seguiu-se o sorriso, também de parte a parte. Começou assim. Estavam ambos num país desconhecido, num universo distante de suas vidas, por motivos diferentes, que não tinham qualquer importância. O olhar foi mútuo, mas foi ela quem se aproximou. Era talvez mais atirada do que ele. E o olhar e o sorriso se transformaram em palavras. Estavam à porta de um ônibus de excursão, cercado de uma algaravia de diversas línguas, e aquela massa de sons estranhos se fechou em torno deles como se os abraçasse, indulgência plena que lhes era anunciada. Sabiam que aquele era um território neutro, onde tudo poderia acontecer.

Na praça, o cheiro de iguarias exóticas impregnava o ar. Mulheres de turbantes coloridos conversavam num dialeto desconhecido, com estalares de língua que pareciam falar de sabores, gostos. Eles acharam graça naquilo. Só eles, ninguém mais. Sorriram. Em torno, as construções tinham em suas paredes o tom ocre do deserto, e as janelas em arco deixavam entrever pedaços de vidas, histórias, na penumbra das casas. A praça fervilhava de gente e, em meio aos temperos e hortaliças, vendiam-se também bugigangas, antiguidades, pratarias, panelas. Aquele universo caótico os convidava. Misturados à multidão, deixaram-se arrastar pela torrente de sons, cores, formas, distanciando-se do grupo.

Tocaram-se. Suas mãos amoldaram-se uma à outra, dedos, pele, palma que pareciam fundir-se como haviam feito pouco antes seus olhares. Aquelas mãos tinham uma história própria, uma historia sábia, antiga, independente deles. Não se largaram mais. Entrelaçadas, as mãos levaram-nos a passear pela feira, pela praça, pelas ruelas em torno. Entrelaçadas, conduziram-nos de volta ao ônibus, de onde saltariam depois. Naturalmente juntas, levaram-nos através da porta do hotel e escadas acima – para o quarto. Amaram-se.

Amaram-se sabendo – tinham perfeita consciência disso, o tempo todo – sabendo que seu amor estava circunscrito àquela hora e àquele lugar, que uma vez cessado o momento seria impossível tentar revivê-lo.

Sabiam. Tentar seria um erro. Fora dali, aquele amor seria uma estrela-do-mar, que brilha como prata contra a areia do fundo, mas que, retirada da água, perde o viço, a cor, o brilho – morre em nossas mãos.

 

A formiguinha

(08/07/2001)

 

A mulher estava caminhando pelo jardim quando, ao dar um passo para subir uma pequena escada de pedra, viu a formiga.

Imediatamente, parou. Ela, que gostava de caminhar de vista baixa, olhando para o chão, percebia muitas coisas que outras pessoas não viam. As amigas brigavam, sempre. Diziam que era feio andar assim, olhando para baixo, que era deselegante, dava um ar de derrota e – o pior de tudo – aumentava as rugas do pescoço. Mas ela não ligava.

Quando caminhava na praia ou em volta da Lagoa, nos dias de semana, divertia-se observando os pares de tênis que passavam para lá e para cá, as pedras portuguesas, as marcas no asfalto. Certa vez, ao sair de manhã depois da chuva, parada à espera da abertura de um sinal, deparara-se de repente com uma imagem que era como um quadro: a tampa de um bueiro, onde a água empoçada faiscava, trazia, como uma legenda, a frase “Força e luz”. Eram essas as pequenas delícias de andar de vista baixa, que a ajudavam a suportar as pressões do cotidiano.

Mas o que ela mais gostava era de fazer isso no jardim do sítio. Via universos inteiros, ali. Observava as ranhuras das pedras, os pequenos tufos de vegetação que cresciam entre as frestas, como jardins minimalistas. Cada raminho de erva daninha, crescendo em meio à grama, era para ela um bonsai. Adorava apreciar aqueles objetos e criaturas, que lhe pareciam tão distantes da vida real, imersos num mundo feito de solidão e silêncio. Sentia-se transportada para outra dimensão.

E, agora, deparava-se com aquela formiga.

Não era um inseto qualquer. Embora seja sabido que as formigas são capazes de suportar pesos imensos, aquela era sem dúvida muito especial, pois levava nas costas uma folha de grama que se estendia em arco para muito além de seu corpo, como um penacho gigantesco. Era incrível, era quase impossível. A folha de grama, quase dez vezes maior do que a formiga, balançava a todo instante como se fosse cair, mas o inseto seguia com a maior bravura, levando nas costas seu estandarte improvável.

A mulher agachou-se para observar melhor. Durante muito tempo, acompanhou a luta da formiguinha, seu lento avançar pelo degrau de pedra. Nada parecia capaz de detê-la.

E a mulher suspirou, pensando em si própria. Também se sentia às vezes assim, carregando às costas um imenso fardo, muito maior do que ela. Sentia-se pressionada, cobrada, excessivamente necessária, como se fosse o centro, o eixo, a âncora, para tudo e todos à sua volta. O marido, os filhos, os pais, a casa, o trabalho, tudo. Para as mulheres de sua geração, a luta pela libertação resultara em novas responsabilidades, novos compromissos, que não substituíram os antigos, mas somaram-se a eles, criando jornadas duplas, triplas. O que fazer? A vida é assim mesmo, pensou. E sorriu, solidária, para a formiguinha. Eram da mesma raça.

Olhos azuis

(15/07/2001)

 

Foi uma maldade horrível, esta de filho enganar o pai. Uma maldade que não se faz. O filho, um sujeito magro, de olhos de águia e nariz adunco, trazia no rosto e no corpo a marca da maldade. Nunca me enganou. Sabia-o capaz de pequenas desfeitas, de desvios mesquinhos. Mas não pensei que chegasse aonde chegou.

Ainda mais tendo um pai assim. O pai era, acima de tudo, um homem bom. A doçura em pessoa. Descendente de italianos, tinha o rosto avermelhado e enrugado pelas muitas horas passadas ao sol, com a enxada nas mãos. E, nesse rosto carmim, brilhavam dois olhos azuis, infantis, refletindo a transparência daquela alma. Era um homem puro. Limpo, em toda a sua rudeza. Porque, sem dúvida, era rude. Ignorante, nunca soube ler – letras e números eram para ele desenhos sem qualquer sentido. E foi justamente dessa ignorância que o filho se aproveitou.

O pai, tendo trabalhado durante anos capinando os quintais, podando árvores e varrendo folhas secas, conseguira juntar algumas economias, parcas, e com elas comprara um pequeno terreno, no qual pretendia construir uma casa para morar, quando se aposentasse. Mas foi aí que o filho entrou em cena. Conhecendo a ignorância do pai, apresentou-lhe um papel cheio de estranhas letras e números, e convenceu o velho a colocar nele a marca de seu polegar. O pai obedeceu, sem entender bem do que se tratava.

Era uma procuração passando o terreno para o filho. Quando o velho descobriu, era tarde. O filho vendera o terreno e desaparecera.

Daquele dia em diante, tudo aconteceu muito rápido. Por mais que a mãe tentasse arrumar desculpas para o filho – dizendo que ele devia estar precisando muito de dinheiro e que um dia voltaria para devolver tudo ao pai –, o velho se trancou numa mudez incomum, afogada em amargura. Nunca disse uma palavra contra o filho, mas seu silêncio era prova eloqüente de que ele sabia muito bem a verdade.

E foi assim que, com uma rapidez espantosa, seus olhos azuis foram ficando mais e mais embaçados, sem luz. Olhava as pessoas como se não as visse. Continuou a varrer as folhas secas, mecanicamente, mas já não podava as árvores, já não plantava nada, como se seus braços, cada vez mais sem força, estivessem destinados apenas a recolher os restos da natureza morta.

Um dia, desapareceu. Acordou cedo e saiu pela porta, caminhando a esmo pela estrada. A mulher só foi encontrá-lo quando a tarde já ia alta e, mesmo assim, por causa da ajuda de um morador das redondezas, que reconheceu o velho. Foi levado de volta para casa, sem reagir, o olhar perdido no vazio. Daquele dia em diante, nunca mais falou. E embora o médico dissesse que ele sofria de uma doença de nome complicado, comum na velhice, a mulher sabia muito bem qual era o seu mal. Estava escrito no olhar. Porque o azul daqueles olhos – agora de um tom frio, pétreo – fora solidificado pela mágoa.

 

Ruído

(22/07/2001)

 

Eu estava parada no sinal quando ouvi um ruído atrás de mim. Com os vidros fechados, não podia ter certeza, mas me parecia um tumulto, uma briga. Alguém xingando, falando alto, com grande irritação. Notei que, em volta, as pessoas nos outros carros ficaram imediatamente inquietas, olhando para um lado e para o outro em estado de alerta. Uma briga é sempre algo perigoso. Alguém pode se irritar, alguém pode perder a cabeça. E alguém pode ter uma arma.

Examinei minha situação. Havia um carro na minha frente e eu não teria como arrancar, nem que quisesse. Estava presa. Mas não sou de entrar em pânico. Olhei para trás, para os lados, para uma calçada e outra, imitando as pessoas nos carros em torno de mim, buscando a origem daquele som agressivo. Mas não via sinal de briga. Enquanto isso, os gritos continuavam, furiosos. E o sinal não abria.

Intrigada, decidi baixar o vidro, para tentar escutar melhor o que diziam. Queria saber logo o que era, acabar com aquela incerteza. E então, com o vidro aberto, pude afinal entender: num carro atrás do meu, um poderoso aparelho de som tocava música funk. Não havia briga alguma. Era música.

Música? Tornei a fechar o vidro e, dando de ombros, aumentei o volume do meu próprio som. Tudo bem, cada um ouve o que quer. O problema com certo tipo de música é que aqueles que gostam de ouvi-la fazem questão de dividir seu prazer com todo mundo. Hoje os sons são assim: propagados aos quatro ventos, para quem quer – e quem não quer – ouvir.

Lembro de que quando era criança eu adorava uma festa junina. Pois outro dia, estando à tarde em casa numa sexta-feira, e tendo um trabalho para entregar, quase fui à loucura com a gritaria de uma quadrilha que ensaiava numa escola em frente. Ora, festa junina e quadrilha sempre houve. O que não havia era um potente sistema de som para amplificar os “anarriês” por um raio de dezenas de metros.

Hoje, uma simples festa de criança, num playground, é capaz de fazer estremecer um quarteirão inteiro. E isso para não falar dos pequenos infernos nossos de cada dia, como o caminhão da pamonha, o carro do pão, o homem das verduras, a propaganda ambulante do pagode, todos com seus equipamentos potentes. Este é o problema. O Rio sempre teve uma tradição de mercadores e isso é maravilhoso. Mas a amplificação torna tudo invasivo, quase uma agressão.

Um amigo meu diz que a invenção do alto-falante foi um erro. Acho que ele está certo.

 

Sempre noite

(29/07/2001)

 

Numa esquina da minha rua, já junto à praia, há um prédio que me intriga, há anos. É uma construção escura, toda forrada de vidros negros, que se ergue, com seus cinco ou seis andares, imponente e fria. Nunca, em tantos anos que passo por ali, vi alguém sair daquele prédio ou entrar nele. Nunca, nas vezes incontáveis em que ergui os olhos para observar-lhe a fachada escura, pude discernir um ser humano em suas janelas. Jamais. Todas as vezes em que avisto o prédio, penso num navio-fantasma.

Já tentei aproximar-me e, da calçada, observar a portaria, sempre à procura de alguém, de um sinal de vida que me convença ser aquele apenas um prédio comum, e não a construção assombrada que imagino. Mas também os vidros da portaria são escuros, provavelmente blindados e, por mais que eu me esforce, nada consigo ver, nenhum porteiro ou zelador, nenhum sinal de vida que pudesse me apaziguar.

Apenas uma única vez, há muito tempo, vi a porta da garagem se abrir, num breve lapso. Mas, de dentro dela, não saiu uma pessoa. Ou, se saiu, mais uma vez não pude vê-la. O que vi foi apenas um carro enorme, semelhante a um jipe, de rodas imensas como as de um trator – e todo negro. Seus vidros, igualmente escuros, me impediam de ver se havia de fato alguém ali dentro. O carro desprendeu-se do prédio como um filhote, uma bolha, mas, sendo igualmente escuro e inexpugnável, pareceu-me também assombrado e inumano. E foi só.

Anos se passaram depois disso, sem que eu voltasse a ver qualquer movimento no edifício.

Até que, outro dia, caminhando pela calçada do outro lado da rua, vi um carro aproximar-se e estacionar diante dele. Era um carro comum, importado, é verdade, mas de pequeno porte, e sua cor, vermelha, por si só já contrastava com o prédio. Isso me fez parar. Fiquei prestando atenção. Será que afinal eu veria alguém de carne e osso? Alguém como todos nós, que caminharia e entraria no edifício? Esperei. E, um instante depois, surgiu de dentro do automóvel um rapaz muito jovem, com cabelos louros que esvoaçaram quando ele andou apressado, em direção à portaria. Ia entrar.

Quem seria? Um amigo de algum morador, talvez. Ou talvez um filho caçula, para o qual não restou vaga na garagem. Podia ser. Fosse quem fosse, ao vê-lo caminhar fui envolvida por um sentimento de apreensão pelo rapaz. Se ele entrasse, talvez desaparecesse para sempre, como os outros. Afinal, era alguém que ainda não perdera o contato com a realidade, alguém – o único ali – que não se contaminara pelo isolamento e pelo medo, que ainda não se trancara completamente naquela fortaleza escura. Mas até quando?

E, com tristeza, vi o rapaz atravessar a nesga de porta que se abriu no vidro negro da portaria. No segundo seguinte, ele desapareceu, tragado pelo prédio onde não existe a dimensão humana. E onde é sempre noite.

 

Será?

(05/08/2001)

A mulher caminhava sempre pelo calçadão de Ipanema, todas as manhãs. Gostava de acordar bem cedo, antes das 7h, e sair pelas ruas transversais, sentindo ainda a umidade da noite transpirar das árvores. Quando chegava ao quarteirão mais próximo da praia, deliciava-se em ver a luminosidade absurda que vinha do mar, as ilhas ao fundo, o sol rastejante que começava a encorpar-se, aquecendo as pedras portuguesas. Naquele dia, estava especialmente bem disposta. Dormira cedo e acordara de uma noite sem sonhos, louca para respirar o ar da rua, a manhã luminosa.

Saiu. Uma de suas distrações prediletas, ao caminhar, era pensar. Pensava muito. Pensava demais. Jamais aceitava a sugestão de amigos para caminhar com ela. Só gostava de andar sozinha. Porque, assim, podia dedicar-se de forma completa aos pensamentos que lhe brotavam do cérebro, como uma torrente. Colocava a vida inteira em ordem, dentro da cabeça, enquanto caminhava. Mesmo que depois nada saísse como esperava.

E foi assim, naquele dia. Um pé depois do outro, os braços relaxados ao longo do corpo, o olhar preso em algum ponto do horizonte, lá se foi ela – pensando.

Pensou primeiro, sem qualquer razão aparente, numa amiga que não via desde pequena. Era uma menina franzina, de olhos imensos, que andava sempre de cabelos presos em tufos laterais, à maria-chiquinha. Mal acabou de pensar nisso e seus olhos focalizaram, poucos metros adiante, caminhando pela mão da mãe, uma menina de seus sete ou oito anos, muito parecida com a amiga de sua infância, como se ela se apresentasse ali, de repente, congelada no tempo. Sorriu, achando graça na coincidência. Ainda se virou para trás para espiar a menina e admirou-se ao notar que, também no andar, a semelhança era impressionante.

Seguiu em frente. Caminhou mais alguns passos e, distraída, deixou-se mergulhar outra vez nos devaneios. Por uma associação de idéias, pensou num professor de geografia que tivera em criança, na mesma época em que fora amiga da menina de maria-chiquinha. Era um homem um pouco arrogante, que gostava de falar difícil, usando palavras que as crianças em sala não conseguiam compreender. Mal a mulher pensou nele e foi sacudida pela força de uma frase, pronunciada aos gritos:

“… o mulatóide, com sua expressão patibular…”

Virou-se. Era um homem que ela acabara de ultrapassar e que, andando em direção contrária, falava sozinho, aos brados. Devia ser maluco. A mulher não conseguiu entender o significado da frase, porque ele se afastou a passos largos. Mas o curioso era que usara palavras rebuscadas, exatamente como o velho professor no qual a mulher acabara de pensar. Mais uma coincidência? Foi o que ela se perguntou, em pensando, um segundo antes de erguer os olhos e ver os dizeres no pára-choque de um caminhão que estava parado no sinal:

“Coincidências não existem”.

 

 Espelhos

(12/08/2001)

Ela sofria daquilo que chamava, intimamente, de timidez patológica. Era capaz de falar sem parar entre amigos, mas, às vezes, diante de determinadas situações – emudecia. Quando viajava, por exemplo, não conseguia pegar o telefone e pedir alguma coisa ao serviço de quarto do hotel. Chegava a discar, mas sempre desligava. A voz simplesmente não saía. Era incapaz também de mandar voltar um prato num restaurante, caso viesse errado ou ruim. Certa vez chegara a se sentir culpada, pois provara um camarão que achara ruim e deixara a comida no prato, sem reclamar. Ante a interrogação do garçom, perguntando se não gostara, respondera apenas que não estava com fome. E depois ficara pensando que, ao agir assim, talvez estivesse contribuindo para que outra pessoa, depois dela, comesse o camarão estragado e até morresse. Enfim, sofria dessas impossibilidades.

E, talvez em conseqüência dessa estranha forma de timidez que a assolava, tinha outra característica, ainda mais poderosa e incontornável: o horror aos espelhos.

Detestava-os.

Prefiro ir ao dentista do que ao cabeleireiro – dissera um dia a uma amiga horrorizada.

De fato, cortar o cabelo para ela era uma tortura. Felizmente, usava um penteado de fio longo, que só precisava aparar uma ou duas vezes por ano. Mas, mesmo assim, era um sacrifício. Não podia imaginar nada pior do que ficar sentada, por um tempo sem conta, diante do espelho imenso do cabeleireiro, sob aquela luz cruel, devastadora, e ainda por cima enfrentando os olhares disfarçados das outras mulheres em volta. Sentia-se humilhada, invadida, sozinha, como um pedaço de carne pendurado na porta do açougue.

Mesmo em casa, quando não havia ninguém por perto, evitava olhar-se. Não entendia por que se sentia assim, mas agia como se um olhar mais demorado à própria imagem fosse algo impróprio, inconveniente – talvez até perigoso.

Até que, um dia, folheando uma revista, deu com uma reportagem sobre a crise econômica no Japão. Contava como muitos chefes de família japoneses, estando desempregados, vestiam-se de terno e gravata e saíam de casa todas as manhãs, sempre à mesma hora, fingindo ir para o trabalho, apenas para que suas famílias não fossem humilhadas pela vizinhança. A reportagem dizia também que, com a crise e o desemprego, ocorrera um aumento nos índices de suicídio no país. E que, por causa disso, a prefeitura de Tóquio mandara instalar espelhos nas estações do metrô, diante dos trilhos.

Espelhos.

Espelhos onde os homens viam a própria imagem, um segundo antes do gesto fatal, e que os faziam, às vezes, mudar de idéia. Para isso estavam ali.

Lendo aquilo, a mulher levantou-se. E, tomada por uma sensação estranha, caminhou até o banheiro. Pela primeira vez – em muito tempo – encarou a própria imagem, demoradamente. Talvez não devesse temê-los, afinal. Os espelhos podiam, um dia, salvar-lhe a vida.

Paisagens

(19/08/2001)

 

Se eu pudesse levar comigo uma paisagem, se pudesse congelá-la e guardá-la, se pudesse tê-la eternamente, e revê-la sempre que quisesse, quando fosse para uma ilha deserta ou para outro mundo, não levaria uma – mas duas. Copacabana de manhã e Ipanema à tarde.

Copacabana de manhã.

Não a qualquer hora da manhã, mas às 8 em ponto. Não em qualquer lugar, e sim na Avenida Atlântica, no Posto Seis. Mas pode ser em qualquer época do ano, não importa.

As amendoeiras junto à areia, os barcos de pesca, as redes. No mar, de poucas ondas, uns barquinhos, balançando. Além da ponta do Marimbás, as flores de espuma que se abrem em alto mar, quando a água rodeia as pedras submersas. Mais além, horizonte afora, as cadeias de montanhas, intermináveis, imutáveis, com suas cores várias, contendo todos os verdes, todos os cinzas, todos os azuis.

Na areia, onde o sol acaba de chegar, a alvura dos grãos em combinação perfeita com a calçada de pedras portuguesas, retrato em preto e branco cujas ondas passeiam pelo mundo inteiro. E à esquerda, a curva majestosa bordejada de prédios – não faz mal – terminando na pedra do Leme, com o volume do Pão de Açúcar por trás. Uma curva feminina, sensual, preguiçosa. Copacabana é uma mulher madura.

Ipanema, não. Ipanema é uma menina. É a outra paisagem que eu levaria comigo.

Ipanema à tarde.

Às 4 da tarde, antes do pôr do sol. E sendo outono. Ou um inverno com jeito de outono, com muita, muita luz.

Mas não num dia qualquer, e sim num daqueles em que o vento sudoeste está começando a entrar, fazendo erguerem-se as cristas das ondas, como borrifos de monstros marinhos. Banhando a paisagem, a luz da tarde, um pouco oblíqua, só que muito alva, de arder a vista. Luz que faz refletir a areia, a essa hora uma enorme massa fria, pontilhada de banhistas tardios. Solitários. Porque às 4 da tarde de um dia assim, quem está por ali, na areia ou no mar, caminhando ou contemplando, é necessariamente um ser sozinho.

Na calçada, não. Na calçada a essa hora a vida fervilha. Há em quase tudo cor – nos coqueiros, nos quiosques, nas latas de lixo – e as pessoas caminham em frenesi, parecendo ter apenas um destino, um ponto de referência: as montanhas ao fundo.

Outro dia, num único dia, pude admirar essas duas paisagens. Copacabana de manhã, Ipanema à tarde. Num dia só, apenas um, lá estavam – as duas. Paisagens para se guardar na retina e na memória, para se rever em pensamento sempre, nos momentos de contemplação interior.

É quase impossível ser triste numa cidade assim.

 

 

Verdades e mentiras

(26/08/2001)

Tudo começou com as rosas que a moça ganhou do namorado. Eram botões vermelho-sangue, perfeitos, bem-acabados, cada pétala fechando-se sobre a de baixo num contato harmônico, as folhas saindo das hastes num ângulo estudado, irrepreensível. A moça achou-as tão lindas que se perguntou como ficariam – elas, que já eram tão belas em botão – depois de abertas.

Chegando em casa, arrumou-as num vaso comprido de cristal, cortando a ponta das hastes, uma a uma, para que as flores durassem mais, como tinha aprendido com a avó. Terminado o trabalho, ainda colocou uma pitada de açúcar na água, outro segredo para a longevidade das rosas. E deu alguns passos atrás, a fim de apreciar o arranjo.

Era de fato um belo buquê, cada botão equilibrado na ponta da haste com elegância e perfeição, as folhas de um verde encerado, quase irreal. Mas havia ali alguma coisa estranha, que ela não saberia precisar. Talvez fosse justamente o excesso de beleza. De tão lindas, as flores pareciam artificiais.

E a moça sorriu, lembrando-se da amiga que se dizia “ignorante vegetal”. Tinham combinado de almoçar juntas, no dia seguinte. Sempre que saíam, ela se divertia em ver como a outra era incapaz de distinguir flores de verdade de um arranjo artificial. “E esse, é de verdade?”, perguntava a amiga, apontando para um vaso de flor, assim que entravam em algum lugar. E ela ria, sem entender como a amiga podia não perceber a falsidade das pétalas grosseiras, das folhas de tecido, com suas ranhuras mal-feitas e seus talos brutos, de pano encerado. Mas agora era o contrário. O buquê que recebera, feito com flores de verdade, é que – de tão bonito – parecia falso.

No dia seguinte, ao acordar, a moça foi até a sala ver como as rosas estavam. Como fazia calor, com certeza já teriam desabrochado. Mas não. Encontrou os botões – os mesmos lindos botões – tão fechados quanto no dia anterior. Estranho. Tocou um deles com a ponta dos dedos. As pétalas estavam firmes, como se coladas ali. De uma beleza congelada. Seria culpa dos adubos usados, dos métodos de armazenamento? Seriam, talvez, rosas transgênicas? Bem que tinha desconfiado daquela beleza irreal, como se houvesse em sua perfeição uma mácula, o sinal de um embuste. E, dando de ombros, saiu da sala.

Na hora do almoço, foi ter com a amiga. Entraram juntas no restaurante e sentaram-se à mesa, diante de um arranjo de flores coloridas, parecendo margaridas gigantes. A amiga foi logo perguntando: “São de verdade?” E ela respondeu rindo que sim, claro, enquanto tocava uma das flores – apenas para descobrir, sob seus dedos assustados, que a pétala era feita de pano. A amiga ainda tentou brincar, dizendo que ela estava desmoralizada. Mas a moça não achou graça. Sentiu-se perdida, de repente. Não é fácil viver num mundo onde verdade e mentira se misturam, onde nem sempre as coisas são o que parecem ser. Um mundo em que as flores artificiais já imitam a perfeição da natureza. E onde as rosas de verdade são lindas – mas não desabrocham mais.

 

 

Ainda as rosas

(02/09/2001)

 

Uma semana inteira se passara, e os botões de rosa que a moça recebera do namorado continuavam lá – intactos. Se por um lado não tinham desabrochado – e isso ela percebera logo no dia seguinte –, por outro, tampouco murchavam. Continuavam perfeitos, as pétalas fechadas umas sobre as outras com a mesma exatidão de sempre. Apenas uma pequena alteração na cor e uma mudança quase imperceptível no acetinado das pétalas mostravam que as flores estavam mortas.

Que rosas mutantes seriam aquelas?

Todas as manhãs, a moça acordava e ia até a sala olhar o buquê, embora sempre sabendo o que encontraria. Mas não podia evitar. Virara uma obsessão. Queria que as flores murchassem. Sua estranha perenidade as aproximava perigosamente daquilo que a moça tanto desprezava, as flores artificiais. Uma proximidade que nivelava tudo, deixava tudo confuso, punha por terra suas mais arraigadas convicções. E foi assim, por causa das rosas, que a moça começou a prestar mais atenção no mundo à sua volta e a se perguntar por que as diferenças estavam desaparecendo.

Foi assim, por causa das rosas, que ela um dia observou a dança sensual de uma menina na televisão e achou-a a imitação perfeita de uma mulher. Apenas trocou de canal e deu com um programa em que os adultos brincavam como crianças, num disputa sem sentido. No dia seguinte, ao passar diante de uma vitrine de loja infantil, viu que as roupas eram idênticas às de uma loja para adultos, a única exceção sendo o tamanho – e a estranha sensação voltou a assaltá-la. Será que ainda havia diferença entre adultos e crianças?

Foi assim, também – por causa das rosas –, que a moça um dia observou um casal saindo da academia e foi pela rua, caminhando atrás deles. Os dois estavam vestidos com roupas de malha, semelhantes às usadas pelos ciclistas profissionais, e se beijaram antes de subir, cada um, em sua bicicleta. Tinham as mesmas pernas musculosas e a mesma cintura reta, os ombros igualmente largos e os braços fortes, com bíceps espetaculares. Era tão difícil dizer, de costas, quem era o homem e quem a mulher, que a moça se perguntou, afinal, qual era a diferença entre os sexos.

E foi assim, ainda por causa das rosas, que a moça um dia leu na revista um conto que parecia uma crônica, e na semana seguinte outro, que era a continuação do anterior, e no qual o tempo da ficção – uma semana – era igual ao tempo real. Um conto que dizia de tal forma o que ela pensava que pensou se não teria sido ela própria que o escrevera. Deve ser o efeito da globalização, concluiu. Mas a verdade é que o mundo está perdendo todas as suas fronteiras.

 

Muito riso

(09/09/2001)

 

Desde pequena ela era assim. Ria demais. A prima, que sempre passava as férias com ela no sítio em Araras, ficava boba de ver como a menina achava graça em tudo. Até evitava contar piadas, fazer gracejos, pois temia que ela acabasse passando mal de tanto rir. Era um riso descomunal, interminável, que a fazia atirar-se na cama, quase em convulsões. A mãe também se preocupava, ainda mais porque a garota era asmática e aqueles acessos de riso bem podiam transformar-se em crise.

Uma noite, as duas primas, dormindo juntas, enroladas em seus cobertores para enfrentar o frio da serra, conversaram até bem tarde. Riram tanto, tanto, que no dia seguinte a menina amanheceu com os cantos dos lábios rachados, os maxilares doloridos. Ela era assim. vivia rindo. De tudo. Adolescente, não mudou nada. Ria dos amigos, dos professores, dos namorados, de tudo o que falavam. Quando conversava ao telefone, ria tanto que a mãe se perguntava o que haveria de tão engraçado nos namoros dos jovens.

Adulta, ela continuou rindo. Virou professora e às vezes tinha dificuldade em controlar os alunos, justamente porque achava graça em tudo o que faziam. Um dia, uma de suas amigas ficou espantada ao ouvi-la contar, às gargalhadas, que acabara de receber a notícia da morte de uma tia. E o tempo foi passando. Com riso ou sem riso, os anos escoaram.

Um dia, a mesma amiga que no passado se espantara com a notícia de morte dada em meio a risadas, comentou com ela que rir demais provocava rugas em volta dos olhos. Nunca tinha parado para pensar nisso. Olhou-se no espelho com atenção, observando os pequenos sulcos em redor dos olhos. Mal fizera 40 anos, mas, de fato, as rugas estavam lá. Aquilo a deixou agastada. Achou injusto que as pessoas alegres envelhecessem mais rápido.

Continuou rindo de tudo, é verdade, mas daquele dia em diante, passou a examinar as rugas do rosto quase diariamente. A cada dia elas pareciam aumentar. Agora, não eram apenas as marcas finas, em forma de leque, no canto dos olhos, mas também os sulcos em torno da boca, que se aprofundavam com uma rapidez espantosa. A própria boca, que rira tanto pela vida afora, parecia agora descaída. As faces murchavam, os olhos ficavam cada dia mais quebrados. Mesmo quando ria, mesmo quando gargalhava, seu rosto guardava uma expressão de tristeza, de derrota, que já não podia evitar.

E ela teve a certeza de que seu maior segredo seria, afinal, descoberto. Aquelas rugas não eram marcas comuns, da idade. Eram sua tristeza – sua imensa tristeza, escondida de todos com tanto afinco, pela vida inteira – que agora começava a aflorar. Sem remédio.

 

 

Pelo ralo

(16/09/2001)

 

Os pratos estão empilhados em um dos lados da pia numa torre irregular, equilibrando-se uns sobre os outros de forma precária, como os destroços de um prédio bombardeado ameaçando cair. Estão sujos. Muito sujos. Foram deixados ali já faz algum tempo, e os pedaços de detritos sobre eles se cristalizaram, tomando formas absurdas, surreais. Há grãos e lascas, restos de folhas, amontoados de uma indefinida massa de cor acinzentada. Copos e tigelas de vidro, também empilhados num desenho caótico, exibem a superfície maculada, cheia de nódoas, e o metal das panelas, chamuscado e sujo em vários pontos, lembra a fuselagem de um avião incendiado. Mas há mais que isso. Há talheres por toda parte, lâminas, cabos, extremidades pontiagudas que surgem por entre os pratos, em sugestões inquietantes. E há ainda a cratera da pia, onde outros tantos pratos e travessas, igualmente sujos, estão quase submersos numa água escura, como se, num campo de batalha, a chuva tivesse caído sobre as cinzas. O cenário é desolador.

A mulher se aproxima, os olhos fixos na pia. Suas mãos, cujos dedos exibem dobras ressecadas, resultado de muitos anos de contato com água e detergente, movem-se em torno da cintura e caminham até as costas, levando as tiras do avental vermelho e branco. Com gestos rápidos, ágeis, faz-se a laçada, que ajusta o avental em seu lugar. E a mulher abre a torneira. Encostada à pia, espera, tocando a água de vez em quando com a ponta dos dedos. Ligou o aquecedor no máximo, pois sabe que precisará dela fumegante, para derreter as crostas formadas depois de tantas horas. Logo o vapor começa a subir. Emana da pia, primeiro lentamente, depois numa nuvem mais encorpada, quase apocalíptica, enquanto o jato d’água chia contra a superfície da louça suja. A mulher despeja algumas gotas de detergente na esponja e começa a lavar. Esfrega com vigor, começando pelas travessas que estavam imersas na água parada, pegando em seguida os copos e, por fim, a pilha de pratos. Vai acumulando-os, já envoltos em espuma, de um dos lados da pia, num trabalho longo, árduo. E só depois se põe a enxaguá-los, deixando que a água escoe, levando consigo o que resta dos detritos.

De repente, a mulher sorri. As pessoas não acreditam, mas ela gosta de lavar louça. Sempre gostou. A sensação da água quente nas mãos, seu jato carregando as impurezas, são para  ela um bálsamo. “É bom assistir a essa passagem, à transformação do sujo em limpo”, ouviu dizer um dia um poeta, que também gostava de lavar louça. Ficara feliz ao ouvir aquilo. Só então se dera conta do quanto havia de beleza e poesia nesses gestos tão simples. Mas agora a mulher suspira. Queria poder também lavar os erros do mundo, desfazer seus escombros, apagar-lhe as nódoas, envolver em sabão todos os ódios e horrores, as misérias e mentiras. Porque, afinal, do jeito que as coisas andam, é o próprio mundo que vai acabar – ele inteiro – descendo pelo ralo.

 

Apocalipse

(23/09/2001)

Quando ele entrou no elevador, a mulher estava de cabeça baixa, observando o bico fino dos próprios scarpins. Mal o notou. Apenas suas narinas registraram o perfume que ele usava, um aroma de espaços abertos, de capinzais, mas tudo se imprimiu nela como um sensação vaga, muitas camadas abaixo da consciência. O homem entrou em silêncio, sequer deu boa-noite, e encostou-se na parede do fundo do elevador, a um braço de distância. A porta fechou-se em seguida, trancando-os, aos dois, naquela caixa de aço banhada por uma luz fria, irreal. E o elevador começou a descer.

Os segundos se passaram. Um, dois, cinco, dez segundos de um tempo amorfo, neutro, esse não-tempo de que é feito o lapso em que estamos dentro de um elevador.

E de repente aconteceu.

Com um tranco, o elevador parou. No mesmo instante, a escuridão tomou tudo, envolvendo homem e mulher como areia movediça.

O que se deu em seguida foi resultado de um reflexo, uma ação impensada. Ambos, homem e mulher, estenderam os braços movidos pelo susto – apenas isso, mais nada – e, na matéria escura de que agora era feito o ar, suas mãos se encontraram. Entrelaçaram-se com toda a força, palmas e dedos se fundindo, antes que houvesse tempo para reflexão ou censura. No momento seguinte, os dois se deram conta do gesto infantil. No momento seguinte, ambos viram que aquilo era uma tolice, que houvera apenas uma falta de luz, que um elevador enguiçado era algo desagradável, mas não era nada demais. Ainda tentaram, ambos, dizer isso às próprias mãos, que continuavam atadas uma à outra – mas não adiantou. Era tarde.

O encontro daquelas mãos desencadeou novos gestos, impensados também, proibidos. Loucos. Movimentos absurdos, que não deveriam acontecer entre estranhos. Mas que aconteceram.

E quando os dois, homem e mulher, começaram a perceber o que se passava, já não eram suas mãos e sim suas bocas que se tocavam.

Um beijo.

Um beijo que, talvez pelo que tinha de proscrito, de irreal, imprimiu-se em suas bocas com enorme poder, transformando os dois desconhecidos num só corpo, uma só carne, instantaneamente. Um beijo de encaixe perfeito, de pressão exata, de textura e gosto tão límpidos que era como se aquele contato tivesse existido sempre e, como o próprio universo, não fosse ter fim. Um beijo que os sorveu e absorveu de forma tão completa que tudo o mais desapareceu. Tudo. As paredes de aço e em torno delas o prédio e para além deste tudo o mais, presente e passado, matéria e memória. Com sua força apocalíptica, aquele beijo anulou tudo. E – por um longo e alucinado instante – o mundo acabou.

 

 

Medo

(30/09/2001)

 

Eu estava assistindo a um documentário na televisão sobre as pessoas desaparecidas no World Trade Center. O documentário era até muito tocante, já que contava histórias pessoais – não falava apenas em números –, mas confesso que eu assistia àquilo um tanto anestesiada, quase apática, talvez esmagada pela enormidade de tudo o que vem acontecendo.

De repente, começou o relato de um rapaz cujo amigo estava entre os desaparecidos. Por alguma razão, a história me prendeu. Talvez porque o jovem morto fosse um artista plástico, um escultor, profissão exótica (pela minha dedução rasa) para se estar no World Trade Center numa ensolarada manhã de setembro. Seja como for, comecei a prestar mais atenção. E foi então que surgiu na tela uma das esculturas do artista desaparecido: mostrava um homem, feito em metal dourado – bronze, acho – e em tamanho natural, com o corpo cheio de estacas, incrustado de barras pontiagudas e todo cravado de miniaturas de aviões, como se estes tivessem voado sobre ele e nele se pregado, por tronco, pernas, braços.

Num segundo, a imagem desapareceu. E ressurgiu na tela o rosto aflito do amigo, falando daquele e de outros trabalhos do rapaz. Mas eu já não ouvia nada. Só pensava no mistério expressado por aquele escultura premonitória, a obra de um artista que moldara em bronze a imagem de sua própria morte.

E comecei a refletir sobre esse estranho poder que os artistas têm de às vezes captar no ar coisas que ainda não aconteceram, coisas que eles não deveriam saber – mas sabem. De alguma forma, sabem.

E pensei em Paul Auster, que, ao escrever A música do acaso, passou meses e meses refletindo sobre muros e, no dia em que colocou no livro o ponto final – no dia exato –, viu cair o Muro de Berlim.

E pensei nos versos de Mário Faustino, na força maldita de suas palavras, que soaram como uma premonição terrível quando – muitos anos depois de tê-las escrito – seu avião explodiu no ar, em algum lugar sobre os Andes: “Sinto que o mês presente me assassina/ Corro despido atrás de um cristo preso/ Cavalheiro gentil que me abomina/ E atrai-me ao despudor da luz esquerda/ Ao beco da agonia que me espreita/ A morte espacial que me ilumina”.

E ainda: “Os cães do sono calam/ E cai da caravana um corpo alado/ E o verbo ruge em plena/ Madrugada cruel de um albatroz/ Zombado pelo sol”.

E pensei finalmente em mim mesma, nas vezes em que vi o olhar atônito de amigos, dizendo – depois de ler algum livro meu – que eu havia escrito coisas que só eles sabiam e nunca haviam contado para ninguém.

Tudo isso é estranho, muito estranho. Tão estranho e incontrolável que, nestes tempos difíceis em que vivemos, dá até medo sentar para escrever.

 

Proustiano

(07/10/2001)

 

Ele entrou no gabinete procurando não fazer barulho. O tio queria manter as crianças longe dali, mas o menino se aproveitou de uma hora morta, logo depois do almoço, quando as mulheres estavam ocupadas demais e os homens de menos – e entrou. Há muito vinha planejando fazer isso. Já tinha espiado através da porta entreaberta várias vezes, movido por enorme curiosidade, sentindo o cheiro forte que emanava dos livros, mas queria muito mais que isso. Queria tocá-los. Lê-los.

A tia dissera que ali só havia livros para adultos, incluindo incontáveis volumes sobre leis – já que o tio era advogado –, mas o menino não se conformara. Até porque não era exatamente uma criança: tinha acabado de fazer 14 anos.

E foi assim que, naquela tarde, ele entrou no gabinete proibido. Depois de inspirar com força, sentindo-se envolver pelo odor peculiar dos livros antigos, decidiu pegar um volume ao acaso, num jogo de sorte que gostava de fazer com si próprio, na certeza de que alguma coisa importante cairia em suas mãos. Pôs-se na ponta dos pés e retirou de uma das prateleiras um livro preto, de capa dura, com letras douradas onde lera, quase sem querer, a palavra “Swann”, que ele, tão aplicado no inglês, pensou ser “cisne”, sem se dar conta de que havia ali um “n” a mais. Caminhou até junto da janela e sentou-se numa poltrona negra de couro tacheado, cujo assento já apresentava uma curvatura, denunciando anos e anos de leitura de seu tio. Abriu o livro ao acaso, como fora ao acaso que o tirara da estante. E começou a ler.

À medida que ia lendo, foi sendo invadido por uma sensação de bem-estar avassaladora, inexplicável. Depois de um tempo, ficou paralisado, o livro aberto no colo, os olhos fechados em concentração, tentando a todo custo lembrar que sensação era aquela, que reconhecia, que o reconfortava e envolvia, embora desconhecesse sua origem. Logo se lembrou. Era a mesma sensação de beatitude que sentia quando, ainda bem pequeno, nos fim de tarde de verão, ameaçando temporal, via a sala de sua casa ser invadida pelas mariposas. Havia, junto ao abajur, uma sopeira antiga, já sem tampa, onde sua mãe colocara uma planta aquática. As mariposas vinham, atraídas pela lâmpada, e caíam na água, que refletia a luz. E ele, menino tolo, se dedicava a salvá-las, uma a uma. Desdobrava-se no esforço, chegando a secar-lhes as asas minúsculas com a ponta do paninho de seda que recobria o móvel. E, às vezes, para sua felicidade, uma ou outra vivia.

Era estranho que um livro o fizesse reviver aquela sensação de beatitude.

Ele não sabia, ainda. Só muito mais tarde saberia. Só muito mais tarde – já adulto – descobriria o que alguns não descobrem nunca: que ler Proust faz bem à saúde.

 

Os sapatos

(14/10/2001)

 

Eu estava com pressa. Atrasada. Fechei a porta e dei os primeiros passos pelo hall, em direção ao elevador. Já tinha apertado o botão quando me virei e vi, num dos degraus da escada, o par de sapatos.

Eram sapatos de homem, de bico fino, sem cadarço, de couro marrom. Ainda novos. Porém recobertos de uma poeira fina, parecendo açúcar de confeiteiro. Estavam ali, abandonados, ao lado de uma pilha de jornais, de um abajur velho e de uma tampa de papelão.

Enquanto eu os olhava, um ruído metálico atrás de mim me disse que o elevador havia chegado. Mas não me virei. Por um tempo continuei parada, olhando com imensa ternura para aqueles sapatos empoeirados. Sabia a quem pertenciam. Passara uns dias viajando e, ao voltar, fora avisada pelo porteiro de que meu vizinho de porta, um velhinho magro, de gestos mansos e cabelos muito brancos, havia morrido. Mal o conhecia. Apenas cruzava com ele de vez em quando no elevador. Jamais trocamos mais que duas ou três palavras. Mas, ao me contar sobre sua morte, o porteiro dissera que ele não tinha mulher nem filhos e que seus parentes distantes já estavam esvaziando o apartamento. Logo, aqueles sapatos só podiam ser dele.

Observei-os. A poeira fina me remeteu de imediato a outra par de sapatos – abandonado, também, e igualmente empoeirado – que eu vira poucos dias antes numa fotografia. Era a foto de um hall de hotel cheio de destroços, recoberto pelo pó vulcânico que tomou conta de Nova York depois do atentado. Lá como aqui, os sapatos eram comoventes em sua solidão. Transmitiam uma sensação de perda, de desolação. Sem pés que os recheassem e pusessem em movimento, pareciam tristes, sem sentido. E me faziam divagar, trazendo à mente imagens de pesadelos recorrentes, destes em que caminhamos pelas ruas bem vestidos mas descalços, tomados por um forte sentimento de inadequação.

Novo ruído de porta metálica atrás de mim. O elevador tinha cansado de me esperar. E eu ali, paralisada.

Olhei o relógio. Estava cada vez mais atrasada.

Suspirando, apertei novamente o botão. Mas ainda voltei a olhar os sapatos na escada. Eles me fascinavam.

Pertencendo a um morto, eram tristes, sem dúvida, e solitários. Mas o que havia neles de mais comovente é que guardavam em si alguma coisa do homem ao qual haviam servido. Não eram como um par novo, na vitrine de uma loja, ainda sem alma. Aqueles sapatos jogados fora, agora sem dono, tinham – por paradoxal e surpreendente que fosse – uma profunda humanidade.

 

Vôo

(21/10/2001)

Eu estava deitada de costas na relva, sobre uma toalha xadrez, mas na verdade não a via, pois mantinha os olhos bem fechados. Com isso, com um dos sentidos em descanso, podia apurar os outros, principalmente o do olfato, pelo qual me chegavam, com enorme clareza, o cheiro da grama, os odores fortes dos queijos, a acidez do vinho, o aroma do pão. Meus outros sentidos também me passavam mensagens. Através do tato, sentia o calor suave do sol, enquanto a audição me falava de crianças brincando nos jardins e do rio que corria mansamente a poucos metros dali.

Decidi abrir os olhos, mover-me, ir até lá – até a margem do rio.

Num instante, estava diante dele, sentindo contra o corpo o calor da balaustrada de pedra, que guardava o sol de um dia inteiro. Calores e cheiros me impregnavam, sim, mas agora eu tinha os olhos bem abertos e por eles recebia todo o esplendor daquelas águas. Observava as pequenas ondas, seus reflexos e matizes, transformando-se à medida que os barcos passavam. E também as pedras da margem, as pontes que se sucediam e a ilha ao fundo, com suas construções altivas, os telhados de ardósia cintilando ao sol.

Olhei para baixo. E senti vontade de estar ainda mais perto do rio. Comecei a descer os degraus de pedra porosa que levavam à calçada junto à margem, lá embaixo. Nesses degraus, o calor do sol parecia ter permanecido em maior concentração. E com mais intensidade ele emanava do chão, tomando a planta dos meus pés que – só agora eu me dava conta – estavam descalços, deliciosamente descalços. Passo a passo, degrau por degrau, fui descendo em direção ao rio, os olhos fixos nas águas, enquanto meus pés recebiam as ondas de calor em pequenos choques.

Chegando lá embaixo, caminhei até a beirada. Ali as pedras, banhadas pelo rio, eram mais limosas e gastas, suas formas arredondadas ganhando contornos femininos, marcados aqui e ali por sulcos, veios, rajas. Emocionei-me ao olhar para aquelas pedras, pois sabia que contavam histórias de muitos séculos. Mas, mais que isso, fui envolvida por uma sensação de euforia, cuja razão localizei de imediato. Fora ali, naquele lugar, que eu vira, num filme de Woody Allen, uma cena de dança em que a mulher se via de repente sem peso, flutuando no ar. E, sorrindo ante a lembrança, tive, eu também, vontade de dançar. Olhando em torno e vendo-me só, arrisquei um pequeno salto para a frente, como num passo de balé, por pura brincadeira. E percebi – com delícia, mas sem qualquer surpresa – que voava.

Sim, voava. E por toda a noite voei, sobre jardins, pedras e águas.

No horror dos tempos, não há melhor escapismo do que um sonho.

 

 

O porteiro da noite

(28/10/2001)

            No chão de mármore em duas cores, formando losangos claros e escuros, as botas pousam com leveza, uma atrás da outra, suas grossas solas em atrito com a pedra provocando apenas um murmúrio a cada passo. Não sabemos quem é, mas, pelos coturnos, deve ser um soldado. E, estranho: pela sutileza com que pisa, por seu andar furtivo, parece querer esconder-se. Talvez esteja com medo.

            Há pouca luz aqui. O salão do palácio, com suas arcadas, a escada em curva, toda em jacarandá trabalhado, a galeria com os bustos de homens célebres, enchendo as paredes de um lado e outro com seus olhares vazios – tudo isso está envolto na atmosfera sombria e opressiva da madrugada. De dia, o museu se enche de funcionários e visitantes, cujos passos ecoam nos corredores com um som corriqueiro, quase burocrático. Mas à noite, quando o silêncio é completo – afora pelo barulho dos gatos fazendo amor nos telhados das redondezas –, o palácio se transforma. De seus objetos e móveis antigos, de pedras, madeiras e pratas que guardam o tempo, sobem eflúvios de outras vidas – há muito desaparecidas. E o silêncio e a escuridão como que murmuram, respiram.

            É por isso que os soldados que aqui fazem a ronda noturna têm medo. Ainda mais agora, depois que morreu o porteiro da noite. Trabalhava no museu havia mais de 40 anos. Era simpático, o velhinho, embora um pouco circunspecto. Falavam dele, diziam coisas. Parece que decidira ser porteiro depois de perder a família num desabamento, do qual ele próprio saíra ferido. Não suportava voltar para casa. Bem, mas isso são coisas que diziam, não se sabe ao certo se verdadeiras ou não. O fato é que era um velhinho afável, tão acostumado ao palácio que parecia capaz de movimentar-se por seus corredores até de olhos fechados, embora – por conta de uma seqüela na perna – andasse sempre apoiado numa bengala. Sua presença transmitia uma sensação de confiança, de reconforto para os soldados da ronda. Que lamentaram sua morte.

            As botinas param, de repente. Num segundo, um raio corta a penumbra, facho de luz ferindo a galeria escura como uma faca, fazendo nascer nas paredes sombras nervosas, incertas. É a luz de uma lanterna. A mão que a segura parece trêmula. Ouve-se um arfar, o ar entrando e saindo dos pulmões num movimento convulso. Sem dúvida, o soldado está com medo. Parece que ouviu algo. Sua mão esquerda envolve a lanterna com toda a força enquanto a outra desliza quase que instintivamente em direção ao coldre.

            As botas voltam a mover-se, levando-o alguns passos além, até a confluência de dois corredores, um deles indo dar na saleta da recepção, em cuja mesa, durante anos, sentou-se o velhinho que agora está morto. Foi de lá que veio o som. O facho da lanterna se empina, se espicha em direção à saleta – e a mão do soldado estremece quando o espectro de luz focaliza um objeto comprido, de madeira escura, encostado à mesa. É a bengala do porteiro.

 

Imortalidade

(11/11/2001)

 

Outro dia, por acaso, abri um livro de crônicas de Rubem Braga, “A borboleta amarela”, que havia comprado, meses antes, num sebo. Esse exemplar, embora vindo de uma loja que vende livros de segunda mão, está novo em folha, como se nunca tivesse sido aberto, sequer tocado. Agora, procurando outra coisa na estante, dera com ele e percebera que o havia esquecido, por todos aqueles meses. Aquilo me pareceu imperdoável, ainda mais sendo um livro de Rubem Braga. Tirei-o da prateleira e franzi o rosto, enquanto corria os dedos por suas páginas intocadas, perguntando-me se aquele exemplar não sofreria de alguma estranha maldição que o condenasse a permanecer para sempre fechado.

Dizem que escrever é a arte da solidão. E isso não só porque os escritores geralmente escrevem sozinhos, mas também porque os leitores quase sempre estão sós no momento de ler o que foi escrito. Alguém já disse que quando um leitor se senta para ler um livro, são duas solidões que se encontram.

É bonito, isso. E um pouco triste. Mas, de todas as coisas capazes de transmitir a idéia de solidão, nada se compara a um livro que jamais foi aberto. E não falo de Rubem Braga. Falo de milhares de autores desconhecidos, cujos livros jazem esquecidos em algum canto do mundo, jamais lidos, jamais compartilhados. Quantas vezes, passeando por entre as prateleiras dos sebos, não me emociono ao ler nas lombadas dos livros empoeirados nomes de autores dos quais jamais ouvi falar. Ou quando toco um exemplar ainda com as páginas grudadas, por saber que elas não tiveram nem a misericórdia de uma lâmina que as separasse.

Envolta nesses pensamentos, continuei correndo os dedos pelas páginas de “A borboleta amarela”. Até que, já quase no fim, na abertura de uma crônica chamada “Os amantes”, dei com o cadáver prensado de uma mariposa. Sua presença improvável, dentro daquele livro quase virgem, me surpreendeu. Mais do que isso, ela me tocou, subitamente revestida de um significado místico. A pequena borboleta, fossilizada entre as páginas do livro que carregava seu nome, me pareceu de repente assombrada, a representação da solidão sobre a qual eu refletia, ou quem sabe mesmo a materialização do próprio espírito de Rubem Braga.

Por um segundo, sorri desse pensamento que o próprio Braga certamente julgaria tolo. Mas a impressão causada pela borboleta morta continuou dentro de mim. E afinal concluí que havia de fato qualquer coisa de mágico ali.

Acho que os espíritos dos escritores mortos passeiam pelas páginas de seus livros, mesmo os intocados. E, sendo assim, já não importa a solidão, o insucesso, o esquecimento. Já não importa nada. Encantados, eles vivem ali, prisioneiros dos próprios sonhos, para sempre. E essa é sua imortalidade incontestável.

 

 

A fotografia

(18/11/2001)

 

Enquanto trabalhava, diante da tela encostada à parede, a mulher sentia na nuca a emanação do olhar que vinha da fotografia. Sabia que era uma bobagem, aquilo. Mas não podia evitar.

Tentou concentrar-se. Precisava terminar a tela em duas semanas. Era uma encomenda. Mas naquela manhã estava especialmente dispersiva, o pensamento esvoaçando o tempo todo, indo às vezes parar na foto que pusera num canto da sala, sobre a cômoda. Era uma foto de seu marido, só que tirada mais de vinte anos antes, quando eles ainda não se conheciam.

Suspirou. Pousou o pincel sobre a palheta que deixara descansando numa mesinha toda suja de tinta e limpou os dedos no pano embebido em solvente. Estava quase negro, de tão sujo. Sorriu. Se o preto é a ausência de cor e o branco é que é a soma de todas as cores, então esse paninho é uma contradição, pensou. Já levou tantas camadas de tinta, e de tantas cores, que se transformou nesse pedaço de tecido encardido. Mas não conseguia trocar. Sentia uma estranha ternura por ele. Sentia ternura pelos tubos de tinta, pelos vidros, pincéis, era capaz de ter pelos objetos mais apreço que por algumas pessoas. Talvez por isso tivesse estabelecido aquela estranha relação com a fotografia, desde que decidira colocá-la sobre a cômoda.

Esfregou com força as mãos no paninho escuro, tentando resistir à tentação de se virar e olhar a foto. Não queria. Não agora. Iria perturbá-la demais.

Caminhou até a varanda e observou os pés de fícus que, em três grandes vasos, assemelhavam-se cada vez mais a verdadeiras árvores, com os troncos encorpando-se e as folhas viçosas, como se as plantas crescessem no chão. Era uma varanda privilegiada, a sua. Até mesmo um ninho de passarinho surgira outro dia, por entre as folhagens. Lá estava ela, divagando de novo, deixando a mente flanar enquanto deveria estar concentrada, trabalhando. Precisava voltar à tela. Terminar o quadro o quanto antes.

Virou-se e encontrou na sala. Mas, nesse instante, aconteceu o que temia. Seus olhos se dirigiram, como se  tivessem vontade própria, para a fotografia. O marido ainda jovem, de braços cruzados. Sob a manga arregaçada do suéter, surgia um antebraço másculo, estriado de veias. E desse, as mãos viris. O rosto trazia um sorriso debochado, uma expressão de escárnio, marcas de uma vida dissoluta – na qual ela não tomara parte.

Fora sobretudo aquele olhar que a impressionara ao encontrar a fotografia dentro de uma caixa, onde por muitos anos ficara esquecida. Um olhar que desconhecia. Aquele rosto, aquele, da foto, ela nunca vira. Era outro homem. Não apenas mais jovem, mas movido por uma força cruel, deliciosamente cruel. E ela não se perdoava por ter perdido esse passado de loucura. Queria ter estado lá. Nem que fosse apenas uma vez.

Caminhou até perto da cômoda, os olhos fixos na foto, e parou, esfregando os braços. Sentia crescer dentro de si uma chama, um rubor. Não era o marido que queria. Era aquele ser dissolvido no passado, que a olhava como se a devorasse. Estava apaixonada por um homem que não existia mais.

Gala

(25/11/2001)

 

Ela estava de volta. Trinta anos haviam passado – e ela estava de volta.

Foi com satisfação que, no centro da sala, olhou em torno. Naquele dia, terminara de dar o último retoque no apartamento.

Ainda jovem, casada, fora morar numa cidade do interior e lá ficara durante três décadas, enquanto a vida passava, quase imperceptivelmente. Um dia, já viúva e sem filhos, decidira que era hora de voltar. O apartamento em Copacabana, que durante anos ficara alugado, foi retomado. E agora ali estava ela. Outra vez.

O apartamento era simples, de dois quartos, o mesmo onde havia morado logo depois de se casar, antes de ir embora para outro estado. Mas fora arrumado com extremo capricho. Na sala, um sofá de couro preto, tacheado, junto a duas poltronas quadriculadas de verde musgo e mostarda. E, a um canto, três vasos de samambaias choronas, que a acompanhavam sempre. Ouvira falar que as samambaias estavam fora de moda, mas seria incapaz de se desfazer delas. Achava uma crueldade que se falasse em moda quando se tratava de plantas e animais, embora soubesse de pelo menos um caso de alguém que se desfizera de um cachorrinho Lulu da Pomerânia por achar que a raça estava ultrapassada.

Mas as samambaias eram sua única concessão. Gostava de se sentir moderna. Embora já tivesse passado dos 60, fazia questão de se manter atualizada, em harmonia com os acontecimentos. Por isso, ao decidir voltar para o Rio, fizera questão de se dar todos os pequenos luxos da modernidade. Comprara dois aparelhos de televisão (um para a sala, outro para o quarto), um computador, duas linhas telefônicas (uma só para a internet) e até um aparelho de fax. E, é claro, um telefone celular, desses pequenos, parecendo um escaravelho, capaz de aninhar-se na palma da mão. Tivera uma sensação deliciosa quando, experimentando o vibracall, o celular estremecera como um besouro prateado, fazendo cócegas em sua pele.

E agora estava ali, no centro da sala, pronta para abrir a garrafa de vinho francês que comprara no supermercado, a fim de brindar em honra à casa nova. Preparara-se com desvelo para o momento do brinde. Vestira um vestido de crepe de seda, lilás clarinho, bem vaporoso, mandado fazer para o casamento de uma amiga. E o sapato de saltinho, ouro velho, aberto atrás. Para um momento especial, roupa de gala. Como se dizia no seu tempo.

Abriu o vinho. Sentiu-lhe o aroma enquanto o líquido era despejado na taça antiga, com arabescos escavados no cristal. E, com a taça erguida, lançou mais um olhar em torno. Observou os móveis bem-arrumados, os aparelhos modernos, capazes de estabelecer sua comunicação com o mundo. O computador, os telefones, o fax. O besouro prateado sobre a cômoda. E só então se permitiu sorrir seu sorriso amargo. Porque sabia, soubera desde o início. Sabia que todo aquele capricho e modernidade, aqueles aparelhos todos estavam ali em vão.

Não tinha ninguém para quem ligar.

O beijo

(02/12/2001)

 

Sobre o pequeno promontório de pedra, sentados lado a lado, os amantes se beijam. Os cabelos da mulher foram retorcidos na nuca e, presos, deixam à mostra as costas bem feitas, músculos, carnes e ossos, num ajuste harmônico que vai dar no afilamento da cintura. Ela está sentada, as pernas rígidas quase tocando uma à outra, as pontas dos pés pousadas no chão com leveza, quase com desequilíbrio, como se a qualquer momento fosse cair para trás, subjugada pelo amor daquele homem.

Ele, sentado ao lado dela, girou sobre si próprio de modo a enlaçá-la. Enquanto sua mão esquerda está colocada sobre o banco de pedra que lhe serve de apoio, a outra, a direita, contornou a mulher e segura com firmeza o ponto da coxa onde começa o quadril. A presença da mão naquela altura da coxa é, por si só, um ato de amor.o braço musculoso do homem se abre, na extremidade, transformando-se em mão vigorosa, de dorso riscado de veias, de dedos nodosos e longos que tocam a pele da mulher com a desenvoltura de um senhor de terras, o polegar erguido apontando, já, na direção do ventre, onde o monte de Vênus está à espera de seu toque. Os mesmos músculos que fazem do braço e das mãos uma demonstração de força, espraiam-se pela espádua, com igual firmeza, com o mesmo poder. Apenas no rosto há alguma delicadeza, os cabelos dele, de um anelado leve, querendo cair sobre a testa como a criar um véu de privacidade para o encontro. Também no gesto da mulher parece haver o objetivo de criar uma redoma, uma região de sombra que mantenha o mundo afastado dos dois. Ela ergueu o braço esquerdo e envolveu o pescoço do homem, puxando-o para si, e esse movimento deixou livre um de seus seios, que aponta para o amante com ousadia. Mas há mais ousadia ainda em outro fato, raso, direto, inegável como a dureza da pedra – o de que os dois amantes estão nus.

A menina observa, fascinada. Nunca viu nada assim. Nunca, em sua vida breve, julgou que pudesse assistir a uma cena de tamanha plenitude. Um homem e uma mulher, nus, envolvidos num beijo tão intenso e tão completo, que parece acontecer numa dimensão paralela, onde o tempo é imensurável, onde é impossível distinguir segundos de séculos. A menina olha, os olhos muito abertos, sem piscar. Em algum ponto de sua mente, tem a impressão de que ouve uma voz chamando-a, mas nem pensa em responder, não quer mover-se. Quer ficar ali parada, hipnotizada que foi pela força daquele encontro entre dois amantes. A chama que o beijo irradia toca-a, revolve alguma coisa dentro dela. A voz, do outro lado do mundo, insiste, chama-a cada vez mais alto, mas a menina ainda tenta resistir, presa ao beijo a que assiste, com a súbita certeza de que sairá dali transformada – para sempre.

Até que não pode mais. Pisca os olhos e, em seguida, vira-se. Vê o sorriso da mãe, que se aproxima. Sorri de volta, rendida, mas tem certeza – certeza absoluta – de que depois daquele momento não será a mesma. Nunca mais esquecerá essa primeira visão da escultura de Auguste Rodin.

Raízes

(09/12/2001)

 

 

            Diante da minha janela havia uma pedra.

            Não, não vou fazer imitação de poesia. Nada tem de poética a história que vou contar. A pedra de que falo é na verdade uma imensa pedreira, de topo liso, coberto em alguns pontos pela vegetação rasteira, uma espécie de enclave rural em pleno Leblon, onde às vezes cabras pastavam e onde um galo alucinado insistia em cantar na hora errada, no início da madrugada. Era o lugar ideal para, nas tardes de domingo, uma menina se deitar, sentindo nas costas o calor do sol retido pela pedra, enquanto olhava as pipas agitando-se no ar. Eu ia com meu irmão e seus amigos, quando eles subiam lá para soltar pipa. São só lembranças. Essa pedra não existe mais. Ou pelo menos não existe assim, como a descrevo agora, a pedra da minha infância. Hoje, é uma pedra nua – morta.

            Sua base ainda está lá e servirá, pelo que sei, de fundação para um shopping. Mas a superfície foi toda raspada, a vegetação desapareceu, a pedreira foi rebaixada em quatro ou cinco metros, retalhada durante dois anos por uma orquestra de britadeiras, e nela já foram erguidos os primeiros andares do que será um estacionamento.

Assim que começaram a destruir a pedreira, pensei com alarme numa pequena árvore, uma muda de amendoeira cujo crescimento árduo eu vinha acompanhando havia anos. A árvore crescera numa das laterais da pedra e seu tronco se encorpava, equilibrando-se de forma improvável no paredão íngreme. Eu admirava sua bravura, tirando seiva de um lugar onde não havia terra, fazendo um esforço enorme para crescer numa ranhura mínima que encontrara. E caminhei um dia até o local onde ela crescia, para ver se, com as obras que tinham começado, a pequena árvore sobreviveria. Mas cheguei tarde demais. Só encontrei o tronco, decepado. Em torno, as raízes, que por anos se haviam agarrado à pedra com tanto esforço, agora condenadas a secar, inúteis.

O tempo passou. E eu não pensei mais no assunto. Até que, outro dia, assistindo a um documentário sobre os talibãs, vi uma inglesa de origem afegã mostrando a foto de um jardim onde brincava na infância e que fora destruído pela guerra civil. O documentário, feito antes da guerra com os Estados Unidos, fora gravado em solo afegão, e a moça conseguira chegar ao local do tal jardim. Mas não encontrou nada. A comparação com a fotografia que trazia nas mãos era chocante. Todo o verde havia desaparecido. No meio de um descampado monocromático, restara apenas o círculo de pedra de uma velha fonte, seca. E a única coisa que não mudara na paisagem eram as montanhas, ao fundo, testemunhas da devastação que – hoje sabemos – estava apenas no princípio.

Aquela mulher e seu jardim desaparecido me fizeram pensar na pequena amendoeira que crescera na pedra e que também fora decepada. E, com isso em mente, voltei ao ponto do paredão onde ela um dia se agarrara. Com surpresa, descobri que das raízes deixadas na pedra surgiam brotos, com folhas de um verde limpo.

A amendoeira teimava em renascer – como talvez fizesse o jardim afegão –, apesar da fúria dos homens.

Banho de ervas

(16/12/2001)

 

            A mulher começou a macerar as folhas. Aplicava toda a força que conseguia naquele movimento de dedos. Sentia contra a pele a aspereza dos talos, as nervuras da planta, suas irregularidades. Cada galho, cada folha mesmo, se desfazia em suas mãos, tal o empenho com que se entregava à tarefa. Nunca fora mulher de feitiços. Jamais acreditara nessas coisas do sobrenatural. Tinha relutado bastante em ouvir o conselho da amiga, mas acabara sucumbindo. Afinal, nada teria a perder. Ao contrário, sabia que agora era diferente, era tudo ou nada. Precisava tentar por todos os meios.

            Na casa de subúrbio, as últimas luzes do crepúsculo entravam pela janela, dando novos matizes ao vidro canelado. Através da fresta entreaberta, vinha o som do rádio da vizinha, sintonizado em alguma estação nostálgica, pois só tocava músicas antigas, de uma doçura que fazia a mulher suspirar. Pensava na própria vida enquanto macerava as folhas. No marido, que conhecera já madura. Nos filhos que nunca tivera. no casamento agora ameaçado.

            Redobrou a força no esmagar das folhas, uma mistura de várias plantas, combinação que lhe fora ensinada e que seguira à risca. Levou muitos minutos, muitos, até decidir que as ervas estavam prontas para receber a água. Só então se despiu e foi tomar uma chuveirada, deixando o balde com o banho de ervas a um canto, perto do boxe, para jogar a mistura sobre o corpo no final, exatamente como a amiga havia recomendado.

            Fez tudo certo. Depois, sentindo exalar do corpo o perfume das folhas maceradas, vestiu uma camisola fina, azul-clara, e sentou-se para esperar.

            De olhos fechados, na poltrona ao lado da janela, esperou.

            E esperou.

            A noite caiu sobre o subúrbio, trazendo novos sons, burburinhos de gente chegando em casa para descansar. Os matizes, as luzes, tudo desapareceu da janela, e o vidro canelado se tingiu de escuro. O cenário mudou. Apenas o rádio da vizinha continuava tocando suas canções suaves, que entravam pelos ouvidos da mulher como uma carícia. Ela ouvia, sem prestar muita atenção. Só depois – muito depois – sua mente pareceu captar as palavras de uma canção, na voz de uma cantora que ela não ouvia há tempos.

            “Não adiantou nada o banho de ervas. Não adiantou nada o nome da outra, num pano vermelho…”

            Mordendo o lábio, ela olhou na direção da porta, do outro lado da sala. A sala cada vez mais escura, onde a noite se fechava, sem que a mulher tivesse coragem de se levantar para ir acender a luz. E o verso da canção ficou ecoando em seu peito como um presságio. “Não adiantou nada… Não adiantou nada…”

Noite feliz

(23/12/2001)

 

            Chega de tristeza, pensa a mulher, fechando o jornal que tem nas mãos. Chega de melancolia.

            É Natal, sim, e daí? Tem gente que acha essa época de Festas meio deprimente. Que sente um nó na garganta só de ouvir uma dessas canções falando de um Papai Noel que nunca vem. É verdade, tem muita gente assim. Parece que é contagiante. Até os escritores, os articulistas, os cronistas se deixam às vezes sucumbir. Como essa moça que escreve aos domingos, na revista. Ela parece que anda meio triste ultimamente. Tem escrito umas histórias sobre jardins que secaram, sobre mulheres que esperam em vão seus homens nas tardes quietas dos subúrbios.

            A mulher se levanta, respirando fundo. Com ela, não. Com ela vai ser diferente. Não pode negar que de vez em quando também sente a melancolia chegando, de mansinho, infiltrando-se por seus poros, encharcando-a como se fosse água. Mas resiste. Resistiu a vida toda. Por que agora, que já passou dos 50, seria diferente?

            Quando era garota, era mais difícil. Ninguém na sua casa gostava de Natal. A avó, viúva, era uma mulher amarga, ensimesmada. E para a mãe, abandonada pelo marido ainda jovem, a época das Festas era sal na ferida sempre aberta. Já ela, desde menina, lutava sozinha para fazer da véspera de Natal uma noite feliz, como dizia a música. Quase nunca conseguia. Lembrava-se bem do ano em que resolvera chamar amigos e vizinhos para a ceia em sua casa. Era adolescente nessa época. Tomara todas as providências, comprara tudo, arrumara a árvore. Chegara ao extremo capricho de embrulhar os presentes – coisas pequenas, baratas, pois o orçamento não era lá essas coisas – em papel celofane colorido, amarrados com fitas. Papel celofane verde e fitas vermelhas para os homens, papel celofane vermelho e fitas verdes para as mulheres. Ficara uma beleza. Mas tudo em vão. Na hora da ceia, a mãe desatara a chorar, estragando a alegria da festa. Sempre fora assim. ela lutando para ter um Natal alegre, o mundo parecendo conspirar para entristecê-la.

            De repente, a mulher olha na direção da cozinha, com um sobressalto. Está na hora de regar o peru! Aliás, já deve estar quase pronto. Quando é pequeno, ele assa rápido. Claro, comprou um pequeno. Afinal, é só ela, o filho e a nora. Mas não faz mal. Quando é pequeno, pega melhor o tempero, fica até mais gostoso. Que importa? Que importa, também, se terá de comer bem cedo, sem muita fome, porque o filho precisa sair correndo para a ceia de Natal na casa da sogra? Que importa depois ficar sozinha, se terá a doce companhia da gatinha, que se espreguiçará em seu colo enquanto ela estiver assistindo aos especiais da televisão?

            Não importa. Mais uma vez tem certeza de que vai dar tudo certo. Sempre foi assim. Sempre acreditou. Não é agora que vai ser diferente. Sabe que – aconteça o que acontecer – a noite de Natal será uma noite feliz.

Previsões

(30/12/2001)

 

            Era um homem cético. Desses que mal acreditam na própria sombra e para quem qualquer manifestação mística é um artifício para enganar os incautos. Até respeitava as religiões clássicas, mas se sentia incomodado com a onda esotérica que vinha ganhando força com a virada do século. Por exemplo: detestava astrologia. Quando lhe perguntavam seu signo, respondia, insolente, que era de Peixes, “com ascendente em lua e lua em camarão”. Apregoava, para quem quisesse ouvir, que acreditar nos astros era coisa de mulher. “Mulher é um bicho que sente frio nos pés, gosta de vinho branco e acredita em astrologia”, dizia, às gargalhadas. Sempre fora espirituoso, isso não se podia negar.

            Seu último trunfo, exibido aos amigos a qualquer oportunidade, era um vídeo no qual se dera ao trabalho de gravar as previsões dos astrólogos, tarólogos e pais-de-santo para o ano de 2001. Na verdade, fazia isso todos os anos, com o único objetivo de desmascarar os “profetas”. Ao fim de cada ano, comparava as previsões com os fatos e se empenhava em provar por “a” mais “b” que tudo não passava de bobagem. E com o vídeio sobre 2001 tinha um argumento e tanto.

            “Estão vendo só?”, bradava, em desafio. “Eles erraram tudo! Nem uma palavra sobre a transformação radical que o mundo iria sofrer no 11 de setembro! Nada! Não podiam nunca imaginar que o planeta fosse virar de cabeça para baixo! Ninguém podia imaginar. E, como eles só fazem variações em cima do óbvio, erraram completamente”, dizia. Os amigos ouviam e, mesmo aqueles que acreditavam no desconhecido, ficavam quietos. Não havia como negar que ele tinha razão.

            O cético estava exultante. Passou os últimos meses do ano exibindo a fita de vídeo para todo mundo, sempre jactando-se de ter desmascarado, de forma definitiva, as tentativas de fazer previsões para o futuro. Em dezembro, nem pensou em gravar as novas profecias que fatalmente viriam. Para ele, o assunto estava encerrado. Era tudo mentira – e pronto. Não precisava provar mais nada.

            Até que um dia, na semana entre o Natal e o Ano Novo, saiu para comprar uma agenda nova. Chegando em casa, folheou (como fazia todos os anos) a agenda velha antes de jogá-la fora, apenas para ter certeza de que não deixara algum papel importante entre suas páginas. Tinha mania de recortar notícias de jornal, jogando-as ao acaso dentro da agenda, que jamais usava para anotar compromissos.

            E foi assim que encontrou uma matéria do The New York Times, com data de abril, criticando o excesso de violência no cinema. Seu título era Horror, e ele talvez nem prestasse atenção nela, não fosse por um detalhe que fez seu coração dar um salto: ao jogar o recorte dentro da agenda – sem escolher a página – ele o guardara justamente no dia 11 de setembro.