CONTOS MÍNIMOS
2002
Era uma vez
(6/1/2002)
Era uma vez uma menina que acordou num jardim.
Ela própria ficou surpresa ao perceber que adormecera e, observando o gramado em torno, piscou os olhos. Pegara no sono sentada no banco, à sombra do pé de jamelão.
Olhou para cima, sentindo as gotas de sol que lhe salpicavam a pele, furando a copa. No meio do descampado, de relva rasteira, a árvore se destacava, frondosa. Era sua predileta. O banco em torno do tronco era na verdade uma mesa, que o avô mandara construir. Ele fizera cortar oito tábuas e com elas rodeara o tronco duas vezes, em duas alturas diferentes, de maneira que as pessoas pudessem sentar-se nas madeiras de baixo e usar as de cima como tampo de mesa. Uma solução que deixara a menina encantada. Desde então, ela pegava seus cadernos e lápis de cor e passava tardes inteiras sentada sob a árvore, desenhando e sonhando.
O único problema, no verão, eram os mosquitos. Os jamelões maduros, com sua casca preta e brilhante, se espalhavam pelo chão, transformando-se em manchas de um roxo profundo, que atraíam os insetos. O avô ficava furioso e ameaçava mandar cortar a árvore para acabar com a sujeira. A menina estremecia. Mas, no fundo, sabia que ele não teria coragem. Além do mais, apesar do incômodo dos mosquitos, havia uma beleza naquelas nódoas cor de violeta, mesmo as que enchiam o banco, manchando-lhe a roupa. A menina não se importava.
Antes de sentar-se, tomava o cuidado de limpar a tábua, mas apenas a parte de baixo. No tampo, gostava de ver as frutas amassadas formando desenhos, parecendo querer contar histórias. Era uma vez, imaginava a menina, olhando a mancha em forma de concha, ou aquela outra com formato de sorvete, ou ainda aquela na pontinha da tábua, parecendo um coração. Certa vez, tivera a idéia de passar o dedo na polpa de uma fruta desfeita e usar aquele sumo roxo para colorir o papel, como se fosse tinta. Ficara bonito.
Era assim, a menina, cheia de imaginações.
Espreguiçou-se. Sim, gostava muito de desenhar. Mas só apreciava os desenhos que tivessem um significado, que contassem histórias. É claro que nenhum desenho do mundo seria capaz de contar histórias como fazia sua avó. Ah, isso, não. A menina ficava encantada. Eram histórias antigas, muitas cantadas em versos, com frases inteiras que ela mal compreendia, mas cuja musicalidade a deixava hipnotizada. Todo fim de tarde, antes do jantar, ela se deitava ao lado da avó, no sofá, para ouvir seus contos. Já era um ritual.
Ah, e por falar nisso, já estava quase na hora. Precisava entrar, tomar banho. Depois seria só correr para a sala, onde as janelas de venezianas estariam abertas, deixando entrever a trepadeira de flores cor de maravilha. E esperar. Logo, a avó viria. E a menina, aninhada em seu colo, ficaria à espera da expressão mágica, que faria tudo recomeçar: era uma vez…
A marca da solidão
(13/1/2002)
No côncavo das palmas, o homem segurou com cuidado o gatinho. Observou-o enquanto ele se debatia. Mexia as patinhas dianteiras e traseiras, mas sem muita convicção, apenas mostrando disposição de brincar e não dando qualquer sinal de impaciência ou alarme. Assim, entre suas mãos, tão pequeno que era, com a barriga para cima, lembrava um bebê que, deitado no berço, agitasse mãos e pé tentando alcançar algum móbile suspenso. O homem sorriu.
Em seguida, sentando-se no sofá, acariciou o corpo do gato, pouco maior do que sua mão. O bichinho acalmou-se, de repente. Ficou imóvel, os olhos quase cerrados, parecendo saborear o momento de ternura. Tão pequeno e o animal já parecia dar valor a uma carícia. Era natural, pensou o homem. Afinal, fora abandonado na rua. E agora, por entre suas mãos calosas, aquele ser tão frágil era uma presença inesperada, subversiva, surpreendente. Os gatos precisam ser acariciados quando pequenos, lembrou ele, principalmente se tiverem sido separados da mãe muito cedo. Caso contrário, quando adultos podem tornar-se medrosos, tímidos ou mesmo agressivos.
E de repente o sorriso do homem cessou.
Por associação de idéias, pensou em um livro que acabara de ler, um livro antigo, esquecido havia muito, e que por acaso apanhara outro dia na estante. Era um livro de José Carlos de Oliveira, chamado “O pavão desiludido”, em que o cronista relatava os horrores de sua infância. Havia uma passagem, logo no início,em que Carlinhosde Oliveira contava como ele, menino miserável, faminto e cheio de vermes, um dia, apanhando água na bica, recebera da irmã um presente: um arco-íris. “Olhei e vi o arco-íris na água aberta em leque sob o céu azul. O sol devia estar criando uma ilusão, mas o que eu via era o milagre da multiplicação das lágrimas coloridas onde antes só havia lágrimas”. Mais adiante, o cronista falava de como ficara marcado pela infância difícil e sobre a relação terrível que tivera com a mãe: “Quando se cria um abismo assim entre duas pessoas da mesma família, sendo uma delas criança, mais tarde se verifica que nem todo o amor do mundo daria para encher o buraco”.
E, voltando a olhar o gatinho, que agora dormia, o homem sorriu um sorriso triste. Assim como Carlinhos, ele próprio tivera uma infância infeliz. E assim como aquele filhote que tinha nas mãos, também fora deixado para trás, num certo sentido. Para o pequeno animal, ainda havia salvação. Mas para ele – como fora talvez para o escritor – era tarde.
Suspirou. Sabia bem. Trazia uma nódoa indelével, o estigma daqueles a quem faltou, na hora exata, a carícia necessária. Trazia, no corpo e na alma, a marca da solidão.
Sonho recorrente
(20/1/2002)
Começou de repente. Numa noite, assim, sem mais nem menos, aconteceu pela primeira vez. Verdade que ele vinha tendo muitos sonhos, alguns com contornos de pesadelo, mas isso ocorria em determinadas épocas de sua vida – em geral quando estava trabalhando num livro – e depois passava. A diferença é que esse sonho, uma vez sonhado, começou a se repetir quase todas as noites. E, além de recorrente, era de uma clareza sobrenatural, assustadora.
A princípio, não ligou muito. Sendo escritor, era um homem imaginativo, com certa tendência para misturar realidade e fantasia. Mas, depois de algumas semanas, o sonho passou a intrigá-lo, tal a sua força e insistência.
Era sempre igual, com mínimas variações. Estava sentado num banco de pedra, os dois pés bem plantados na areia fofa de uma praia, por entre tufos de vegetação rasteira e touceiras maiores de uma planta que parecia pitangueira brava. Entardecia, talvez, ou talvez fizesse mormaço, pois, apesar do calor da areia envolvendo-lhe os pés, não sentia o sol incidir diretamente sobre seu corpo. De repente, ouvia, vindo de sua direita, um som indistinto, quase como o assobio do vento, se vento houvesse. Virava-se. E via uma bela mulher, caminhando em sua direção, vestida com uma túnica fina, os cabelos molhados caindo sobre os ombros. Ela sorria. Abria a boca para dizer alguma coisa para ele. Mas no momento exato em que ia emitir a primeira palavra, o sonho cessava. E ele acordava, frustrado.
À medida que o sonho se repetia, o homem ia ficando mais e mais perturbado. A vontade de entender o que aquela mulher dizia tornou-se, em pouco tempo, uma obsessão. Não conseguia tirá-la da cabeça. Mesmo acordado, a imagem de seu rosto, a leveza do andar, a boca se entreabrindo no meio sorriso para se dirigir a ele, tudo vivia rondando o pensamento do escritor. E ele sabia, por alguma razão estranha, que só deixaria de sonhar com a mulher no dia em que conseguisse, afinal, entender o que ela queria lhe dizer.
Até que uma noite foi para a cama determinado a sonhar até o fim. E, de fato, quando o sonho começou, teve certeza de que, daquela vez, seria diferente. Antes mesmo de ver a mulher aproximando-se, antes mesmo de ouvir sua voz como uma brisa, foi tomado por uma sensação de tal forma avassaladora que levou algum tempo para descobrir o que era. E ao descobrir seu coração deu um salto: estava apaixonado por aquela mulher. Virou-se. Lá estava ela, chegando. Sorria, como sempre, no momento em que seus lábios se entreabriam para dizer a frase, a frase que – agora estava certo – dessa vez ela diria.
“A arte é a transformação da dor”, disse a mulher, subitamente séria, fazendo-o estremecer.
No segundo seguinte, o homem estava acordado, suando. E foi com horror, com pavor mesmo, que se sentiu tomado pela certeza de que o sonho jamais voltaria. E ele nunca mais tornaria a ver a mulher que agora amava.
A cor do cosmo
(27/1/2002)
Um dia, há muitos e muitos anos, no século passado, houve um homem que se meteu dentro de uma cápsula pouco maior do que uma geladeira e se lançou no espaço. Foi pioneiro ao fazer isso e, assim sendo, entrou para a História. Mas, mais do que um nome, Yuri Gagarin deixou para trás sua marca: a frase que proferiu quando se tornou o primeiro homem a ter de nosso planeta uma visão externa. Vendo-nos lá de fora, disse: “A Terra é azul”.
“A Terra é azul”, repetimos, tentando acreditar. Assim passamos as últimas décadas do século vinte e entramos pelo século seguinte: tentando acreditar que a Terra é azul. Fica difícil, às vezes. Principalmente agora que surgiram relatos de astronautas dizendo que, visto lá de cima, o azul está cada vez mais pálido, cada vez mais desbotado e cinzento, por causa da poluição ou do buraco na camada de ozônio, não sei bem.
Foi portanto com curiosidade que outro dia, folheando os jornais, dei com a notícia de que tinham descoberto a cor do universo. A combinação da luz de todas as estrelas, feita por dois astrônomos americanos, tinha resultado num verde pálido, batizado por eles de verde cósmico. É a cor que enxergaríamos, se pudéssemos olhar todas as estrelas de uma só vez. Uma cor, inclusive, que vem mudando com o tempo e que vai ajudar os cientistas a entender melhor a evolução do cosmo.
E assim, se havia dúvida sobre o tom azul da Terra, pelo menos agora fica estabelecido: o universo é verde.
Mas desta vez eu acredito. Não tenho a menor dúvida de que os astrônomos acertaram. Eles próprios reconhecem que se surpreenderam ao descobrir que o universo é verde-água – já que não há estrelas verdes –, mas para mim não foi surpresa alguma. Li que a cor é uma mistura de 0,269 de vermelho, 0,388 de verde e 0,342 de azul e que os dois cientistas, para chegar ao tom exato, precisaram combinar a luz de mais de 200 mil galáxias, algumas a até dois bilhões de anos-luz de distância da Terra. Coitados, tiveram um trabalho danado. Mal sabem eles que não precisavam de nada disso. Poderiam ter falado comigo, me perguntado.
Reconheci de imediato aquele verde ao vê-lo estampado no jornal, a mistura suave de turquesa e água-marinha, o tom que antes eu tinha visto apenas em um lugar. Guardo comigo em casa uma amostra perfeita, de nuance e matiz exatos, da cor do cosmo. É verdade. Os cientistas não sabem, ninguém imagina, mas eu posso provar: o universo é exatamente da cor dos olhos da minha gata Colette.
Fragmentos
(3/2/2002)
A mulher estende o braço e, esticando-o junto ao vidro do boxe, pressiona o botão automático do aquecedor. A lembrança vem de um jato, quase como um tapa. Cai sobre ela junto com a água do chuveiro, ainda um pouco fria, quando ela salta o degrau de granito e entra no banho.
O restaurante está vazio. É tarde, madrugada já. Poucas mesas ainda ocupadas, na maioria por casais, preocupados apenas com si mesmos. Ela se levanta. Assim que se põe de pé, sente nas pernas o calor da vodca circulando nas veias, encharcando os músculos, amolecendo os ossos. Morde os lábios, tentando manter o equilíbrio. Sabe onde fica o banheiro, mas a distância parece maior, porque tem de ser vencida em linha reta, com um andar que não denuncie o quanto ela está tonta. Vai. Sente-se mais segura à medida que se aproxima do aquário, o imenso aquário de água salgada onde nadam peixes japoneses, ali posto para esconder as portas dos banheiros. O simples ato de andar parece ter depurado a mistura que lhe vai no sangue, incendiando-a. Fixa o olhar nos peixes, nas plantas aquáticas. Folhas e barbatanas ondulantes que lhe transmitem, por paradoxal que seja, uma sensação de firmeza. Assim que entra no toalete, tranca a porta por dentro e encosta-se a ela, respirando fundo. Conseguiu, pensa. Mas no mesmo instante estremece. Alguém bateu à porta. Sem saber bem por que o faz, abre uma fresta e espia. É ele. A loucura, o delírio. Ele a seguiu. Ela abre mais a porta, quer empurrá-lo. “Está louco?” Mas ele estanca-lhe o gesto no ar e, de posse de sua mão, tem aberto um flanco. Num segundo, antes que ela consiga entender o que se passa, ele entra e tranca-se com ela no banheiro. Tudo acontece muito rápido. O calor a envolve, ele a envolve. Toma posse dela de forma crua, quase brutal. E os dois, corpos fundidos no amálgama da paixão desvairada, contorcem-se em silêncio, lutando para não gritar, quase mortos de prazer.
A mulher fecha o chuveiro e encosta-se ao vidro do boxe, ofegante. Ainda mantém por um instante os olhos fechados, retardando o momento de voltar à superfície, ao real, esticar a mão e apanhar a toalha, enxugar o corpo e esquecer tudo.
Mas como esquecer?
As lembranças se impõem, vívidas, tirânicas, inesperadas. Fragmentos do passado anulando tudo. Passa a mão nos cabelos, perplexa. Estão um pouco oleosos. Será que chegou a passar xampu? Não se lembra. É incrível, mas, fechado o chuveiro, não se lembra se lavou ou não os cabelos. O banho e tudo o que nele se passou desapareceram, não existem. O presente lhe foi arrancado pela força da fantasia, pelo poder de uma lembrança. E, voltando a fechar os olhos, ela sorri. Sente-se saciada, esvaída, plena – como quem acaba de fazer amor.
Clóvis
(10/2/2002)
O rapaz levantou-se e, com seu jeito tímido, esticou o braço para apertar a campainha, sinalizando ao motorista do ônibus que queria saltar. A essa altura, o trânsito já estava lento e, por entre buzinas e roncos de motores, ouvia-se ao longe o som de um apito, que tanto podia ser de um guarda quanto de um mestre de bateria. Com seu embrulho de papel pardo debaixo do braço, o rapaz segurou-se com toda a força para agüentar a freada do ônibus. Era magro, muito magro, a aparência frágil reforçada por uma brancura de pele que contrastava com seus cabelos negros, cortados curtos, à escovinha.
Saltou. Olhando para um lado e para o outro, caminhou pela calçada de pedras portuguesas com seu passo leve, de pés finos, metidos em sandálias franciscanas de couro cru. A rua estava um tumulto. Por toda parte, gente falando alto, batuques, balbúrdia. Nas portas dos bares, foliões aglomerados, cantando, dançando, bebendo. Em uma transversal, via-se o colorido de penachos, plumas, chapéus, no trecho em que o bloco estava concentrado. Foi por aquela rua que o rapaz enveredou.
Ninguém olhava para ele. Quem prestaria atenção num rapaz franzino, perdido no meio da rua, num dia de carnaval?
Seguiu até um recuo da transversal, onde, protegido por uma banca de jornais fechada, parou. E, com as mãos um pouco trêmulas, começou a abrir o embrulho de papel. De dentro dele, tirou a túnica estampada, com vistosas flores amarelas sobre fundo preto, que enfiou por cima da roupa, fechando-a até o pescoço. Em seguida calçou as luvas, sentindo as gotas de suor que já lhe escorriam pelas costas. Com as mãos enluvadas, pegou o objeto envolto num pedaço de pano preto, que escondera dentro do embrulho, e guardou-o no bolso da túnica. Só então enfiou a máscara.
Enquanto caminhava na direção do bloco, olhou por um instante o próprio reflexo no espelho de uma vitrine. Observou a figura que ali estava, com sua túnica negra, onde as flores amarelas pareciam manchas de um sangue alienígena. Ergueu o braço como a convencer-se de que tinha poder sobre aquele mascarado, que lhe parecia alheio a ele mesmo.
E seguiu, misturando-se no bloco, que já fervilhava. Abriu caminho até chegar ao ponto onde o povo mal podia se mover. Em torno, a multidão rugia. Foi então que, por baixo da máscara, o rapaz sorriu um sorriso maquiavélico – que ninguém viu. Seu rosto agora estampava apenas a figura estática, pretensamente assustadora, da fantasia de clóvis, com dois círculos negros em torno dos olhos, semelhantes a olheiras imensas, irreais. Foi também por baixo da máscara de pano que aos poucos seu sorriso se transformou num esgar. No meio da multidão fremente, ele sabia que estava a salvo. A multidão o absorvia e absolvia. Era seu álibi, seu perdão. Ali, era livre para tudo. Inclusive para morrer. Ou matar.
Lua cheia
(17/2/2002)
Depois de tomar um banho, a mulher saiu nua pela casa apagando todas as luzes. Todas. O calor estava muito forte e ela achava que a luz acesa só serviria para esquentar ainda mais. Queria deitar-se logo, com o ventilador ligado, e dormir antes de começar a suar. Mas foi ao tocar o último interruptor, quando o apartamento ficou às escuras, que ela percebeu uma luminosidade leitosa penetrando pelas frestas da cortina de bambu. Só então percebeu que era noite de lua.
Surpreendeu-se. Nos últimos dias, o tempo tinha estado nublado e ela não acompanhara a lua crescendo no céu, como gostava de fazer. Chegou à janela e, afastando o painel da cortina, espiou. Sua surpresa aumentou. Não apenas havia lua, mas era uma lua redonda e perfeita, recortada contra o céu muito nítido, que a chuva dos últimos dias deixara lavado.
Lua cheia.
Agora, abrindo um pouco mais a cortina, viu seu corpo banhar-se daquela luz aguada, de uma eletricidade quase fria. E, com a cortina aberta, deitou-se na cama.
Deixou que a luminosidade branca se deitasse com ela, espalhando-se sobre seu corpo nu e sobre toda a cama, igualando em prata a pele morena e o estampado pastel dos lençóis. Baixando a ponta do queixo até sentir que ele tocava a carne, observou o próprio relevo, em primeiro plano os seios túmidos, depois o ventre liso com a cratera do umbigo ao centro, mas cuja paisagem nada tinha de lunar, uma vez que toda a planície estava orvalhada pelas gotículas que não chegara a secar ao sair do banho. Adiante, a penugem das coxas despontando com energia, com o mesmo arrepio que lhe enrijecia os mamilos, e as pernas grossas, de joelhos levemente dobrados, lembrando um pouco o perfil de colinas gêmeas, Dois Irmãos recortados contra o fundo escuro.
Suspirou, sentindo a excitação crescer diante da própria paisagem, presa de um calor que lhe umedeceu ainda mais o ventre. E pensou no homem que não estava ali. No homem que era seu – disso não tinha dúvida – mas que se ausentara. A trabalho, dissera. Talvez fosse mesmo. Que importava?
Enquanto se olhava sob a luz da lua, tentou imaginá-lo, naquele mesmo instante, com outra. Ele, por entre lençóis, quem sabe também sob a luz da lua, aquela mesma lua, cujos raios, como uma fibra ótica, eram capazes de tecer vínculos, de eliminar distâncias. E ao pensar assim, ao imaginar seu homem com outra mulher, sentiu que estremecia. Mas foi só depois de um instante que entendeu: não era de ciúme que tremia. Era de prazer.
Jardinagem
(24/2/2002)
A mulher observou a própria mão, muito branca, envolvendo o talo da flor, um segundo antes de cortá-lo. As rosas junto à cerca eram graúdas, com espinhos parecendo chifres de rinoceronte em miniatura, e ela sabia que corria o risco de se ferir. Mas preferia assim. Ao contrário das vizinhas, não usava luvas de jardinagem. Gostava de mexer nas plantas com as mãos nuas, de sujar as unhas na terra, sentir nos dedos o cheiro da grama recém aparada.
Com um golpe seco da tesoura, cortou o talo da flor. No instante seguinte, com a mão ainda parada no ar, ergueu a vista e olhou por cima da cerca baixa, feita de ripas de madeira pintadas de branco. Do outro lado, de pé sobre um gramado irrepreensível, a vizinha estava parada, olhando-a. A mulher sentiu-se exposta, vigiada. Voltou a observar as próprias mãos, nuas, quase como se acabasse de ser flagrada fazendo algo errado. Vivera muitos anos no Brasil. Era isso. De volta ao subúrbio da cidade americana onde nascera, sentia-se uma estranha. Não pertencia mais àquele lugar, embora tivesse passado ali os primeiros quinze anos de sua vida. Mas precisara voltar. Não tivera alternativa. Sabia que só assim conseguiria sobreviver.
Ouch!
Apesar da dor, sorriu ao perceber que a interjeição saíra com sotaque americano. Com a mão esquerda, espremeu o dedo indicador da mão direita de onde brotava a gota de sangue. No talo da rosa, o pequeno chifre parecia olhar para ela, como a vizinha fizera pouco antes. Deu de ombros. Pensou em levar o dedo à boca e chupar o sangue, mas não teve coragem. Seria demais. Nas pontas dos dedos, a matéria escura da terra ainda era visível, entranhada nas ranhuras, nos mínimos sulcos em torno das unhas.
Nesse instante, ouviu o barulho da caixa de correio. Virou-se e viu o carteiro, que acenou para ela antes de seguir caminho. Com a rosa na mão, no dedo ferido ainda um filete de sangue, a mulher foi até a caixa apanhar a correspondência.
Seu coração mudou de ritmo enquanto caminhava, sem que soubesse por quê. Mas foi quase sem surpresa que encontrou, entre folhetos de propaganda e uma correspondência do banco, um envelope debruado de listras verdes e amarelas.
Carta do Brasil.
Reconheceu de imediato a letra da amiga. Com dedos trêmulos, rasgou depressa o envelope, cuja superfície branca ficou marcada por suas impressões digitais. Tirou a carta e leu. O coração, agora descompassado, latejava na garganta. Os olhos turvos correram linhas, palavras, letras, embaralhando tudo e extraindo delas o significado da notícia que mais temia, embora já esperasse: ele estava morto. E, quase esmagando a carta entre as mãos, mas sem um soluço sequer, a mulher levou à boca o dedo sujo de terra e sangue.
O ritual das lambidas
(3/3/2002)
Apesar de volumosa, ela é capaz de espreguiçar-se com elegância. Mais do que isso, com volúpia. O corpo farto, o ventre generoso, os pêlos sedosos que recobrem tudo – tudo, à exceção do nariz cor-de-rosa – exibem-se com harmonia, num ritmo próprio, enquanto ela se movimenta, lânguida. Esticando as patas dianteiras, alonga-se para trás, até o ponto de tensão máxima, e eu quase posso ouvir o estalar de suas pequenas vértebras.
Minha gata sabe que estou aqui. Sabe que a observo de longe, que tenho os olhos fixos em seu corpo ágil, mas finge não perceber, simplesmente porque nada nem ninguém, nenhuma presença ou testemunha, seria capaz de alterar o curso do que está por acontecer. Por um instante, ela pára. Vejo, meio de perfil, seu rosto largo e curto, que parece o de uma coruja, a parte escura servindo de moldura à máscara branca. Vira-se e me encara com seus olhos de botão. Em seguida volta-se para si mesma, decidida a ignorar-me. E eu sei bem por quê. Vai começar o ritual das lambidas.
Primeiro, deita-se de lado, deixando entrever a parte anterior do corpo, onde, em contraste com o dorso escuro, seu pêlo é de uma alvura difícil de acreditar. Já ouvi falar que existe, entre os amantes dos felinos, duas correntes opostas: alguns acham que os gatos, embora capazes de zelar pela própria higiene, precisam ser lavados de vez em quando; outros crêem que a natureza os dotou (com a exceção, talvez, daqueles de pêlo longo) de uma tal capacidade de se manter limpos que o banho se torna totalmente dispensável. Pertenço a esta última categoria. A alvura das patas, do peito, da barriga de minha gata são uma prova de que eles não precisam de água – nunca. E agora lá está ela. Preparando-se para sua ablução.
Começa pela barriga, lambendo os pêlos com paciência e zelo, sempre no mesmo sentido, deixando a cada lambida uma trilha cintilante. Depois, dedica-se à difícil tarefa de lavar as próprias costas, contorcendo-se numa posição improvável, para que não lhe escape nenhum centímetro. E só então prepara-se para o mais difícil, o grande desafio ao qual se entrega todos os dias: lamber o próprio pescoço. Depois de estufar o peito com orgulho, dá a primeira lambida, de cima para baixo, como se tentasse engolir o próprio queixo. Uma duas, três vezes, num esforço que logo parece recompensado, pois o branco do colo torna-se mais do que nunca imaculado, um perfeito colar elizabetano que lhe emoldura o rosto altivo, de ar senhorial.
E, olhando-a assim, sou de repente tomada por uma certeza definitiva. A de que, em algum tempo perdido no passado, ela foi uma rainha.
A casa de vidro
(10/3/2002)
Durante anos eles planejaram construir a casa. O terreno fora comprado pouco depois de se casarem, a prazo, mas já estava quitado quando a construção começou. Como o terreno era numa encosta, debruçado sobre o mar, concordaram em fazer uma casa toda de madeira e vidro. Acima de tudo, vidro. Iriam assim aproveitar a beleza da paisagem o tempo todo. Ela atravessaria as paredes translúcidas e lhes alcançaria as retinas, incessantemente. Fora idéia da mulher que, embora com outra formação, era arquiteta vocacional.
Fizeram uma longa pesquisa em busca da madeira ideal, de diferentes tipos para cada pedaço da casa, incluindo dormentes comprados em depósitos de demolição e toda a sorte de toras, caibros, ripas. Pesquisaram muito também antes de encomendar os vidros, temperados para resistir à força do vento, que ali, naquela encosta, às vezes uivava, ameaçador.
A obra, como todas as obras, durou meses. Muitos meses. Quase dois anos. Foi um período desgastante, com muitas brigas, discussões, frustrações e esperanças. Na hora dos acabamentos, pensaram que seria mais fácil, mas na verdade foi pior. Mal acreditaram quando a casa finalmente ficou pronta.
Só que não se mudaram logo. Fizeram questão de comprar tudo novo, cada peça utilitária ou de decoração – o que também levou tempo. Queriam que a casa tivesse a marca de uma nova fase, de um recomeço, e só entrariam nela para morar quando todos os novos móveis, eletrodomésticos, enfeites, tapetes estivessem lá. Compraram tudo. Tudo menos cortinas. Tinham decidido que na casa de vidro não haveria cortinas, para não perderem a paisagem nem por um instante.
Mas quando, afinal, chegou o dia da mudança, aconteceu uma coisa estranha. Os dois, marido e mulher, foram tomados por uma inquietação. Não sabiam por quê. Era alguma coisa latejando no fundo, disfarçada, na qual não tiveram muito tempo para pensar, em meio à confusão da mudança. Foi só à noite, quando tudo já estava arrumado, quando todos se foram e ficaram só os dois, que eles começaram a entender. Com a chegada da noite, quando a luz exterior morreu, todos os vidros que os cercavam se transformaram em espelhos.
E com o passar dos dias compreenderam, afinal, que se tinham tornado dois prisioneiros. Prisioneiros de seus próprios rostos, seus olhos, que do espelho das paredes miravam-nos todas as noites sem piedade, lançando-lhes na cara a crua verdade do vazio em que viviam, sua própria infelicidade, numa vigilância constante – e implacável.
Pegadas
(17/3/2002)
Naquela segunda-feira, a mulher acordou decidida a fazer exercício. Estava precisando perder peso. Caminharia todos os dias, mas não pela calçada e sim pela beira d’água. A paisagem seria um estímulo a mais. Saiu. Não tomou nem um gole de café. Nada, nada. Foi em jejum, tal a vontade de começar seu programa de emagrecimento.
Chegou à praia ainda bem cedinho, no momento em que o sol despontava por trás das pedras, atingindo a areia num vôo rasante, oblíquo. De frente para o nascente, a mulher olhou, ofuscada, para toda aquela luz. A água brilhava como se feita de papel laminado – um mar de teatro, um mar de mentira.
Baixando a viseira para proteger o rosto, ela começou a andar, os olhos fixos na areia. Caminhava pela parte dura, lambida pelo mar, aquela região onde antigamente os tatuís brotavam como caroços, a cada onda escorrida. Mas agora já não havia tatuís. Apenas pegadas. Poucas, é verdade, porque ainda era muito cedo. Mas a atenção da mulher se prendeu naquelas marcas. Era curioso observar sua diversidade. Pegadas de tamanhos e formatos vários, que pareciam contar histórias, como se a maneira de pisar, a maior ênfase na ponta dos pés ou no calcanhar, o tamanho das passadas, a marca do arco da sola, tudo, tudo que na areia ficara impresso revelasse a vida daquelas pessoas que por ali tinham passado. E, sem que soubesse exatamente por que o fazia, a mulher diminuiu a marcha e moldou o pé numa daquelas pegadas, pisando no lugar exato em que outra pessoa, antes dela, havia pisado.
Foi como um soco no estômago. A revelação lhe veio clara, límpida – assombrada. Viu, como num filme, a história do dono daquele passo (era um homem), sentiu seus sentimentos, viveu suas angústias, saboreou seus prazeres. Esteve dentro de seu corpo e de sua alma, por um segundo apenas, mas de forma tão completa que ficou paralisada, sem ar. Precisou de algum tempo para se recuperar. Caminhando com cuidado, afastou-se para a beira d’água, pisando quase com terror a areia que lhe trouxera o desconhecido. Imóvel, tentou entender. O que teria acontecido? Sentiu o estômago roncar. Só então lembrou-se de que estavaem jejum. Talvezfosse isso. Lera um dia, num romance, a história de uma mulher que, em jejum, via as pessoas por dentro.
Logo seus olhos se prenderam em outra pegada. Não resistiu. Moldou o pé na marca impressa. E nem precisou fechar os olhos. Era a pegada de uma mulher, uma mulher apaixonada. Sorriu, deixando-se invadir – agora sem medo – por aquela sensação nova, avassaladora, deliciosamente sobrenatural. E ali ficou por muito tempo, enquanto o sol caminhava céu acima, fascinada com seu novo dom, o poder de enxergar a alma das pessoas. Sem saber que aquilo poderia ser também uma maldição.
A corda
(24/3/2002)
A mulher foi caminhando devagar em direção à praça. Sem pressa, atravessou a rua e seguiu pela calçada, observando que havia pouco movimento, de carros e de gente. Era uma bela manhã. Depois de vários dias de calor e mormaço, o sol surgira com uma suavidade de outono.
Ao entrar na praça, aproveitando a sombra das amendoeiras que ali se enfileiravam, foi tomada por uma súbita sensação de reencontro. O ar estava impregnado de um cheiro morno, peculiar, meio abafado, um cheiro que ela logo identificou com o dos verões de sua infância. Essa constatação a fez inspirar com força redobrada. Era bom alimentar-se daquelas sensações, sentir a doçura do ar lhe impregnando os pulmões.
Continuou caminhando. Num dos cantos da praça, havia um enorme quiosque de flores e plantas, por cujas aléias ela às vezes gostava de caminhar. Mas naquela manhã queria alguma coisa mais humana, urbana, viva. Não plantas apenas, com seu colorido e aroma. Precisava ver gente. Decidiu ir até o recanto dos brinquedos. Achou que seria boa idéia sentar-se num dos bancos e apreciar a brincadeira das crianças.
Assim que se sentou no banco, observou um grupo de meninas à sua frente. Eram cinco. E, ao contrário das outras crianças, que subiam e desciam nos balanços e gangorras, as cinco garotas estavam entretidas numa brincadeira que a mulher julgava fora de moda: pular corda. Claro que não era uma corda feita de corda mesmo, mas uma espécie de cabo de náilon, com ponteiras de plástico vermelho, vistosas, tudo muito diferente das cordas toscas que se pulava em sua infância. Mas, de qualquer maneira, era bom apreciar aquelas meninas divertindo-se com uma brincadeira tão antiga.
Ficou olhando. As duas meninas mais velhas tinham acabado de pular juntas, uma de frente para a outra, e agora rodavam a corda no ar para que as três menores pulassem. Mas nenhuma delas se dispunha a começar. Pareciam com medo. Talvez ainda estivessem aprendendo a pular. Até que uma delas, a mais franzina, respirou fundo, tomando coragem, e entrou. Entrou sem tocar na corda. Pulou no tempo certo. Ficou ali dentro pulando, no ritmo exato, satisfeita, um sorriso estampado no rosto. Tinha conseguido.
E, olhando a cena, a mulher começou a refletir sobre a dor. Quando ela se apresenta, é melhor dar o impulso e entrar. Integrar-se nela, seguir seu ritmo, tendo apenas o cuidado de se manter em atenção – sem nunca se prostrar. Mas é importante vivê-la integralmente, sem medo. Tornar-se parte dela. Porque sofrer é um pouco como pular corda. E, pensando assim, a mulher abriu um sorriso – parecido com o da menina à sua frente.
Sol e chuva
(31/3/2002)
Foram muitos dias de sol.
Muitos.
Inúmeros, incontáveis. Dias de um verão perfeito e tardio, que veio quando já não esperávamos por ele. Depois de um ano novo sem brilho, de um carnaval sem graça, de um verão às escuras, sombrio, ameaçador, cheio de umidade, doença e mosquitos – estávamos desesperançados.
E aí aconteceu.
No lugar das águas de março, surgiu no céu um sol de primeira grandeza. Um sol que fez nascerem manhãs de uma beleza quase obscena. Manhãs em que o mar – cúmplice – fez a sua parte, pousando com mansidão sobre as areias, como se temesse maculá-las. Um mar incrivelmente limpo, de verdes, transparências e brilhos, onde nadaram peixes de todos os tamanhos, de estirpes diversas. Um mar que em sua delicadeza formou piscinas. Um mar que em sua doçura era ainda – como se não bastasse – morno, quase quente.
Quente era o ar também, e muito. Mas nas esquinas, à tarde, às vezes, soprava uma brisa. É verdade. Houve uma vez esse verão inesperado onde, ainda por cima, havia aragem. Foram dias, muitos dias, de perfeição, em que a paisagem do Rio se exibiu, entrou por nossos olhos com acinte, quase com escárnio – de tão linda.
Mas um dia, esse verão, tão tardio e belo, acabou.
Acabou de repente – numa madrugada de temporal. Eu estava acordada. Não sei por que, mas ouvi os ruídos do vento e me levantei. O temporal se anunciava lá por cima do Sumaré, em nuvens mais negras que a noite. Dava para ver, para além dos prédios, a coluna cinzenta da chuva se derramando, cada vez mais perto, cada vez mais perto. No céu, os relâmpagos. Não havia vento. E é quase certo que não houvesse trovões. Foi um temporal imponente, mas silencioso, que se estendeu sobre a cidade com reverência e cerimônia. As águas se despejaram diante de mim numa precipitação perfeitamente vertical, a ponto de sequer respingarem os vidros das janelas. Mas eu sabia, já, naquele instante, que o verão estava terminado. E pensei, como a consolar-me, que assim pelo menos deixaria de fazer tanto calor.
Foram dias quentes demais, sem dúvida. E muitas foram as nossas queixas do calor, queixas pequenas, impensadas. Quando a temperatura sobe demais, nos exasperamos. Mas, quando chega o outono, num instante olhamos para trás com nostalgia. Ainda mais se tivemos um verão assim, que veio como um brinde – tardio, luminoso e perfeito.
Mas não faz mal. Novos verões virão.
O menino velho
(7/4/2002)
Desde pequeno, ele era assim. Gostava de coisas antigas, guardava, dentro de caixas e pastas, recortes de jornais sobre os mais diversos assuntos, com a sensação de que um dia precisaria pesquisar as informações ali armazenadas. Tinha também especial prazer em observar o comportamento dos mais velhos, dos muito velhos. Quando estava com 8, 9 anos, costumava sentar-se à porta da loja de seu pai e ali ficava, horas e horas, conversando com os fregueses que apareciam, todos homens feitos. Mas seu interesse maior recaía sobre um amigo do pai, de longa data, um senhor de 80 anos a quem chamava de avô. Dele, ouvia histórias sobre o Rio Antigo, sobre os fascínios e as malandragens da Lapa clássica, as festas nos salões e nas gafieiras, os primeiros banhos de mar nas praias quase desertas de Copacabana e Ipanema.
Adolescente, começou a colecionar objetos. Livros, discos, fotografias, folhetos. Tinha um faro instintivo para o valor das coisas antigas, um respeito visceral pelas lembranças do passado – sem que jamais tivesse sido ensinado a agir assim. Colecionava coisas antigas como se fossem brinquedos.
Adulto, tornou-se um pesquisador. Era capaz de ficar horas e horas dentro de uma biblioteca, um sebo ou um museu, ou mesmo passeando pelas ruas de casario antigo, no Centro da cidade, onde até o arredondado das pedras do calçamento o deixava comovido, por saber que por ali haviam pisado milhões de pés que não existiam mais. Assim como acontecera quando era criança, seus melhores amigos eram homens mais velhos, com quem conversava de igual para igual, com os quais trocava experiências e idéias. E a quem ajudava, sempre que podia. Tinha um respeito enorme por aquelas pessoas que a sociedade parecia desprezar. Os velhos eram, para ele, a personificação da memória cultural e estética do homem. Deviam ser cultuados – nunca esquecidos.
E assim os anos se passaram. Até que ele próprio começou a envelhecer. Mas apenas externamente. Por paradoxal que fosse, sua convivência – pela vida inteira – com coisas e pessoas do passado parecia deixá-lo cada vez mais jovial, vivo e iluminado.
Um dia, viu numa fotografia uma placa, na porta do quarto de Frank Sinatra (já velho), que dizia: “Aquele que morrer com mais brinquedos, ganha”. E mandou fazer uma igual. No dia em que completou 60 anos, deu uma festa para a inauguração da placa. E chamou todos os seus amigos – os velhinhos loucos, meio desajustados, meio decadentes, os colecionadores de quinquilharias de toda espécie com quem se dava. Foi um acontecimento. E naquela noite ele dormiu satisfeito. Com a doce sensação de que podia até estar ficando velho, sim – mas que continuaria a ser um menino. Eternamente.
Ritual de preparação
(14/4/2002)
Eram sete horas da noite. No quarto, a luz da lâmpada fria – um vício, ainda, do tempo do racionamento – transformava os bibelôs da estante, feitos de louça barata, em figuras de biscuit. Seus pequenos rostos, muito brancos, olhavam-se uns aos outros, ou para o infinito, com olhares que mesclavam piedade e melancolia. A
cama, de madeira escura, quase negra, tinha nos pés e na cabeceira floreios e bolas sobrepostas, no mesmo estilo da cômoda, o que dava ao quarto um ar sombrio. As cortinas eram de náilon, uma imitação de renda, e sobre o chão de tacos em duas cores não havia tapete. A um canto, uma cadeira de balanço, de palhinha, balançava quase imperceptivelmente, como se alguém tivesse acabado de se levantar dela.
A velha, alheia a tudo o que a cercava, estava sentada na beirada da cama, diante do guarda-roupa, cujas portas tinham sido abertas. Seus olhos perscrutavam as roupas penduradas nos cabides, em profunda meditação. Cruzava e descruzava os braços, suspirava. Mordia os lábios. Batia levemente com os pés no chão de tacos, como se tentando controlar uma crescente irritação. Até que de repente seu rosto se iluminou. Ergueu-se e, dando um passo à frente, estendeu as mãos e tocou com a ponta dos dedos um vestido de crepe vermelho que, muitos anos antes, usara num casamento. Sabia que estava apertado. Mas agora tivera uma idéia.
Tirou-o do cabide. Despiu o roupão e vestiu-o. Não pôde fechar o zíper nas costas, mas e daí? Olhando de frente, estava perfeito. Era o que importava. Quando ficasse sentada, imóvel, seria impossível alguém saber que seu vestido estava aberto nas costas. E, sorrindo, ela pensou que era hora de se pintar.
Espalhou primeiro a base líquida, empregando as duas mãos na tarefa. A substância pastosa, cor de carne, recobriu a pele estéril, preencheu os sulcos que, como rios em miniatura, cruzavam todo o rosto, mas acabou acentuando-os em vez de ocultá-los. Sobre a pasta, o pó. E, em torno dos olhos, o risco escuro do lápis, contornando as pálpebras flácidas. Por último, o batom. O batom vermelho, vermelho como o vestido, vermelho como o sangue que lhe corria nas veias – quente, ainda.
Olhou-se, satisfeita. O ritual de preparação estava terminado.
Com o coração batendo cada vez mais forte, foi até a sala e se sentou no sofá, diante da TV. Olhou o relógio de parede. Faltava pouco mais que um minuto para começar. Todas as horas de seu dia convergiam para aquele instante. Dali a poucos segundos, cinco, quatro, três, dois, um, a contagem regressiva faria explodir na tela o rosto adorado, o olhar grave, a voz profunda, as sobrancelhas bem desenhadas, os cabelos já apresentando junto à testa uma mecha acinzentada – a imagem que era o único prazer, o único momento de colorido e êxtase em sua vida sem sentido.
Estava apaixonada pelo locutor do telejornal.
Burro-sem-rabo
(21/4/2002)
Eu estava do outro lado da rua quando ele apareceu, virando a esquina. Andava sem aparentar muito esforço, empurrando por cima da calçada seu carrinho repleto de pedaços de madeira, papelões e caixas, numa pilha imensa, amarrada com capricho. Era forte e ágil, apesar da idade, e chamava a atenção pelo contraste entre a cabeça branca e a força que parecia ter nos braços. Era o que no Rio, desde os tempos antigos, se chama de burro-sem-rabo.
Sempre que vejo um deles passando na rua, paro e observo. Eles me fascinam. Há uma grandeza nesse trabalho bruto, na humildade desses homens que andam encurvados, puxando ou empurrando seus carrinhos, usando o corpo como instrumento de força.
Outro dia, folheando um livro com fotografias de Marc Ferrez, tiradas no século dezenove, parei numa página dupla, com uma imagem captada em 1899. Era uma foto da antiga Estação D. Pedro II, com sua esplanada de paralelepípedos, cheia de gente. A legenda dizia que ali, parados diante da estação, estavam exemplos de todos os tipos de transporte da época: o landau, a vitória, o carroção, o tílburi, o bonde puxado a burro, o carrinho de mão. Observei melhor a foto. O tal carrinho de mão era um burro-sem-rabo. O mesmo pranchão de madeira sobre uma estrutura de ferro, os mesmos puxadores, as duas rodas. Olhando-o assim, ninguém diria que, de todos aqueles meios de transporte, seria o único a continuar circulando depois que o relógio dos séculos virasse duas vezes.
Foi pensando nisso que continuei ali, do outro lado da rua, observando o burro-sem-rabo que passava na calçada. De repente, ele parou. Parou com um tranco. A roda do carrinho parecia ter esbarrado em alguma coisa. Eu, que observava à distância, percebi que era um desnível da calçada, cujo cimento fora talvez deslocado por uma raiz. Mas o homem, com a visão toldada pela enorme pilha de papel e madeira, não conseguia ver o que se passava. Tentou e tentou, deu marcha-a-ré, forçou várias vezes – e nada. Comecei a ficar aflita. O carrinho estava empacado.
Só depois de muito esforço, ele conseguiu ir em frente – para meu alívio. Mas não tinha andado nem vinte metros quando parou de novo, dessa vez num trecho onde a calçada se alargava, sob uma árvore centenária. Cheguei a pensar que as rodas do carrinho estivessem novamente presas, mas logo vi que não. O homem remexeu no bolso e dele tirou um saco plástico. No mesmo instante, foi cercado por dezenas de rolinhas.
A cena me enterneceu. Ele jogava milho para elas. Talvez o fizesse sempre que passava por ali, porque as rolinhas pareciam conhecê-lo, cercando-o, quase vindo comer em sua mão. Quando o homem se pôs novamente em marcha, elas se alvoroçaram, como se pedindo mais.
E lá se foi o burro-sem-rabo, empurrando seu carrinho imenso, os passarinhos voejandoem torno. Pareciao final de um filme de Carlitos.
Pequenas assombrações
(28/4/2002)
Quando me ligaram, de manhã cedo, para dizer que meu amigo tinha finalmente morrido, não chorei. Ao contrário, tive uma sensação de alívio. Ele estava doente há vários anos. nos últimos meses, vinha enfrentando o pior período da doença e fazia isso com serenidade e bravura. Assim, eu estava preparada. E creio que ele também: numa de nossas últimas conversas, ele me dissera que já não tinha medo de morrer, que esse temor desaparecera por completo. Foi, portanto, com uma calma triste, que recebi a notícia.
O enterro seria no fim do dia. Como tinha muitas coisas para resolver, decidi ir até o escritório e voltar para casa no meio da tarde. Antes de sair, contei para minha mãe o que tinha acontecido, pois sabia que ela também gostava muito de meu amigo. Perguntei se queria ir ao enterro comigo e ela respondeu que sim. Saí.
Trabalhei o dia todo procurando não pensar no assunto. No meio da tarde, voltei para casa. Assim que enfiei a chave na porta, senti o cheiro de flor. Um aroma forte e adocicado, muito intenso. Aquilo me irritou, pois logo concluí que minha mãe – sempre apressada em tudo o que faz – já tinha saído para comprar as flores que levaria ao cemitério. Eu, que não gosto de cheiros fortes, já me imaginei espirrando o tempo todo dentro do carro. Larguei a bolsa no sofá da sala e gritei por ela, mas não tive resposta. Procurei pela casa toda. Nada. Ela não estava. Achei estranho, mas dei de ombros. Nem me dei ao trabalho de ir até a área olhar as flores. Imaginei que estivessem lá, num balde, porque o cheiro era mais forte na sala e na cozinha. Fui tomar banho, torcendo para que minha mãe voltasse logo, caso contrário, iríamos chegar atrasadas.
Estava saindo do banho quando ouvi a voz de minha mãe, entrando em casa. “Que cheiro de flor!”, disse ela. Vesti o roupão e fui até a sala. Já ia dizer alguma coisa quando minha mãe continuou: “Você comprou?”. Erguendo o rosto, ela farejava o ar, concentrada. De repente, seu rosto se iluminou. “São angélicas… Eu adoro angélicas. Foram as flores que usei na grinalda, no meu casamento”. Caminhei até junto dela, apertando o roupão contra o peito. “Mamãe, você perguntou se eu comprei as flores?” Ela me olhou, sem entender. Mas de repente, como se houvesse entre nós um entendimento mudo, fomos as duas andando em direção à área de serviço. O cheiro de flores ali era ainda mais forte. E, chegando lá, nossos olhos convergiram para o tanque – vazio.
Não havia flor alguma. Nem ali nem em qualquer outra parte do apartamento.
Sem dizer nada, eu e minha mãe nos entreolhamos e voltamos para a sala. Parei por um instante diante da janela, observando as montanhas. “São essas pequenas assombrações, que às vezes nos acontecem”, disse minha mãe atrás de mim. Sorri para ela. E num segundo me vi na loja de flores ao lado da capela, comprando para meu amigo um belo ramo de angélicas.
A última ressaca
(5/5/2002)
Ele acordou com uma ressaca daquelas. Mas viu que era ainda bem cedo e pensou logo que a primeira coisa a fazer seria dar um mergulho no mar. Não que estivesse com dor de cabeça, isso não. Por mais que bebesse, sua cabeça não doía nunca. O problema era a fotofobia. Quando se excedia, acordava de um jeito que mal podia tolerar a luz. Paradoxalmente, um mergulho no mar era sempre o melhor remédio para suas ressacas. Sendo assim, precisava munir-se de um bom chapéu, botar os óculos de lentes espelhadas, bem escuras, e rumar para a praia enquanto o sol não se firmava no céu. A água salgada o deixaria em condições de enfrentar o dia.
Já de óculos, com o chapéu de pano enterrado na cabeça e o olhar fixo no chão, desceu as escadas. Solteiro, morava sozinho no segundo andar de um prédio pequeno, sem elevador e sem porteiro, um desses bem antigos, em que a beleza e o vigor da construção compensam os problemas com os encanamentos. Chegando ao térreo, baixou ainda mais a aba do chapéu e saiu caminhando em direção à praia, que ficava a apenas dois quarteirões.
Era um sujeito distraído, ainda mais quando estava de ressaca. Tinha também o hábito de caminhar assobiando baixinho. Assobiar deixava-o relaxado, fazia-o divagar. E foi assim, com a cabeça longe dali, que venceu o primeiro quarteirão e atravessou a rua. Foi só no outro quarteirão que começou a ter uma vaga sensação de estranheza, qualquer coisa incomodando no fundo da mente, cuja causa não soube identificar. Mas não ligou. Logo seu pensamento tomou outro rumo. Concentrou-se na canção que assobiava, cuja letra tentava recordar, sem conseguir. Que música era aquela mesmo? E de quem era? Não se lembrava. Foi em frente.
Ainda assobiando, preparou-se para atravessar as pistas da praia. Ergueu um pouco a vista, espiando por baixo da aba do chapéu e viu a rua vazia. A sensação de estranheza cresceu. Talvez fosse mais cedo do que pensava. Seguiu.
Ao dar os primeiros passos na calçada, notou que as pedras portuguesas estavam recobertas por uma camada pegajosa que aderia à sola de seu chinelo de borracha, retardando-lhe o andar. Cada vez mais inquieto, franziu o rosto, embora continuasse assobiando baixinho. Assobiava para tentar manter-se calmo. Havia naquela película que recobria o chão um toque de mistério, uma insinuação sobrenatural. Teve vontade de erguer o rosto e olhar em torno, mas temia ferir os olhos com a luminosidade da manhã, que inchava à sua volta.
Foi diminuindo o passo, até parar. De repente, tomando coragem, ergueu o rosto e, num gesto simultâneo, tirou os óculos. Foi só então que percebeu a enormidade do silêncio, as ruas desertas. Nem carros, nem gente – ninguém. E, estremecendo, reconheceu a música que assobiava, uma velha canção de Eduardo Dusek sobre Nostradamus, cujo verso final brilhava agora em sua mente como se fosse um neón: “… o mundo acabou”.
A menina
(12/5/2002)
Fechando a porta com cuidado, como lhe fora recomendado pelos pais, a menina guardou a chave no bolso da bermuda, para entregar na recepção do hotel. O pai e a mãe tinham ido na frente para pegar uma mesa boa, com vista para o mar, que era a melhor maneira de se tomar café da manhã. Estavam acostumados com a lentidão da filha. Ela era uma menina meio desligada, vivia no mundo da lua. Em vez de ficar insistindo e brigando o tempo todo, tinham decidido deixá-la fazer as coisas a seu modo.
O hotel em que estavam tinha apartamentos avarandados, de onde se podia ouvir o barulho das ondas batendo na areia, incessantemente. O saguão principal era uma gigantesca cabana de sapê, sem paredes, portas nem janelas, sustentada por imensas colunas e tendo no alto clarabóias de vidro que faziam o lugar parecer sempre ensolarado, mesmo quando chovia. Havia também gramados, quadras e até uma piscina, onde as crianças se divertiam em meio a muita barulheira, mas nesses jogos a menina não tomava parte. Só gostava de brincar sozinha.
E era sozinha que ela andava agora pelo corredor entre a ala dos quartos e o saguão principal. Andava devagar, como sempre. E, também como sempre, com ar distraído.
Mas no que pensava a menina? Pensava nos besouros que encontraria pelo caminho. Os pais não poderiam supor, mas era por isso que todas as manhãs ela pedia que eles fossem na frente. Para poder salvar os besouros.
O corredor que levava dos quartos aos saguão era aberto, tinha apenas uma meia-parede, que dava para o jardim. Ali, viviam insetos de todos os tipos, como acontece em qualquer jardim, e entre eles uns besouros muito pretos, redondos e luzidios, que à noite, por algum motivo, voavam às cegas e acabavam estatelados no chão de lajota, com as patinhas para cima. Como tinham o casco muito redondo, não conseguiam desvirar-se e, não conseguindo, acabavam morrendo.
Logo no primeiro dia, a menina vira aquilo e ficara indócil. Tinha, desde muito pequena, um amor desmedido pelos animais, o que incluía até os insetos mais esquisitos. Quando ia ao cinema, podia agüentar as cenas mais tristes, contanto que no filme não morresse nenhum animalzinho. Isso era para ela insuportável. Na estrada, viajando de carro com os pais, andava no banco de trás olhando para o céu, com medo de ver algum cachorro morto no acostamento. Como poderia então suportar a agonia daqueles besouros?
Desvirar os insetos dava um trabalho danado. Eram muitos. A menina ia de um em um, com uma folha seca ou um pedaço de papel na mão, tomando cuidado para não assustá-los demais. Alguns eram tão bobos que esperneavam de susto, com medo dela, e acabavam tornando tudo mais difícil. Mas, no fim, valia a pena. Porque os besouros salvos lhe deixavam uma certeza que nem sempre sentia quando estava entre os humanos: a de que era uma menina feliz.
Sombra
(19/5/2002)
A penumbra se transforma pouco a pouco em escuridão, uma escuridão palpável, material, fechando-se em torno da mulher. Ela continua sentada na escrivaninha, com a caneta na mão. Aperta os olhos, esforça-se, mas já não consegue enxergar nada. Sabe que a noite caiu. Agora, não pode mais contar nem com a luminosidade mínima que, durante o dia, penetra através das frestas de portas e janelas, sempre fechadas. Tomando cuidado para não distanciar a ponta da pena do papel, termina a frase começada e, logo abaixo, assina seu nome, mesmo sem ver. Com a ajuda do tato, guarda a carta no envelope e coloca-a na pilha onde já estão outras – muitas outras. Em seguida, levanta-se.
Caminha com desembaraço no escuro. Conhece cada centímetro daquela casa onde há tantos anos está encerrada. Seus dias são feitos de penumbra, suas noites, de escuridão. Sempre. Há pouco tempo, ouviu falar que fizeram um filme de terror sobre uma família que vive numa casa escura porque as crianças têm alergia à luz. Na época, sorriu com amargura. As pessoas devem pensar que isso só acontece no cinema. Mas agora tudo é passado. Já não tem importância.
Com segurança, vai até a janela e, num gesto vigoroso, abre as cortinas de veludo. Abre também, de par em par, as pesadas janelas de madeira. Inspira, sentindo o cheiro da noite. É verão e, em torno da casa, as flores noturnas soltam seu perfume. Debruçando-se no parapeito, olha para baixo, observando a mancha esbranquiçada de um dos canteiros. Depois, fechando os olhos, tenta rever em pensamento – pela última vez – o colorido das flores, com a luz do sol incidindo sobre elas. Num segundo, pensa na vida que levou, na dedicação ao marido e aos filhos, sempre vivendo à sombra deles, sem vontade própria, até ser tragada definitivamente por esse mundo de penumbra em que agora se encerra. E, lentamente mas com passos firmes, caminha na direção do quarto. É hora de dormir.
* * *
Esta é a história de Hannelore Kohl, mulher do ex-chanceler alemão Helmut Kohl, morta no ano passado. Leio sobre ela numa revista. Na fotografia, vejo seu rosto largo, seu sorriso perfeito, a vivacidade do olhar, os cabelos louros bem penteados emoldurando o rosto, sem um fio sequer fora do lugar. Depois de tomar penicilina, Hannelore desenvolveu uma rara alergia à luz do sol. Por razões psicossomáticas, a alergia foi piorando, até que ela não pôde mais suportar nem a menor luminosidade artificial. Ironicamente, Hannelore – que vivera a vida toda à sombra do marido – virou assim, ela própria, uma sombra. Depois de mais de sete anos na escuridão, encerrada sozinha em sua casa em Oggersheim, ela escreveu vinte cartas de despedida e, com uma dose de ópio misturada a um poderoso sonífero, se matou.
A vida é maior – e também mais terrível – do que qualquer ficção.
Elas voltaram
(26/5/2002)
Ouvi falar que elas estavam voltando, mas a princípio não acreditei.
Passaram-se muitos dias até que certa tarde, quando já quase anoitecia, notei um movimento estranho na praça. Eu estava a caminho de um compromisso qualquer, um pouco atrasada, e não tive tempo de parar para investigar. Passei ao largo, apenas virando o rosto de vez em quando para observar aquela movimentação de homens e ferramentas, mas tudo isso sendo visto através das grades instaladas há não muito tempo, o que me toldava um pouco a visão. Fui embora e não pensei mais no assunto.
Mas na volta do compromisso, já de noite, voltei a passar pelo lado externo da praça, àquela altura com os portões de ferro já fechados. E foi então que as vi – pela primeira vez.
Vi, com toda a nitidez, suas silhuetas à distância, os pequenos corpos recortados contra o fundo de pedra, em meio à luz dourada que emanava de grandes refletores colocados no chão. Vi e, ainda assim, não acreditei, ou não tive certeza. Pensei que talvez, como acontecera um dia, muito tempo atrás, eu estivesse apenas tendo uma visão, vendo somente seus ectoplasmas, pequenos e reluzentes fantasmas de bronze. Lembro que, da outra vez, elas apareceram e desapareceram, sem que eu jamais ficasse sabendo ao certo o que havia acontecido. Cheguei mesmo a escrever sobre isso, pedindo que alguém me desse notícia delas – mas nada aconteceu. Soube vagamente que tinham sido roubadas, mas ninguém pôde me dizer quando. E fiquei sem resposta para minha pergunta: será que o que vira naquele dia tinham sido apenas seus fantasmas?
Agora, entrevendo novamente suas silhuetas, e ainda mais naquela luz irreal, temia que se repetisse a história e quando no dia seguinte eu fosse até lá, em plena luz do dia, tirar a prova, já não as encontrasse.
Acordei cedo para caminhar na praia, mas antes, numa decisão de momento, resolvi ir até a praça. Era cedo ainda, muito cedo, mas os portões já estavam abertos. Caminhei de cabeça baixa, os olhos fixos nas pedras portuguesas, sem saber ao certo o que encontraria quando chegasse ao fim da aléia. Só quando já estava bem perto ergui o rosto. E vi que, dessa vez, não havia engano. Nem assombro. Nem mistério.
Lá estavam elas.
Sob a luz do sol, um sol de manhã de outono, um sol que incidia devagar sobre as pedras e os bronzes – elas luziam. Em torno, o espelho d’água também faiscava. E a água se derramava em jatos tímidos, muito diferentes das cascatas exuberantes que na certa um dia tinham jorrado ali. Mas isso não importava. O importante é que elas estavam de volta.
De pé, altivas, os bicos finos apontados para a frente, uma das garras no alto, observando os quatro cantos dos jardins da Praça General Osório, que, pouco a pouco, começam a ser mais bem tratados. Guardiãs da lança de pedra onde estão pousadas, espero que agora definitivamente – lá estão elas. As saracuras de bronze do chafariz.
A pergunta
(2/6/2002)
“Será que esta é minha última Copa do Mundo?”
A pergunta, feita por meu pai assim, de forma prosaica, enquanto, diante de um prato de salada, ele dobrava uma folha de alface – me deu um susto. Cheguei a abrir a boca para protestar, mas vi que ele estava rindo. E fiquei olhando-o em silêncio por um instante.
“Não sei, não. Talvez mais outra, quem sabe?” continuou.
Eu, muda, sorria tolamente. Nosso almoço semanal, uma tradição já de alguns anos, ganhava naquele instante um toque diverso, talvez até cômico, mas também inquietante. Frente a frente, de cada lado da pequena mesa quadrada, com tampo de granito, conversávamos até então sobre futebol (claro). Mas a pergunta, assim, sem preâmbulos, me deixara desconcertada. Embora forte e ativo, trabalhando todos os dias, meu pai era um homem de setenta e muitos anos. Sua reflexão – eu tinha de admitir – era pertinente.
Com o garfo agora pousado na beira do prato, ele, sempre sorrindo, continuava falando: “Pode ser que 2006 dê. Mas 2010, acho difícil. Essa não vai dar para eu ver, não.”
Sua conversa era em tom natural, até jocoso, sem qualquer drama. Falava como se pensasse em voz alta, fazendo os cálculos de cabeça. Suas palavras me faziam de repente viajar ao passado, lembrar que ele, ainda bem jovem, já raciocinava assim, já fazia esses cálculos mórbidos, como se quisesse, brincando, vencer o medo. Essa sempre fora sua contagem. O número de Copas do Mundo que alguém, ao longo da vida, é capaz de assistir.
Aquilo era bem meu pai, o mesmo homem que, quando eu era pequena, lia para mim, rindo de prazer, os poemas de Augusto dos Anjos – “Tome, doutor, esta tesoura e corte minha singularíssima pessoa” – e pode haver alguém mais obcecado com a morte? As diatomáceas, na Lagoa, a criptógama cápsula que se esbroa, tudo nele é fim, aniquilamento, decomposição.
Talvez por isso, desde criança, também sinto uma atração, mistura de horror e fascínio, pelo assunto. Não falo da morte em si, mas dessa coisa dramática que é o ser humano, num dado momento e de forma consciente, enfrentar a perspectiva da morte próxima. Seja por causa de uma doença ou, como no caso de meu pai, por já ter chegado a uma idade em que não se pode mais simplesmente fingir (que é o que fazemos, pela vida afora) que não se vai morrer.
Mas, enquanto meu pai fazia seus cálculos, meu semblante foi aos poucos se abrindo. Como ele falava com naturalidade, acabamos dando risada, os dois. E eu relaxei. Ao vê-lo desafiar o próprio medo, pensei de repente em como tudo fica leve se levarmos na brincadeira. Quando é assim, já não importa a inquietação diante dessa coisa tão estranha e contudo absoluta que é a finitude da vida. Já não importa o peso da pergunta fascinante e terrível que nos persegue, sempre – por que, afinal, estamos aqui?
Não importa nem mesmo o número de Copas do Mundo.
No museu
(9/6/2002)
No salão de pé-direito alto, cujo vão era cortado em alguns pontos por colunas, reinava um silêncio necessário. Alguns museus lembram templos. Neles, é preciso falar baixo. Neles, as pessoas se movem devagar, pisando com cuidado os assoalhos antigos, respirando de forma pausada, atentas para não roçar os portais. E o silêncio parece fazer parte do ambiente. Era o que acontecia ali, naquele lugar.
Foi por isso que, ao entrar, a jovem teve um sobressalto. Sozinha, ouviu as próprias botas ecoando na sala, um som intruso, agressivo. E assim sendo parou, olhando em torno.
Por um instante, respirou aquele silêncio, sentiu o peso da atmosfera antiga, a vibração que emanava das paredes e das obras de arte. De longe, viu os quadros, pinturas a óleo, figurativas, com cores fortes. Através de uma janela, com seus retângulos de vidro biseauté, viu um pedaço do jardim, onde os borrifos da fonte reticulavam a paisagem, transformando folhagens e flores em pontos coloridos, como num quadro de Seurat. Respirou fundo, concentrou-se. E só então – agora com reverência, pisando muito leve – caminhou até o centro da sala, para admirar as pinturas.
Ali ficou, absorta, durante longos minutos, fascinada que era por artes plásticas. Mergulhou nas formas, nas cores, nas imagens que lhe pareciam tão vivas. Às vezes, dava uns passos à frente, aproximava-se, e seus olhos perscrutavam cada centímetro dos quadros, atendo-se às pinceladas que, de tão antigas, já se tinham incrustado no tecido, tinta e tela formando uma só e nova matéria.
Estava num desses momentos, olhando um dos quadros muito de perto, num dos cantos da sala, quando ouviu passos na sala contígua. Alguém se aproximava.
Vinha com um andar leve, talvez furtivo. Em algum ponto de sua mente, a jovem identificou a suavidade daquele som não com um pisar delicado, mas sim com o de alguém em atitude suspeita, que tivesse algo a esconder. Ouviu quando os passos chegaram bem perto, até parar. E virou-se.
No centro da sala, estava um velho. Acabava de ajeitar-se no banco de madeira que ficava em frente ao quadro maior, mas não parecia dar pela presença da moça. Olhava para a pintura com ar intenso, quase como se em transe, o rosto erguido, as costas retas.
Ao vê-lo, a jovem ficou paralisada. Tinha a impressão de já tê-lo visto em algum lugar.
O silêncio ganhou substância, envolveu-a. E ela teve um arrepio, como só sentimos diante do desconhecido.
Mas foi só quando o velho cruzou as mãos sobre o regaço que ela, com um estremecimento, voltou a olhar para a tela principal, aquela que o homem observava. Em meio a um jardim sombreado, sentado num banco de madeira, as mesmas costas retas, as mesmas mãos cruzadas sobre as pernas, o mesmo olhar febril perdido em um ponto à sua frente, lá estava o velho – dentro do quadro.
Teclados
(16/6/2002)
Um dia, há muito tempo, uma menina entrou, sem ser vista, no gabinete de trabalho de seu avô. Era um aposento proibido. Crianças não podiam entrar lá. O avô não gostava. Trabalhava em casa e detestava que mexessem em seus papéis. Mas a menina se aproveitara de um momento de agitação na casa – era dia de festa.
A casa amanhecera num frenesi. As duas empregadas, a avó, a mãe, as tias, todas andavam de um lado para o outro, sem ligar muito para as crianças. Era o dia da grande festa anual de São João, uma tradição na família. A casa do avô, um sobrado de mais de cem anos, tinha um pátio de terra batida, salpicado de poucas árvores, onde todos os anos era acesa a fogueira. Em torno dela, as mesas com os doces, o grande caldeirão de canjica, que sua avó ainda chamava de munguzá. Os amigos e vizinhos eram convidados para a festa, que entrava pela madrugada. Tudo isso dava trabalho. Muito trabalho. E adultos ocupados, trabalhando, são a ocasião ideal para que as crianças façam coisas proibidas.
Foi pensando assim que a menina penetrou no gabinete, empurrando a porta com cuidado e fechando-a atrás de si. Entrou e parou por um instante, esperando que seus olhos se acostumassem à penumbra, ao silêncio e ao cheiro forte dos livros de Direito, que enchiam as estantes de alto a baixo. Seu avô era advogado, um homem importante. Com portas e janelas fechadas, o gabinete parecia um cenário irreal, completamente destacado do resto da casa. Ali não havia festa, nem doces, nem junho, nada. Era um mundo com regras próprias, atemporal, livre. Ao menos era como a menina o via naquele instante, talvez movida pela delícia de fazer algo contra a vontade do poderoso avô.
Assim que seus olhos se adaptaram, foram atraídos pela escrivaninha de madeira escura, junto à janela. Com imenso cuidado para não esbarrar em nada, foi até lá. Sentou-se e apreciou tudo o que se espalhava pelo tampo da mesa, os pesos de papel, a espátula, uma pilha de livros, a coleção de canetas. E, no centro de tudo, a máquina de escrever. Ergueu a tampa. Observou, ajudada pela luminosidade que entrava pelas venezianas, as teclas com as letras desenhadasem dourado. Efoi com a garganta trancada por uma emoção desconhecida que estendeu sobre elas a ponta dos dez dedos. Seu coração batia como louco.
Ela não sabia, ainda. Não poderia saber. Mas um dia, muito tempo depois, voltaria a sentir aquela mesma sensação. Quando seus dedos, seus dez dedos, se espalhassem com suavidade sobre um teclado agora cor de marfim, com teclas macias que obedeceriam ao menor toque, nesse dia, muitos, muitos anos depois, ela reviveria a impressão sentida no gabinete proibido do avô. Por uma razão simples: porque, embora não o soubesse, ela fora marcada, desde sempre, por esse destino delicioso e implacável – o de escrever.
O visitante
(23/6/2002)
O homem subiu os dois lances de escada, degrau por degrau, quase sem perceber que o fazia. Sua única ligação com o espaço em torno era o peso do laptop que levava na mão direita. Isso, ele sentia. Mas sua mente estava longe dali, concentrada no trabalho urgente que teria de fazer em casa à noite. Subiu e enfiou a chave na porta, no exato instante em que a luz automática das escadas e do hall se apagava. Com preguiça de ir até o interruptor, que ficava no outro extremo do corredor, tateou à procura do buraco da fechadura. Por um basculante, entrava um resto de luz, pois lá fora ainda não anoitecera de todo.
Conseguiu. A porta se abriu e o homem, dando um primeiro passo para dentro de casa, tocou no interruptor que ficava junto ao portal. Nada. Não fora a lâmpada automática do hall que se apagara – estava era faltando luz. Resmungou, irritado. Mas depois acalmou-se. Fechou a porta e caminhou pela sala, tomando cuidado para não esbarrarem nada. Sea luz demorasse a voltar, trabalharia assim mesmo, usando a bateria do laptop. Aliás, ia começar logo.
Afrouxou o nó da gravata, tirou o paletó e foi até a única janela da sala, a janela francesa que dava para uma pequena varanda. Abriu de par em par as portas de venezianas e também as de vidro, de modo que a claridade que restava lá fora pudesse ajudá-lo a orientar-se. E sentou-se para ligar o laptop. A tela iluminada lhe permitiria trabalhar sem problemas. Os laptops, como as estrelas, têm luz própria, pensou. E sorriu, achando aquilo poético.
Ligada a bateria, o pequeno computador soltou seus uivos e a tela de cristal líquido despejou na sala uma luz azul, quase lilás, que parecia mesmo estelar. O homem ajeitou-se na cadeira e começou a trabalhar. O tempo foi passando, a noite caiu completamente. Tão concentrado ele estava que, a uma certa altura, mesmo sentindo algo estranho, não desprendeu os olhos da tela. Só alguns segundos depois olhou em torno, franzindo o rosto. Sim, sentira algo. Como uma rajada de vento ou qualquer coisa que tivesse entrado…
E então aconteceu de novo. O homem se levantou, assustado. Estava ainda de pé, diante do computador, quando o objeto passou por ele, quase lhe roçando o rosto. Deu um salto para trás. Apertou os olhos, tentando enxergar o que era. Talvez fosse um morcego. Ouvira falar que os morcegos se sentem atraídos pela luz dos computadores. Colou-se à parede e esperou.
Era estranho, agora que observava melhor. Na penumbra azul, o objeto se desviava da luminária descrevendo sempre a mesma órbita elíptica, perfeita demais para um morcego. E o homem riu um riso nervoso. Talvez estivesse cansado, imaginando coisas. Pensara pouco antes em estrelas, era isso. Estava impressionado. Tinha de ser isso. Um morcego. Mas, com os olhos fixos no objeto, as mãos já úmidas, frias, ouvia dentro de si o eco de uma pergunta: e se não fosse?
Ausência
(30/6/2002)
Ela queria fazer uma história de festa, uma história de céus e flores, de verões sem fim, uma história de areias, onde houvesse sempre luz e brisa e cheiros. Queria uma história de amor, de recordações, uma história, quem sabe, de criança ou velho, que alegrasse a manhã. Ou queria talvez uma história de noites, de passos e arrepios, de inquietações, mas desde que fossem sobressaltos sem sangue, onde até nos fantasmas dormisse alguma beleza, um fascínio qualquer.
Mas ali, diante da tela, sentia um vazio, uma paralisia, cuja razão não podia alcançar. Era um impasse. Alguma coisa faltava, alguma coisa se fora. Não sabia o que era. E não tinha idéia de por onde enveredar para descobrir.
Cismou e cismou, sem sair do lugar. Afinal, baixou os olhos das telas para as mãos que repousavam no teclado. Sentiu a perplexidade daqueles dedos, cuja inércia a surpreendia. Levantou-se, foi até a janela. Olhou a paisagem, buscando a resposta. Fechou os olhos, sentiu o sol, mas não encontrava em lugar algum aquilo que – sabia, sabia sem vacilar – dela se perdera.
Voltou. Caminhou até a cozinha, sempre buscando, sempre sentindo falta, mas ainda acreditando. Olhou em torno, observou a casa. Não havia nada fora do lugar, nada que significasse uma pista, que lhe desse as respostas. E, com um gesto de ombros, acabou por desistir.
Mas de repente, quando já nem esperava, descobriu.
Descobriu o que faltava e por que suas mãos se tinham partido. Descobriu o que era aquela ausência, que enchera com sua presença a sala, a vida, tudo ao redor.
Ela estava escrevendo de uma forma como jamais fizera em sua vida: sem adjetivos. Eles tinham desaparecido.
Não estavam mais com ela, para onde teriam ido? Ela os perdera, isso era um fato. Ficou olhando as letras, palavras e frases, vendo nelas apenas uma pergunta. Por que a tinham deixado assim, como se cruzasse agora um leito de rio sem água, só feito de pedras? E de repente lhe vieram à mente as palavras do poeta João Cabral, sua secura, seu quase rancor, falando do sertão. “Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma”. A beleza de uma poesia que guarda em cada verso um deserto. Sem adjetivos – porque a alma do sertão, de tanto sofrer, há muito se enrijeceu.
E ela compreendeu afinal o que acontecera: os adjetivos se tinham endurecido. Pois que era hora, sim, de usá-los, mas não aqueles a que ela se acostumara. Nada de azul , marinho, sensual, suave. Nada de vaporoso, anelado, gentil, completo. Era hora de outros. E ela abriu a porta para que corressem, conspurcando o papel como se fora terra, plantando seu horror nos campos onde não mais crescia a relva: cruel, hediondo, pavoroso, assassino, traficante, sanguinário, revoltante, corrupto, intolerável, torpe. Era a ferida que latejava – por trás da festa.
O farol
(7/7/2002)
Era uma noite escura, sem lua. Fazia frio e um nevoeiro esgarçado cobria a água do rio com uma camada delicada, tênue. O barqueiro estava só. Só, como é possível apenas àqueles que navegam por um rio à noite, sem ninguém a seu lado, num barco a remo. Era um barco pequeno para o rio de leito tão largo, embora ali em Croisset ele corresse com relativa mansidão. O rumor constante do rio já se fundira à noite e o barqueiro não conseguia mais distingui-lo. Ouvia apenas o choque intermitente dos remos na água, seu som compassado, quase hipnótico.
Estava cansado, o homem. Tivera um longo dia de trabalho no mercado em Rouen e agora voltava para casa, noite alta, já. Fazia a viagem uma vez por semana, voltando sempre depois do pôr do sol, embora não tão tarde. Naquela noite bebera um pouco demais, excedera-se talvez porque os negócios tinham sido especialmente bons. E bom era também o vinho, o calor da taverna, a conversa e a música. Fora ficando, ficando, e agora que voltava sentia um cansaço imenso, uma vontade de fechar os olhos, deitar no fundo do barco, deixar-se arrastar pela correnteza, sem rumo.
Embora rude, gostava de pensar sobre as coisas e, pensando, achava a vida às vezes engraçada, às vezes maçante. Às vezes sem sentido.
Pensava assim quando, numa volta do rio, avistou a luz junto à margem. E sorriu, satisfeito. Agora, sim. Sabia que estava perto. Alguém naquela casa – diziam que era o rapaz – tinha o costume de deixar sempre um lampião na janela e, na escuridão da noite, a luz funcionava para os barqueiros como um farol. E ele redobrou o esforço, aumentando o ritmo das remadas, ferindo a água do rio com novo vigor. Sim, estava chegando em casa.
O barqueiro não sabia, mas a luz que enxergava na curva do rio, aquele pequeno farol, ainda iluminaria, um dia, o mundo inteiro. Brilharia por muito tempo, atravessando os séculos. O barqueiro não sabia, mas a lâmpada colocada todas as noites na janela do solar, à beira do Sena, tinha um propósito. Junto a ela, madrugada adentro, um homem solitário escrevia. Com a pena na mão, diante do tinteiro, preenchia com sua letra bem feita, meticulosa, cada milímetro do papel, folha após folha, frente e verso, escrevendo e reescrevendo a mesma frase, o mesmo trecho, riscando, recomeçando, refazendo, buscando a palavra justa, incansavelmente. Corria o ano de 1851 e aquele homem de saúde frágil, cuja infância fora passada entre doentes e cadáveres, no hospital de seu pai, era de fato pouco mais que um rapaz. E, sob aquela luz, escrevia a história de uma mulher que fora capaz de afrontar as regras da sociedade hipócrita, ainda que pagando um preço alto por isso. O barqueiro não sabia, mas o homem por trás daquela luz era ele próprio um farol, uma estrela.
Seu nome era Gustave. Gustave Flaubert.
Correspondência
(14/7/2002)
Era uma manhã como outra qualquer. Eu subia os degraus da portaria olhando para o chão, enquanto pisava na passadeira vermelha, distraída. Foi quando o porteiro me chamou. Virei-me e ele se aproximou, trazendo a correspondência. Peguei o elevador e, como de hábito, já fui olhando, um a um, os envelopes, embora sem abri-los. Para fazer isso, na luz meio azulada do elevador, precisava apertar os olhos, que aos poucos me faltam. Mas, de imediato, um dos envelopes me chamou a atenção.
Enquanto o elevador subia, abri a bolsa e tirei os óculos de leitura. Examinei com mais cuidado o envelope que me intrigara. Era uma correspondência para meu avô. Em princípio, não havia nada de muito estranho nisso porque, um dia, muitos anos antes, meu avô morara naquele prédio onde eu agora tinha meu pequeno escritório. Mas o que me surpreendia era que alguém continuasse mandando correspondência para ele. Afinal, meu avô estava morto havia mais de vinte anos.
Movida pela curiosidade, tentando imaginar quem mandara aquela carta – pois não havia no envelope nenhuma pista – decidi abri-la.
Era um folheto de propaganda, de uma empresa fabricante de aparelhos de surdez. Fiquei parada, com o pedaço de papel nas mãos, enquanto um sentimento inesperado, misto de melancolia e ternura, me invadia. Era de tal ordem, e me tomava com tal força, que me deixou atônita. Eu raramente pensava em meu avô. Além de já se terem passado duas décadas de sua morte, tudo acontecera de forma rápida e natural, aos 87 anos, não tendo sido na época para mim um grande choque. Além disso, devo confessar que sempre tive com ele uma relação um pouco fria, pois era um homem irascível, genioso, de natureza difícil. Por tudo isso, a força da ternura que me invadia naquele momento me surpreendeu.
Li tudo o que dizia o folheto, na esperança de encontrar naquelas linhas uma explicação para a saudade – sim, era saudade – que crescia de repente dentro de mim. Não havia nada. Era só um folheto de propaganda. Talvez aquela oferta de aparelhos de surdez me tivesse comovido por ser uma coisa tão prosaica, tão humana. Meu avô estava morto. Não precisava mais de aparelhos de surdez. Era uma constatação rasa, que me dava de repente a medida de nossa transitoriedade, não sei. Talvez fosse isso.
Dando de ombros, entrei no escritório decidida a não pensar mais no assunto. Mas a força daquela onda de ternura que me tomara ainda ficaria latejando lá no fundo, por muito tempo – durante todo o dia.
No fim da tarde, quando já ia saindo, o porteiro me chamou outra vez, lembrando-me que era dia de pagar o condomínio. Tirei mais uma vez da bolsa os óculos de leitura e me sentei na mesa da portaria para preencher o cheque. E só quando o datei, antes de assinar, foi que prestei atenção na data. Ergui o rosto e sorri para o porteiro, sem que ele entendesse por quê. Era 9 de julho. Dia do aniversário de meu avô.
É só isso mesmo?
(21/7/2002)
A mulher acordou bem cedo e, antes mesmo de sair da cama, já sabia, pela claridade filtrada através da cortina japonesa, que era um dia de sol. A semana começara com dois dias de preguiça e chuva, o que a deixara presa em casa, sem caminhar. Fora desagradável, aquela inércia lhe dera uma sensação ruim. Precisava da caminhada para começar bem os dias, para se acalmar, para pensar. Bom que o sol estivesse de volta.
Levantou da cama, satisfeita. Nem olhou os jornais. Depois de um gole de café, saiu. Assim que deu os primeiros passos na calçada, ao sair da portaria, olhou para o céu. Era cedo, ainda. O sol estava frio. Mas era melhor do que nada. Seguiu em frente.
Quando chegou à praia, já estava um pouco mais quente, apesar das grandes extensões de sombra que os prédios mais altos projetavam sobre a calçada. Nesses trechos, as pedras portuguesas ficam úmidas, escorregadias, é preciso pisar com cuidado. Como sempre, ela caminhou na direção do fim do Leblon.
Enquanto andava, sentindo nas costas o sol tépido, teve vontade de cantar. Era uma mania sua. Gostava de cantar. Mas cantava baixinho, apenas para si, quando estava só. Cantava mais ainda quando estava triste, quando alguma coisa não ia bem. Mas não era hora de pensar nessas coisas. Precisava apenas olhar para a frente, observar a massa de montanhas, sentir o sol, dar um passo atrás do outro e seguir – cantando.
A primeira música que lhe veio à cabeça foi uma canção antiga, de cuja letra não se recordou a princípio. Seguiu cantarolando apenas a melodia, mas não demorou muito a se lembrar: era uma canção gravada nos anos 60 pela Peggy Lee. “Is that all there is?” dizia a letra. É só isso mesmo? É só isso que há? A vida é assim sem sentido, apenas uma soma de alegrias a aflições inúteis, para acabar em nada?
Na gravação de que se lembrava, Peggy Lee, com sua voz morna, contava como, quando era menina, fora levada ao circo e, depois de ver o espetáculo, perguntara: Mas é só isso? Mais tarde, ao crescer, encontrara seu primeiro amor. E quando o amor dera em nada, voltara a perguntar, decepcionada: É só isso mesmo?
E, enquanto cantarolava, a mulher caminhou e caminhou. Chegou ao fim do Leblon, ao ponto em que a calçada se estreita e sobe em direção à Niemeyer. Sem vontade de parar, sempre cantarolando, subiu por ali. Queria irem frente. Seguirandando. Quando chegou ao mirante, desviou pelo deque, pisando nas ripas de madeira, um tanto incertas, e por um instante parou, olhando para baixo. Na manhã de sol novo, depois de dois dias de chuva, o ar lavado, as ondas furiosas, espumando na luz oblíqua, eram um espetáculo de rara beleza. “Is that all there is?” E se for só isso mesmo? – pensou a mulher. E então sorriu. Bem, se for só isso, não tem problema. Já está bom demais.
Ruínas
(28/7/2002)
Fui outro dia, pela primeira vez, ao Parque das Ruínas,em Santa Teresa. Hámuito que tinha curiosidade de ir lá. Sempre, desde pequena, sinto uma forte atração por construções arruinadas. Há beleza nesses restos de paredes que vemos sustentando apenas o céu, nas colunas que se erguem sem razão, nos restos de piso formando desenhos que já não fazem sentido.
Cheguei a Santa Teresa num fim de tarde. Subi a ladeira de paralelepípedos que vai dar na velha casa e, quando tive a primeira visão dela, de baixo para cima, já quase anoitecia. As luzes tinham sido acesas. A fachada e a varanda, pintadas de novo, davam por um instante a impressão de pertencerem a uma casa nova – não fosse pelos vazios internos, que deixavam entrever, de determinados ângulos, os lilases do crepúsculo. Fiquei fascinada. E mais ainda quando galguei os degraus da varanda e entrei. A casa, ou o que restava dela, depois de por tantos anos abandonada, fora mais do que salva. Fora transformada. Tornara-se um lugar de música e arte, um lugar vivo, cheio de gente e murmúrios, tendo em torno o parque e as paisagens. Todas as paisagens do Rio. Era lindo.
Mas, de tudo o que vi naquelas ruínas, houve algo que em especial me chamou a atenção. Notei que nas paredes descarnadas, com os tijolos à mostra, havia, aqui e ali, caixas de vidro contendo fragmentos encontrados na época da restauração. Eram cacos de telhas antigas, pontas de madeira muito gastas, ornatos, pedaços da casa que tinham sido recolhidos no último instante, quando já estavam quase perdidos. Fragmentos que uma pessoa comum certamente jogaria no lixo. Nada fora desprezado.
E então me veio à mente um livro que comprei recentemente num sebo, chamado “Palácio Monroe – da glória ao opróbrio”, de Louis de Souza Aguiar. Nele, o autor reproduz pareceres, documentos e matérias de jornais, pondo a nu o absurdo que foi a demolição do palácio. Como o livro é em ordem cronológica, acompanhamos os apelos dramáticos contra a derrubada até o último instante, quando já começavam a ser retirados os primeiros vitrais, os leões de Carrara, os anjos de bronze, o assoalho. Mesmo depois de começada a demolição, mais de 200 engenheiros, arquitetos e urbanistas divulgaram um manifesto cujo título era “Ainda é tempo de salvar o Monroe”.
Mas, não. Já era tarde. Não deu tempo.
E fiquei me perguntando como seria se, naquele momento, já meio aos pedaços, o palácio tivesse sido salvo. Hoje, teríamos ao menos sua carcaça, as paredes vãs, a cúpula vazada – como a cúpula da única construção que sobreviveu à bomba de Hiroxima – através da qual veríamos o céu crepuscular. Talvez pudéssemos apreciar, dentro de caixas de vidro, seus ferrolhos, pedaços de mármore ou bronze, um ou outro taco de peroba. Qualquer coisa. Qualquer coisa que nos entristecesse menos por esse crime que em nossa cidade se cometeu.
Um susto
(4/8/2002)
Eram altas horas. O escritor estava cansado, mas sabia que não podia parar. Não, ainda. Precisava terminar aquele trabalho, a introdução para a edição brasileira de um livro de H. P. Lovecraft, que lhe tinham pedido, com certa urgência. Não entendera bem a razão do pedido, pois jamais se interessara por literatura de terror. Só aceitara porque estava mesmo precisando de dinheiro e trabalho. Mas, mesmo assim, deixara para a última hora – coisa que fazia sempre. E, com todos os prazos esgotados, dedicara o dia inteiro à leitura do livro, para só agora, noite alta, escrever o texto pedido.
Suspirou, esticando os braços acima da cabeça. Suas costas doíam. Mas faltava pouco, muito pouco. Não era um texto longo. A leitura fora fácil. Não pegava num livro de Lovecraft desde muito jovem e se surpreendera ao ver que não conseguia desgrudar os olhos das páginas. Chegara mesmo a sentir – era difícil admitir isso – um pouco de medo. Sim, medo. Logo ele, um homem racional, agnóstico, sem o menor interesse por essas coisas do oculto. Baixou os braços, voltando a pousar as mãos sobre o teclado. E foi nesse instante que ouviu o estalo.
Virou-se. Tinha mania de trabalhar com a sala às escuras, deixando acesa apenas uma pequena luminária sobre a escrivaninha, além, é claro, da luz que emanava do computador. A região de onde viera o estalo era num dos cantos do aposento, mergulhado na penumbra. Devia ser madeira estalando. As madeiras se expandem quando o tempo esquenta de repente. Deu de ombros. Mas o estalo se repetiu. Dessa vez, o escritor sentiu uma pontada de inquietação. Não pelo estalo em si, mas pelo fato de que ele se dera não mais na sala, e sim no corredor – como se caminhasse.
Levantou-se, intrigado. Que bobagem, pensou, parecia um adolescente, lendo livro de terror e depois ficando com medo. Chegou ao corredor. Ali, longe do recanto onde ficava a mesa de trabalho, a penumbra era mais densa. Era um corredor largo, como um vestíbulo, onde ele instalara sua estante de CDs, mas, por um desses defeitos de construção, o interruptor ficava na outra extremidade. O escritor teria de atravessá-lo no escuro, contando apenas com a luminosidade vinda da sala. Foiem frente. Deuos primeiros passos.
Demorou apenas uma fração de segundo até perceber um movimento a seu lado. Parou, gelado. Ficou imóvel, a boca subitamente seca. O que era aquilo? Virou-se, devagar. E quase gritou. A poucos centímetros dele, emergindo da penumbra, um rosto de homem o observava, de olhos arregalados.
Mas no segundo seguinte se recuperou. A estante de CDs tinha portas de vidro. Era sua própria imagem, refletida ali, que o acompanhava.
Riu alto, mas seu coração continuava batendo forte. E teve de admitir: Lovecraft era mesmo um mestre.
O pombo e os sapatos
(11/8/2002)
Talvez tenha sido por causa do pombo.
Há quem deteste os pombos, alegando que são pássaros agourentos ou que transmitem doenças. Eu, não. Gosto deles. Acho bonita sua revoada, a perfeita sincronia com que dão volteios no ar, assustados ante qualquer barulho ou agitação. Eles me fazem pensarem Veneza. Masnaquela manhã não havia revoada e sim um único pombo. Eu caminhava em direção ao chaveiro quando o avistei, todo encolhido num canto, no chão da lanchonete. Ao lado dele havia um copinho plástico, desses de cafezinho, com água, que alguém na certa botara, com pena do pombo doente. Sim, porque estava doente, sem dúvida. Todo arrepiado, parado ali, naquele canto. Também tive pena. Mas, na pressa do dia-a-dia, segui rumo ao chaveiro, alguns metros adiante.
E, assim que me debrucei no balcão, reparei nos sapatos. Como o sapateiro e o chaveiro dividem o mesmo boxe, a parede estava cheia de sapatos, que fiquei observando, enquanto esperava minha chave. Eram quase vinte pares, pendurados, alguns emborcados, com números escritos a giz na sola, outros virados para fora, exibindo-se. Havia botinas, sandálias, botas, escarpins. E até um tamanco à Carmem Miranda, de verniz preto com, acreditem, peninhas pretas enfeitando a parte da frente. E, de repente, percebi que um sentimento tomava forma dentro de mim. Tentei afastá-lo. Tinha prometido acabar com isso, desde a última vez em que quase chorei ao ver um par de sapatos abandonado no hall do elevador. Concluí que estava comovida por causa do pombo doente. Sim, talvez fosse por causa do pombo.
Era isso. Os sapatos nada tinham a ver com o que eu estava sentindo.
Olhei para os lados, disfarcei, pensei em outras coisas. Mas meus olhos acabavam sempre fixando-se nos pares pendurados. Um a um, eu os observei, quase sem querer, detendo-me nos detalhes, percebendo os pequenos defeitos, as ondulações escavadas no couro pela força dos dedos, denunciando as diversas maneiras de pisar, contando histórias, mostrando toda a diversidade humana… Droga! Virei as costas. Olhei para o céu. Dei uma espiada no relógio. E nada de ficar pronta a chave. Esta é daquelas mais complicadas, explicou o chaveiro. E lá se foram meus olhos, atraídos outra vez para os sapatos. Ali, pendurados, de alguma forma deixavam entrever a vida de todas aquelas pessoas, suas lutas inúteis, mesquinhas, suas pequenas alegrias. A vida em sua essência. Ou mesmo a morte. A morte como foi representada por aqueles sapatos sem dono, numa manifestação feitaem São Paulo, em protesto pela violência.
Suspirei. Lá estava eu de novo. Comovida por causa de uns pares de sapatos. Acho que estou ficando velha, pensei. Ou talvez eu estivesse apenas um pouco mais sensível naquela manhã. É. Talvez tenha sido tudo por causa do pombo doente.
O pingente
(18/8/2002)
Confesso que quando olhei o pingente eu estava sem óculos. Talvez tenha visto mal, não sei. Há uma chance de que tenha me enganado. Pode ser que houvesse apenas arabescos, pequenos sulcos formando volteios na pedra azul. Mas tenho quase certeza de que havia um pássaro. Um pássaro escavado bem no centro. Era lindo, o pingente. Quando o vi pela primeira vez, tendo acabado de recebê-lo de presente de um amigo que viaja pelo mundo inteiro, fiquei fascinada. Ainda mais por saber que a pequena peça viera do Irã, esse país que está, mais do que nunca, no imaginário de todos nós.
O pingente estava acomodado no fundo de uma caixa dourada, forrada de algodão, com sua face principal voltada para cima. Era de prata, com cerca de três centímetros de tamanho e quase um centímetro de espessura. Tirei-o da caixa. Pelo peso, pensei que fosse de prata maciça, mas só quando o revirei na mão vi que era na verdade um pingente de pedra, encapado em três de suas faces por uma camada de prata. Na face de trás, a pedra estava à mostra, uma pedra azul, lisa como pedra-sabão, porém menos porosa. Não sei que pedra era aquela. Só sei que fora coberta de ranhuras, formando os tais arabescos. E que tinha, bem no centro, um sulco mais profundo, o tal que me pareceu ser a imagem de um pássaro.
Já em casa, antes de me deitar, ainda tornei a manusear o pingente, embora o tenha feito, mais uma vez, sem óculos. Mas lembro com muita clareza da figura do pássaro, bem no meio. Em seguida, pondo a caixa na mesa de cabeceira, adormeci.
E sonhei.
Estava numa casa abandonada, percorrendo seus corredores em grande aflição, sem saber por quê. De repente, num dos quartos, envolto em penumbra, ouvi atrás de mim um soluço. Virei-me e vi, agachada a um canto, uma mulher, toda envolta em véus negros. Lançou-me um olhar suplicante. Não entendi o que queria, mas caminhei até a janela e forcei seu ferrolho emperrado, pensando em fazer entrar alguma luz no aposento, para ver melhor aquele rosto aflito. Empurrei a janela para fora, com um tranco. E, no exato instante em que a veneziana cedeu, senti sobre minha cabeça um rumor de asas. Tive de me segurar para não ir ao chão. Um enorme pássaro preto saiu pela janela aberta e desapareceu no céu. Virei-me e vi, com um arrepio de horror, que a mulher não estava mais lá.
Acordei assustada. Era madrugada, ainda. Acendi o abajur. A primeira coisa que vi, na cabeceira, foi a caixa dourada. Abri-a e tirei o pingente. Meu coração se acelerou quando o virei na mão, estreitando os olhos para observar a face de pedra azul. Parecia modificada, mais lisa.
Corri até a escrivaninha e peguei os óculos. Só então peguei os óculos.
Por toda a superfície da pedra, restavam apenas os arabescos. O pássaro tinha desaparecido.
A casa
(25/8/2002)
Volto à casa. Toco com a ponta dos dedos, em cuidado extremo, sua porta impalpável, feita agora apenas da matéria dos sonhos.
Curioso que tenha falado dela na semana passada. Estava eu divagando sobre pingentes assombrados, corredores e quartos envoltos em penumbra, aparições de mulheres que suspiram e se transformamem pássaros. Nãoestava pensando na casa. Mas eis que, enquanto escrevia, o cenário da casa abandonada era o mesmo que já havia descrito um dia, muito tempo atrás, mais de uma vez, acho, um cenário sempre presente em meus sonhos. O cenário da mesma casa que eu conheci, um dia. Era dela que eu falava. Não de outra casa qualquer, mas daquela em especial.
E é a ela que retorno agora.
Vamos recomeçar.
Volto à casa. Toco com a ponta dos dedos, em cuidado extremo, sua porta impalpável, feita agora apenas da matéria dos sonhos. Empurro devagar. A porta cede – estava entreaberta. Melhor assim, pois não haverá risco de que se parta o vidro, o vidro por trás do gradeado de ferro, o vidro que exibe uma rachadura em diagonal, de alto a baixo.
Entro. Olhoem torno. Asparedes, nuas, guardam marcas escuras nos lugares onde um dia houve quadros pendurados. Por toda parte, riscos, manchas e pequenas ranhuras são sinais de um tempo em que a casa foi viva, habitada. Ergo os olhos. No centro do teto, uma cicatriz negra de fios expostos tomou o lugar da luminária com pingentes de cristal.
Estremeço. Tenho a impressão de já ter escrito isto algum dia. Sonho, cenário, conto – tudo é recorrente aqui. Só o tempo não volta, a areia não torna jamais a escorrer pela ampulheta no mesmo instante e lugar.
Dou mais alguns passos. Sigo.
O vestíbulo que vai dar nos quartos está, como eu já esperava, mergulhado na penumbra. Há aqui um cheiro abafado, qualquer coisa lembrando frutas pisadas ou flores murchas. Faz frio. É noite, já – a noite caiu de repente –, na casa abandonada por onde vago. A casa que é agora feita de sonho apenas, de paredes incorpóreas, tijolos imateriais. Relembro as paisagens oníricas de Per Johns em “As aves de Cassandra”, quando ele também revisita suas casas mortas. Um sonho dentro de um sonho. Continuo andando. Vejo que um dos quartos tem a porta entreaberta. Espio pela fresta. Mas tenho medo de encontrar ali a mulher, o pássaro, como das outras vezes.
De repente, um ruído. Recuo. Mas é um ruído banal, corriqueiro, som que vem do mundo real, provocando o efeito imediato de me trazer de volta.
Abro os olhos. Estou desperta. A casa, por um momento tão viva, tão material em sua lembrança, se dilui num segundo. E é com o coração fechado que relembro as palavras ouvidas há poucos dias de alguém que passou pela rua e viu – a rua por onde eu nunca mais tive de coragem de passar: demoliram a casa da minha infância.
Flores no mar
(1/9/2002)
A mulher caminhava sem pressa pela beira da praia naquela manhã. Era bem cedo, ainda. O sol que despontara pouco antes de trás da montanha batia em cheio em seu rosto, tornando inútil a aba do chapéu. Mas ela não se importava. Era um sol tépido, como uma carícia.
Vinham sendo lindas, as manhãs. E aquela estava especialmente bonita. Soprava uma brisa fresca. A luminosidade dos últimos dias se intensificara, anunciando a primavera, e o sol esbranquiçado fazia com que o céu parecesse coberto por uma camada finíssima de algodão. Era tanta luz que a areia estava ainda mais alva do que de costume. O mar, em seu movimento, fizera surgir um banco de areia e, junto a ele, uma piscina. A mulher caminhava pela areia dura, beirando aquelas águas calmas.
Ia distraída, pensando na vida, quando de repente seu olhar se prendeu a alguma coisa vermelha, cravada na areia. Dando mais alguns passos, viu que era uma pétala de rosa. Não uma pétala murcha, resto que tivesse vindo dar na praia, batido pelas águas, mas uma pétala perfeita, viçosa, cujo aveludado sanguíneo fazia crer que tivesse acabado de ser arrancada da flor. Fazia um belo contraste com a areia, aquela pétala de tessitura delicada, cravada entre os grãos como se alguém a tivesse colocado ali.
A mulher ergueu os olhos, pensando em recomeçar a caminhar. Então viu, poucos metros adiante, uma rosa inteira. E, um pouco mais à frente, outras duas. Foi até lá.
Assim como a pétala que avistara primeiro, aquelas flores tinham um viço que denunciava terem sido atiradas pouco antes. Não tinham vindo com a correnteza. Na certa, alguém as jogara na água para pagar alguma promessa, fazer um pedido. A mulher deu de ombros, reiniciando a caminhada. Flores no mar. Crendices. Tinha pena das pessoas ingênuas, que se deixam levar por essas bobagens.
Flores no mar.
Mordeu os lábios, ajeitou a aba do chapéu. Tentou não pensar. Não, não podia pensar. Foiem frente. Eencontrou mais flores. Rosas vermelhas, rosas-chá. Cravos vermelhos, cravos brancos. Ramos e mais ramos, espalhados pela areia à sua frente. Apertou a vista. Algumas flores boiavam na água, ainda. Não tinham sido despejadas de volta na areia pelas ondas. Flores e mais flores. E a mulher tentando não pensar. Não, ela não. Ela, nunca.
Crendices, bobagem. Alguém ingênuo, muito provavelmente uma mulher, atirara as flores, pedindo, esperando. Esperando a volta de um amor. E a mulher fechou os punhos, cravando as unhas com força na própria carne, com uma vontade imensa de fugir, ir para bem longe dali. Antes que ela própria sucumbisse ao desejo que começava a tomar forma, que lhe apertava o plexo, ardia na boca do estômago. O desejo absurdo e irrefreável de lançar – ela, também – flores no mar.
Três mangueiras
(8/9/2002)
Penso na casa, ainda. Não mais em suas paredes de tijolos, as janelas de venezianas, a penumbra dos quartos. Não mais em seu interior cheio de histórias e recordações. Mas sim em seu entorno, nas árvores de cujos troncos pendiam ramos de orquídeas mínimas, de um amarelo forte, cor de gema de ovo, como uma chuva de pétalas. Árvores de frutas. Tamarindos, mangas, carambolas, cajás.
É o que recordo agora. Não mais a casa em si, mas o quintal. O quintal onde um dia, há muito tempo – como num conto de fadas –, foram plantadas três mudas. Três. Uma para cada criança.
Na verdade, nem chegavam a ser mudas. Eram apenas três caroços de manga chupados que, atirados ao chão, tinham germinado. A descoberta provocara um rebuliço. E surgira a idéia de plantar os três caroços para ver se vingavam. Fomos os três – eu, meu irmão e um amigo dele que passava férias conosco –, munidos de pás e ancinhos, escavar a terra e preparar o chão para plantar, cada um de nós, seu caroço.
O trabalho foi feito de manhã bem cedo, mas lembro que, ainda assim, o sol ardia na nuca, o suor escorria. Limpamos o chão, que ali era coberto de capim, e cavamos os pequenos buracos onde foram colocadas as sementes germinadas. Isto feito, os caroços foram cobertos com um pouco de terra (não muita) e regados com água (não muita). Depois, fizemos em torno um canteiro de pedrinhas, junto às quais plantamos, para enfeitar, uma planta rasteira que minha avó chamava de brilhantina. E estavam prontos os canteiros.
Dali em diante, foi esperar. E molhar. Todos os dias (muitos), até que as mudas surgissem, vencendo a terra, seus pequenos talos verdes de início frágeis, vergados, mas logo depois se encorpando, ganhando forma, anunciando os troncos em que se transformariam. Foi o verão todo assim, observando o crescimento das três plantinhas. Mas depois o verão acabou e ninguém mais pensou no assunto. Ou talvez tenha pensado, não sei. Só sei que um dia, muito tempo depois (muito), as três mudas se tinham transformado em árvores.
Três mangueiras.
Ainda estão lá. Não sei por quanto tempo. Talvez sejam também derrubadas. Mas por enquanto resistem. Três mangueiras, uma ao lado da outra. A de meu irmão, com seus galhos fluidos, aerados, como se quisesse voar dali. A do amigo dele – que em adulto se tornou um homem cruel –, uma árvore ressecada, de folhas finas, que jamais deu frutos. E a minha, embora frondosa, com um nó no tronco principal, parecendo uma cicatriz. Têm um pouco de cada um de nós, essas mangueiras. Foram, durante todos esses anos, uma representação, guardando em seus troncos imóveis um pouco de nossa alma, aprisionada. E se forem ceifadas – como a casa –, eu me pergunto: o que acontecerá conosco?
Reencontro
(15/9/2002)
Foi com prazer incomum que ele entrou na livraria naquela tarde. Fazia frio, coisa rara nesta cidade de permanente verão. Ele já estivera na livraria em outras ocasiões, sempre atraído pelos livros em si e não pelo ambiente, mas daquela vez não pôde deixar de sentir que, por trás da vitrine cromática, onde livros e objetos se misturavam, o lugar inteiro o chamava, mais acolhedor do que nunca.
Entrou e observou a livraria como um todo, talvez pela primeira vez. A maneira como ali eram dispostos os livros, um pouco despojada, quase confusa, dava ao lugar um ar de bagunça saudável. Na medida certa. Em casa, ele gostava de encher as estantes até o limite, numa arrumação que beirava o caos, com livros enfiados deitados por cima das fileiras, preenchendo o pequeno vão antes da prateleira acima. Achava que livros bem arrumados demais eram um sinal de que ali estavam apenas para enfeitar, e não para ser lidos. Pois a livraria tinha esse mesmo ar de doce confusão. Ótimo. Não poderia haver lugar melhor para se estar numa tarde fria. Aliás, poucos lugares o faziam sentir-se tão bem quanto uma livraria. Entre livros, tinha a impressão de que nada de mal lhe podia acontecer. O cheiro dos livros, suas cores e formatos, de algum modo o envolviam, abraçavam, como se fossem uma proteção contra os males do mundo, em qualquer parte.
Passou muito tempo entre os livros. Muito tempo. Tanto que, a certa altura, pensou que talvez fosse boa idéia tomar um café no mezanino, embora não tivesse o hábito de fazer isso. Subiu as escadas e sentou-se numa das mesinhas.
Enquanto esperava, seus olhos se prenderam num engradado de garrafas antigas, enfeitando o balcão. Franziu a testa, com uma sensação estranha. Nesse preciso instante, o café chegou e ele, baixando a vista, deu o primeiro gole. Mas a sensação continuava. Um desconforto inexplicável, diferente do bem-estar que costumava sentir dentro de uma livraria. Voltou a erguer o rosto e seus olhos se dirigiram por conta própria até o engradado, outra vez. Será que era? Não podia ser. Tomou o café de um gole, quase queimando a boca, e levantou-se. Talvez fosse. Ou pelo menos era alguma coisa muito parecida. Andou até o balcão, os olhos presos nas garrafas. Devagar, tocou uma delas, puxando-a de dentro do engradado. E aquele simples gesto o empurrou, num segundo, para muito, muito longe dali, numa viagem sensorial – ao passado.
Há mais de quarenta anos, as palmas de suas mãos não tocavam, seus dedos não envolviam o vidro amarelo, cheio de ranhuras arredondadas, de uma garrafa de Crush. Sorriu, enternecido, enquanto alisava o objeto precioso, sob o olhar atônito da garçonete que, em seus 20 anos, não podia entender o que havia de tão especial naquela garrafa velha. Ela não poderia supor que presenciava a mesma viagem empreendida um dia por Proust, diante de uma xícara de chá.
San Telmo
(22/9/2002)
Eu ia caminhando devagar pela calçada de uma rua de San Telmo, feliz por percorrer aquele que é um dos bairros mais encantadores da velha e boa Buenos Aires. Era um dia de semana e, portanto, não havia feira. Mas eu achava melhor assim, pois as ruas estavam vazias e os antiquários abertos pareciam existir só para mim. Fazia frio e o sol oblíquo que ainda cintilava nas pedras ia perdendo a força, à medida que a tarde caía.
Foi na terceira ou quarta rua por onde enveredei que vi, a uma certa altura, o que a princípio me pareceu ser uma galeria. Decidi entrar. Mas assim que entrei, vi que o corredor escuro, em arco, ia dar não numa galeria, mas num imenso pátio cercado pelas paredes de um casarão quase em ruínas, em cujos cômodos funcionavam diversas lojas de antiguidades. Havia de tudo. Roupas, garrafas, montanhas de azulejos, móveis, bonecas antigas com seu olhar assombrado. Cada loja era um amontoado caótico de coisas velhas, muito diverso dos antiquários elegantes que se via nas ruas mais movimentadas.
Comecei a passear devagar por ali, entrando e saindo das lojas, apreciando as paredes descascadas, os ambientes de luz mortiça, onde a tarde parecia cair ainda mais depressa. A casa antiga onde funcionavam os brechós era formada por três diferentes pátios, ligados por passagens em arco como a que dava para a rua. Percorri os três. O último foi aquele onde me demorei mais, não porque encontrasse objetos mais fascinantes do que nos dois primeiros. Ao contrário, aquele pátio estava quase que inteiramente coberto por móveis muito velhos, pilhas de azulejos de toda espécie e portões e gradis de ferro já quase se desfazendo, tal a ação do tempo e da ferrugem sobre eles. O que me fez ficar mais tempo naquele último pátio foi que encontrei, dormitando sobre os móveis destroçados, dois gordos gatos que, avaros, aproveitavam a última réstia de sol. Parei e olhei-os por um longo instante, pensando em como a luz parecia derramar-se devagar naquele ponto do universo. Mas os gatos não quiseram saber de mim. Nem me olharam. E acabei decidindo ir embora.
Dei meia volta, em direção à rua. Mas foi então, ao sair do segundo corredor em arco e desembarcar no pátio mais próximo da entrada – que vi o velho. Estava de pé, junto a um espelho antigo. Muito magro, mal vestido, as mãos descarnadas, o cabelo em desalinho, e tão imóvel que parecia ter adormecido ali, com os olhos abertos. Olhos que me fizeram tremer. Tinham uma expressão súplice, aguda, de quem pede socorro. Era um olhar de quem viu tudo acontecer, de quem teve tudo, tudo perdeu, e agora está só. À espera da morte, talvez. Não sei. Só sei que não pude suportar aquele rosto e me virei para sair. Foi quando vi, junto ao arco que ia dar na rua, uma placa, com o nome daquele lugar, no qual não reparara ao entrar: O Pátio do Tempo.
O quinto andar
(29/9/2002)
Era uma servente muito disciplinada. Tudo o que lhe mandavam fazer, fazia. Tinha consciência de que a vida não estava fácil. Para que arrumar problema? Desemprego, crise. Era preciso estar atenta. Fazia de tudo na universidade: varria as salas, espanava as mesas, as estantes, limpava os livros da biblioteca. E desempenhava também as funções de copeira, servindo água e café na reitoria.
Naquela manhã, acabava de sair da sala dos professores, no terceiro andar, e caminhava pelo corredor a fim de voltar ao térreo, onde ficava o depósito com os produtos de limpeza. Fazia frio e os corredores estavam mais sombrios do que nunca, com suas paredes de tijolos quase que inteiramente cobertas por quadros de aviso, cartazes e pichações. Já estava quase diante da escada quando ouviu um ruído atrás de si. Voltou-se e deu com uma mulher muito séria, toda vestida de escuro, a roupa abotoada até o pescoço. Concluiu que era uma professora, embora não a conhecesse. Com um cumprimento de cabeça, a mulher aproximou-se da servente e apontou para uma bandeja contendo uma jarra d’água e vários copos vazios, que estava sobre uma mesinha no corredor.
– Leve isto ao auditório do quinto andar – disse, quase num sussurro.
A servente, acostumada que era a obedecer, fez uma mesura e, pegando a bandeja, se dirigiu à escada. Quando pisou o primeiro degrau, por alguma razão virou-se, mas deu com o corredor vazio. A professora já não estava lá. Dando de ombros, começou a subir.
Galgou os dois lances sem esforço, apenas tendo cuidado para não derramar a água, que enchia a jarra até a borda. Mas assim que chegou ao quinto andar, deu-se conta de que não sabia para que lado ficava o auditório. Escolheu a esmo o corredor da direita, mas logo se arrependeu. O corredor, imenso, estava muito escuro, as portas, de um lado e outro, fechadas, e nas paredes nuas não havia qualquer aviso ou placa de orientação. Nada. Além do mais, ali em cima fazia ainda mais frio. Enquanto segurava a bandeja com as duas mãos, a servente sentia um sopro gelado às suas costas, embora não compreendesse de onde vinha, já que todas as portas estavam fechadas. Suas mãos começaram a tremer. Sem pensar mais, resolveu voltar e perguntar a alguém onde, afinal, ficava o auditório.
Apressou o passo, buscou de novo a escada e começou a descer. No silêncio opressivo, seus passos ecoavam, em meio ao chacoalhar dos copos na bandeja.
Desceu de volta dois lances e, já no terceiro andar, ficou aliviada ao ver uma professora – esta, sim, sua conhecida. Sorriu para ela.
– Onde vai com essa bandeja? – perguntou a professora.
– É para levar ao auditório do quinto andar, mas eu não consegui achar. A senhora acredita que, em todos esses anos que trabalho aqui, nunca tinha ido ao quinto andar?
– E não poderia mesmo – disse a professora, com uma risada. – Este prédio só tem quatro andares.
Mariá
(6/10/2002)
Minha avó Mariá tinha as mãos lindas. Mãos morenas, de dedos longos e bem feitos, com unhas largas, curvas, todas iguais. Quase sempre com esmalte vermelho. Quando eu era menina, ela brigava comigo porque eu roía as unhas. Olhando para minhas mãos, eu admitia: tinha unhas horríveis, ainda mais se comparadas às de minha avó. E, enquanto ela me contava histórias, ficava observando suas mãos.
Minha avó me contava muitas histórias, quase sempre assombradas. Lembro-me agora de uma, que era das minhas favoritas. Acontecera com alguém da família, a mãe dela, se não me engano. Mas era, como muitos dos relatos de Mariá, uma história real, o que a tornava ainda mais assombrosa. Pelo menos para nós, as crianças, que a ouvíamos com toda a atenção, os olhos arregalados, sentados no chão da sala.
A história se deu em Monte Santo, no sertão da Bahia, onde nasceu Mariá. Terra árida, agreste, por onde não muito tempo antes Antônio Conselheiro deixara sua marca. A mãe de Mariá estava na cozinha, cercada pelos empregados e pelas crianças. A cozinha era grande, como em qualquer fazenda, e a algazarra também, pois eram muitos os filhos. A tarde ia alta e, na mesa comprida, estava sendo preparado o lanche. A mãe dela decidiu ir até o umbuzal, que ficava atrás da casa, catar umbus para fazer suco. E foi, sozinha.
O umbuzal era sombrio, as copas das árvores se fechavam formando um recanto escuro, onde a tarde era quase noite. A mulher começou a catar os umbus, escolhendo com cuidado os mais maduros, com matizes de um amarelo desmaiado em sua casca verde e encerada. Catava-os e colocava-os no côncavo do avental, cujas pontas juntara com uma das mãos.
Levou algum tempo envolta na tarefa e, quando achou que já tinha a quantidade suficiente, virou-se para caminhar de volta para casa. Já estava a ponto de sair da região de sombra formada pelos pés de umbu quando ouviu, atrás de si, com toda a clareza, uma voz de mulher, estridente e desafiadora que, num tom quase debochado, lhe perguntou:
– Já vai?
Ela se virou, espantada, sem imaginar quem estaria ali. E deu com o umbuzal vazio, suas sombras derramadas sobre o chão, os galhos das árvores tão imóveis que dava para ouvir o zumbido dos insetos sobre as frutas mortas.
Largando as duas pontas do avental, a mulher correu. Correu e correu, até chegar em casa, ofegante. E naquela tarde as crianças ficaram sem seu suco de umbu.
O tempo passou, minhas unhas cresceram. E minhas mãos foram ficando cada vez mais parecidas com as de Mariá – embora nunca tão bonitas. Hoje, olhando-as, penso nela, em suas histórias. E a frase de seu conto assombrado ecoa dentro de mim como um adeus:
– Já vai?
Rastro
(13/10/2002)
Aconteceu na segunda-feira – o dia do medo. A tarde caía e ele, que passara todo o dia trancado, esperando para ver o que ia acontecer, tinha decidido, afinal, sair de casa. Um amigo seu, um poeta, estava lançando um livro naquela noite. Por causa de toda a confusão, chegara a duvidar que o lançamento fosse acontecer. Ligando para a livraria, ficara sabendo que o evento, sim, estava mantido, e que o poeta – uma figura tão doce e frágil – fizera questão de enfrentar o horror com sua poesia. Aquilo lhe doeu. Sentiu-se um covarde. Como poderia continuar em casa, acuado? De jeito algum. Precisava ir.
Vestiu-se e saiu. Desceu as escadas do prédio antigo onde morava e chegou à rua de cabeça erguida. Decidiu ir a pé, para provar a si mesmo que não tinha medo (mas tinha). E começou a andar na direção da livraria. Eram dois quarteirões apenas. Ainda estava cedo. Não fazia mal. Chegaria primeiro e ficaria dando uma olhada nos livros caso seu amigo poeta ainda não tivesse chegado.
Começou a caminhar. A noite ainda não se fechara por completo. O crepúsculo deixara para trás alguma luminosidade, que se misturava à luz fria dos postes. Isso o reconfortou, deu-lhe um pouco mais de segurança, porque calçadas e ruas estavam quase desertas. As pessoas continuavam com medo.
Não percorrera nem meio quarteirão quando, andando de cabeça baixa, a atenção presa nos desenhos das pedras portuguesas, notou uma pequena mancha escura no chão e, mais adiante, outra. E mais outra. Como pingos. Pingos escuros. Estreitou os olhos para observar melhor. As manchas formavam um rastro, que seguia pela calçada afora, à sua frente. Pareciam gotas de sangue.
Parou.
Passara a tarde colado ao noticiário. Não ouvira nada sobre tiroteios, feridos, nada. Mas aquelas gotas pareciam mesmo sangue. Sangue coagulado, escuro. Recomeçou a andar, agora devagar, o estômago contraído. Não tirou mais os olhos do chão, hipnotizado pelas pequenas manchas, perguntando-se o que teria acontecido. Tiroteio. Pânico. Correria. Para onde fugira a pessoa atingida? E o bandido? Estaria por perto, talvez, ainda? Onde? Não teve coragem de erguer os olhos. Apenas continuou andando, um passo depois do outro, seguindo o rastro à sua frente. E, enquanto andava, viu que a distância entre as gotas diminuía, como se a hemorragia se tivesse tornado mais abundante. Agora, naquele ponto, o sangue parecia fresco. As manchas estavam cada vez mais brilhantes, mais viscosas, mais…
Estacou. E viu, bem à frente, a resposta para suas perguntas. A resposta que era também a prova do poder alquímico do medo.
Espojada no chão, já quase toda derretida, a calda de chocolate formando nas pedras portuguesas uma grande mancha, escura como sangue, ali estava – uma bola de sorvete.
Lâmpada fria
(20/10/2002)
O homem entrou na loja para comprar uma lâmpada fria. Desde o racionamento, ficara com essa mania. Mesmo sem necessidade de continuar poupando luz, vira-se habituado a ter, em alguns pontos da casa, lâmpadas fluorescentes. Não conseguia compreender bem por que insistia com aquilo, já que não gostava da luz branco-azulada, capaz de extrair o viço de pessoas e coisas, dando-lhes um ar de estátua de cemitério. Mas, ainda assim, quase sem querer, levado por uma determinação estranha e misteriosa, lá estava ele: entrando na loja para comprar a lâmpada fria.
Entrou e olhouem torno. Aprópria loja era, toda ela, iluminada pela mesma luz azul da lâmpada que ele pretendia comprar. E o homem pensou que talvez não exista nada menos glamuroso do que uma loja que vende lâmpada fria. Para além da porta, as prateleiras se estendiam de um lado e outro, lotadas de roscas, torneiras, puxadores, ferramentas. No chão, junto aos balcões, havia também toda a sorte de produtos para casa, como escadas de alumínio, filtros e talhas para água, frigideiras, caçarolas, chaleiras. E sobre todos aqueles objetos pairava uma fina camada de poeira, parecendo uma poeira antiga, que aderira às superfícies com o passar dos anos. Ou talvez fosse apenas o efeito da maldita luz, porque o chão também parecia empoeirado, seus ladrilhos baços formando desenhos em dois tons de verde. Ao fundo, atrás de um balcão, havia um casal de idade, ele de cabeça baixa, os ósculos equilibrados na ponta do nariz, anotando alguma coisa; ela, também de óculos, um lenço amarrado no cabelo, com um papel na mão. Eram ambos pálidos, como de resto o ambiente inteiro – e assim também como a mulher que, atravessando uma porta à direita e ao fundo, surgiu caminhando na direção do homem, a fim de atendê-lo.
– Pois não? – disse, sem sorrir, um par de olhos tristes, descaídos, fixos no freguês.
E o homem observou-a, enquanto ela tirava de um gavetão a lâmpada fria. Calculou que tivesse uns quarenta anos, talvez um pouco mais. Pela idade e feições, era sem dúvida a filha do casal. Tinha um ar descuidado de quem não espera muito da vida. Ficou com pena dela. Pensou em como devia ser triste trabalhar ali naquela loja sombria, ao lado dos pais já velhos, vendendo lâmpadas frias. Pensou em como seriam seus dias e – pior – suas noites. Foi embora da loja ainda pensando nela, e o embrulho da lâmpada, no papel cor-de-rosa desbotado, era uma espécie de representação daquela mulher triste e sozinha.
À noite, já esquecido do assunto, saiu com amigos. Solteiro, gostava de se divertir. Foi a uma cervejaria de ambiente alegre, ruidoso, e entre um chope e outro virou-se para trás para chamar o garçom. E foi quando teve a surpresa. Numa mesa enorme, cheia de gente, toda arrumada, a boca pintada de batom, os ombros nus sacudidos por uma gostosa gargalhada, nos olhos uma inusitada chama, lá estava ela: a moça da lâmpada fria.
Na esquina do poeta
(27/10/2002)
Eu sempre passo por lá, sim, mas de carro. Nunca a pé. Venho descendo pela rua em direção à praia e constantemente paro naquele sinal. Sei que é a esquina do poeta. Pois foi ali, no entroncamento das ruas Rainha Elisabeth e Conselheiro Lafayette, na fronteira entre Copacabana e Ipanema, que viveu Drummond por quase toda a vida. E é ali também que, na entrada de um prédio, existe um belíssimo pé de azaléia, sempre florido.
Reparei nele pela primeira vez ao observar a portaria do prédio, um edifício imponente, desses com portaria de pé-direito alto e grandes cachepôs nas laterais da entrada. E, vendo o pé de azaléia num dos canteiros, lembrei que essas flores só costumam desabrochar quando está frio. Elas gostam do inverno. Achei curioso que aquele pé estivesse tão vistoso, já que fazia calor.
Pois bem, o tempo passou. E, quando o inverno oficial já estava prestes a ir embora, andou fazendo um friozinho incomum no Rio. Naquelas semanas de garoa e temperaturas baixas, voltei a passar pela esquina de carro e lá estava o pé de azaléia: florido, é claro.
O tempo passou de novo. Em meio às loucuras climáticas que enfrentamos, o frio foi embora e deu para fazer um calor incrível, impróprio para a primavera, que apenas começava. Pois eu passei de novo pela esquina, sempre de carro, pensando: desta vez, aposto que o pé de azaléia estará que é só folha. As flores não podem ter resistido a este verão antes da hora. Mas, quando parei no sinal, me espantei: lá estava o pé de azaléia florido, parecendo mais viçoso do que nunca, inteiramente coberto por suas flores que lembram lírios, só que na cor maravilha.
Aquilo tanto me intrigou que, um dia desses, na hora do almoço, decidi ir até lá – mas a pé. Tinha um assunto para resolver no Posto Seis e aproveitaria para subir a Rainha Elisabeth caminhando. Queria matar minha curiosidade, observar de perto o pé de azaléia, talvez puxar conversa com o porteiro e tentar saber dele o segredo de um jardim de floração permanente. Os porteiros são quase sempre criaturas sábias, que têm muito para contar.
Fui.
Já quase diante do prédio das azaléias, mas ainda sem cruzar a Conselheiro Lafayette, parei, observando a beleza das flores. E então meus olhos baixaram para as pedras portuguesas que – eu não me lembrava – naquela esquina foram colocadas formando letras, palavras, formando versos de Drummond.
“Vontade de cantar, mas tão absoluta, que me calo, repleto.”
Com esses versos no chão, não admira que a esquina do poeta esteja sempre em flor.
Jogo de espelhos
(3/11/2002)
Deitada em sua espreguiçadeira nova, no terraço à beira-mar, a mulher, de olhos fechados, divagava. Tinha tudo para estar feliz. Fazia tempo, muito tempo, que planejava comprar uma espreguiçadeira assim. Não dessas comuns, de ripas de madeira. Ou, pior, daquelas de plástico branco, fingindo madeira pintada. Não. Sua espreguiçadeira era de um alumínio importado, muito leve e confortável, forrada de uma tela elástica que segundo a vendedora tinha garantia de quinze anos. Quinze anos. Tinha tudo para estar feliz. Comprara, afinal, a espreguiçadeira de seus sonhos. Custara caro. Talvez fosse um pouco grande para um terraço tão acanhado, mas e daí? Era essa a que queria. E conseguira.
E agora, de olhos fechados, divagava, enquanto sentia nas costas a tela maleável, na pele o calor do sol. Com os sentidos em alerta, percebia a mínima viração, a brisa da manhã trazendo os murmúrios da rua, da praia, de pessoas conversando, brincando, felizes.
Como ela. Sim, tinha tudo para estar feliz.
Muitos minutos depois, abriu os olhos. Ajeitou-se na espreguiçadeira, encaixou melhor a viseira que usava como proteção. Talvez devesse ir até a geladeira pegar alguma coisa para beber. Fazia calor. E foi nessa hora que seus olhos pousaram no alto do muro de pedra do terraço. Acima deste, dava para ver a parte superior das portas de vidro, de correr, que, no apartamento vizinho, dividam o terraço da sala. Foi ali que sua vista se fixou. Porque ali, por artes de um estranho jogo de espelhos – que ela própria não conseguia compreender muito bem – ela via, agora, com toda a clareza, o reflexo de um casal que se beijava. Sentou-se – e a visão desapareceu. Voltou a deitar-se na espreguiçadeira. Daquela posição, exatamente daquela posição, via o reflexo do casal, que talvez estivesse sentado no sofá da sala, no apartamento ao lado, sem imaginar estar sendo observado.
A mulher ficou imóvel. Imóvel, com medo de perder o ponto exato em que, como por encanto, se fizera o jogo de espelhos. Imóvel, como ficava em criança, quando, remexendo o caleidoscópio, encontrava de repente uma formação de particular beleza, as pedras coloridas se encaixando num desenho precioso. Imóvel.
Foi um longo e apaixonado beijo. Um beijo como já nem sabia existir, que não via mais talvez nem nas telas do cinema. Não conhecia os vizinhos, nunca se dera com ninguém no prédio. Não sabia quem poderia ser aquele casal que estava ali. Mas sabia, sim, da paixão daquele beijo, um beijo proibido – pois que ela não tinha o direito de observá-lo. Um beijo ardente, sufocante, como um prenúncio de verão.
E sem querer ver mais, a mulher fechou os olhos. Com toda a força, tentou pensar outra vez na alegria de ter uma espreguiçadeira nova.Quinze anos. Quinze anos de garantia. Tinha tudo para estar feliz.
Areias do tempo
(10/11/2002)
Amanhece em Ipanema. Passa um pouco das seis horas. A praia está deserta – ou quase. Caminho junto ao mar, olhando para a frente, na direção do Leste, à espera do sol. Sei que vai surgir de repente, criando nesse primeiro momento uma explosão de luz e incendiando o topo dos prédios e dos morros. É o que busco, esse instante. Por isso acordei tão cedo. Mas sei também que ainda tenho de esperar um pouco. E continuo caminhando.
Para trás, ficaram as dunas, o canal, todo aquele trecho mais largo onde as areias são difíceis de atravessar em tardes quentes de verão. E, à minha frente, a praia se estende em curva, até o ponto onde a pedra se recorta no horizonte, ferida por uma estaca gigantesca, que ali foi colocada pelo homem para (dizem) iluminar o mar à noite.
Em minha caminhada, tenho apenas uma dificuldade: vencer a inclinação da areia que, em alguns pontos, tornou-se escarpada, formando uma parede que me obriga a um andar claudicante. Mas não desisto. Não posso virar as costas para o sol.
Vou em frente.
Logo, e embora tenha os olhos fixos no horizonte, começo a perceber, à minha esquerda, muito ao longe, a silhueta de um homem. Está de pé na areia, de frente para o mar, na ponta do promontório formado pela agitação da maré noturna. Alguma coisa em seus movimentos me chama a atenção. Vou diminuindo o passo à medida que me aproximo, como se intuísse que não devo perturbá-lo. E logo constato que estava certa. Antes que ele me veja, paro.
É um malabarista. Muito sério, os pés bem fincados na areia, traz nas mãos meia dúzia de bastões que, de vez em quando, joga para o ar, um atrás do outro. Às vezes, erra. Mas em geral se sai bem. Está treinando. Deve estar ali por precisar de silêncio, espaço, concentração.
Sento-me na areia íngreme, para observá-lo melhor. E me ponho a pensar nos artistas de rua, toda essa enorme confraria de lutadores anônimos, solitários, às vezes famintos.
Pensando neles, de repente me vem à mente uma cena de Fred Astaire, de terno claro e chapéu de palhinha, sapateando sobre um punhado de areia que despejou no chão. A areia amortece o barulho das chapinhas, fazendo o sapato chiar suavemente contra o assoalho. E, enquanto sapateia na areia, Fred Astaire canta uma canção em que diz querer apenas dançar, “deixar suas marcas nas areias do tempo”, mais nada. Pouco se importa se vai ganhar dinheiro com isso, se vai ou não ficar milionário, se vai deixar alguma coisa para trás. Dançar é o que importa. A arte pela arte.
E, deixando escorrer da mão um punhado de areia, eu sorrio. O sol acaba de explodir no horizonte.
Um outro olhar
(17/11/2002)
Muitas vezes eu os vi passar, de braço dado pelas aléias da praça. Poderiam até parecer um casal, mas só para quem olhasse muito rápido. Um olhar mais atento nos contava de imediato o que eram na verdade. Ele, um senhor já muito idoso, andando com dificuldade. Ela, sua acompanhante. Uma cena comum nos dias de hoje, em que as pessoas vivem muito tempo – talvez tempo demais – e em que os mais jovens, sempre ocupados, já não podem cuidar de seus velhos.
Numa dessas vezes em que os vi passar, observei-os com mais atenção. Nesse dia, eu estava lendo jornal num banco da praça, perto do lago, em torno do qual as crianças brincavamem algazarra. Eo casal surgiu em seu passo lentíssimo, o homem e sua acompanhante. Ela, de meia-idade, muito baixinha e magra, mas bastante ágil. Nem bonita nem feia, a pele morena clara, os cabelos presos atrás da cabeça num coque. Ele, um senhor ainda alto, apesar de um pouco encurvado, e muito magro. Além de andar de braço dado com a acompanhante, usava também uma bengala, dessas antigas, de castão de prata. Tinha cabelos brancos e cheios, envolvendo-lhe a cabeça como uma cabeleira de poeta. Mas sua fisionomia era triste, o olhar parecendo perdido em algum ponto à sua frente. Um olhar vazio, velho.
Passaram por mim, desaparecendo depois por trás de uns arbustos que rodeiam o lago. E, como eles, passaram também os dias.
Até que, certa noite, fui à casa de uma amiga que mora do outro lado da praça. Íamos sair para jantar, mas minha amiga, como sempre, estava atrasada. E, enquanto ela se vestia, debrucei-me no parapeito, distraída. Gosto de janelas. Sempre contam histórias. E eis que ali, diante de mim, estava uma.
No prédio em frente, uma janela aberta. Apenas o vidro aberto, mas a cortina – de voile – fechada, deixando entrever a cena como se através de um daqueles panos finos usados no teatro para representar os sonhos. E foi por essa transparência que vi o casal. O homem e sua acompanhante. Ele, sentado imóvel, diante da janela. Ela, de pé, de costas para a rua – dançava. Com uma echarpe vaporosa nas mãos, evoluía em torno de si mesma em movimentos sensuais, talvez aprendidos na novela, mas fazia-o com uma graça extrema, insuspeitada. O homem continuava imóvel. A névoa criada pela cortina me impedia de ver seu rosto com exatidão.
Mas de repente soprou uma brisa. E a cortina de voile se abriu. Por um segundo, um segundo apenas, pude ver a expressão em seu rosto. Estava sério, não sorria. Mas seu olhar, antes baço, agora faiscava de vida, bebendo com avidez os movimentos da mulher. Era um outro olhar. E foi também com outro olhar que passei a vê-los, depois disso, sempre que caminham pelas aléias da praça, com seu passo lentíssimo. O homem e sua acompanhante.
Um erro
(24/11/2002)
Ouvi outro dia de uma amiga um comentário feito em tom casual. Disse ela que, procurando casa para alugarem São Paulo, tinha
ido parar num lugar mal-assombrado. Como? Era isso mesmo. Vira o anúncio no jornal – e o aluguel estava muito barato. Imaginou logo que talvez a casa estivesse com algum problema de encanamento ou precisando de pintura. Mas decidiu ir ver de qualquer jeito. E foi, acompanhada de uma corretora.
Era uma casa de bom aspecto, com um pequeno jardim na frente. A luz estava desligada, avisou a corretora. Como a casa era mobiliada, entraram com cuidado, para não esbarrar nos móveis. Assim que foi envolvida pela penumbra da sala, minha amiga – que não é impressionável – sentiu-se estranha. Seu coração mudou de tom, o ar parecia chegar aos pulmões com dificuldade, as têmporas começaram a latejar. Foi em frente, em direção à cozinha e dali, sem dizer nada, saiu para o pátio dos fundos. Tentava parecer natural, mas na verdade saía porque precisava de ar. A corretora não a seguiu. No quintal, o jardim estava maltratado, com capim crescido. E, numa pequena clareira, minha amiga viu os restos de uma fogueira. Chegou perto para olhar. Alguém andara queimando roupas.
Teve de repente a sensação inequívoca de estar sendo observada. Virou-se, na certeza de que era a corretora, que a seguira. Mas não havia ninguém. E nesse instante sentiu um sopro no ouvido, como se alguém, muito próximo, desse um profundo suspiro. Percebeu com nitidez o deslocamento de ar.
Entrou, o coração agora latejando na garganta. Quando chegou novamente à sala, a corretora tinha aberto as janelas para que ela pudesse ver melhor o ambiente. E a primeira coisa que minha amiga viu, num canto, encostada à parede, foi a fotografia de um velho, com um sorriso triste. Dos dois lados do retrato, a parede tinha manchas compridas e escuras, de fumo de vela.
– Vamos embora daqui – disse, simplesmente.
Acabou alugando outra casa e procurou nunca mais pensar no assunto. Mas, um ano depois, passando casualmente pela mesma rua, lembrou-se daquela tarde estranha. E prestou atenção na numeração, para dar uma olhada na casa. Mas o terreno estava vazio, com um tapume na frente. A casa fora demolida.
Ao ouvir a história de minha amiga, pensei nas palavras da escritora americana Edith Wharton, de que muito pior do que qualquer castelo mal-assombrado “é uma confortável casa de subúrbio, com refrigerador e sistema de calefação, onde ao entrar você de repente sente que alguma coisa está errada”. Verdade que ela escreveu isso no fim do século dezenove e que de lá para cá as coisas mudaram muito. Mas suas palavras continuam verdadeiras. É um erro pensar que a vida moderna acabou com os fantasmas.
Sobrevivente
(1/12/2002)
Estava procurando vaga numa rua transversal do Leblon quando passei pela frente do prédio. Era um daqueles edifícios pequenos, de três ou quatro andares, tão típicos desse bairro, mas não pude observá-lo direito pois havia um carro atrás do meu. Vi apenas que estava todo descascado, quaseem ruínas. Nacerta, seria derrubado para que em seu lugar surgisse um prédio mais alto e mais moderno. “Lá se vai mais um,” pensei – e segui.
Sou dessas pessoas que torcem pelos prédios pequenos. São em geral construções com fachadas arredondadas, meio art-decô, frisos de cimento e portas de ferro e vidro, no alto de dois ou três degraus. Têm às vezes um jardim na frente, mas quase nunca têm garagem – e isso é o que os condenou. Em compensação, esses prédios têm dimensão humana, as janelas do térreo ou mesmo do primeiro andar ficam ao alcance de um grito e delas se pode conversar com um amigo ou ouvir o canto dos passarinhos que os porteiros insistemem engaiolar. Osprédios novos, não. Têm tantos andares de garagem que o primeiro apartamento fica lá em cima, o que às vezes dá à fachada a aparência de Ministério da Indústria e do Comércio.
Repito: torço pelos prédios pequenos. Eles me fazem lembrar de um Leblon que conheci em criança, quando o bairro ainda estava cheio de terrenos baldios. Num deles, na frente de onde eu morava, na Ataulfo de Paiva, de vez em quando armavam um circo. Íamos até lá, eu e meu irmão, de mãos dadas com a babá. Eram dias terríveis para mim, devo confessar, pois sempre tive horror a circo. Mas hoje relembro aqueles picadeiros com ternura, porque eram armados num lugar tão improvável.
E foi divagando sobre essas coisas que afinal parei o carro (o carro, que é o culpado de tudo), na praia, depois de dar a volta no quarteirão. Saltei e voltei a passar – agora a pé – pela mesma rua, pelo mesmo prédioem ruínas. Efoi então que vi, por trás de um tapume imundo, um apartamento habitado. Parei, surpresa.
Ainda havia alguém morando ali.
Um teimoso. Alguém que na certa resistia a duras penas. Alguém que por isso pagava um preço, o de viver cercado de lixo, num prédio abandonado. Curioso que o apartamento habitado, em contraste com o edifício em ruínas, exibisse muito capricho. Uma varandinha pintada de novo, numa cor moderna (salmão), com uma rede pendurada. Um quadro na parede, enfeitando a nesga de apartamento que eu conseguia enxergar da rua.
Mais do que um teimoso, havia ali um sobrevivente.
E de repente me veio à mente a frase emprestada de Euclides da Cunha: o acossado pela especulação imobiliária é, antes de tudo, um forte.
Um novo dia
(8/12/2002)
Acordou muito cedo. Mais ainda do que de costume. Sabia, desde o primeiro segundo em que abriu os olhos, que aquela não era uma manhã qualquer. Ficou deitada, ainda por um instante, de olhos bem abertos. Ao momento preciso do despertar, ao exato instante em que recobrara a consciência, sucedera-se um senso de urgência, uma contração na boca do estômago. Espreguiçou-se na cama, tentando relaxar. Mas sabia que era inútil.
Olhou para o espaço vazio da cama a seu lado. O marido saíra cedo, muito cedo, como sempre. Ergueu os olhos e observou o quarto. Tudoem ordem. Acômoda antiga que pertencera à sua mãe, com o espelho bisotado, as cortinas de voile, o tapete claro e felpudo, as portas do closet fechadas. Por trás delas, podia imaginar as roupas muito bem ordenadas, cada peça num cabide separado, as gavetas com as peças íntimas dispostas em degradê, as calças cuidadosamente dobradas no calceiro, com suas varetas semelhantes às de um guarda-chuva. Tudoem ordem. Tudocomo encontrara ao acordar no dia anterior. Apenas a sensação de frio na boca do estômago atestava a estranheza daquela manhã.
Levantou da cama, afinal.
Lentamente, caminhou até a janela e abriu as cortinas.
O céu tinha um tom lilás, era quase madrugada, ainda. As montanhas pareciam maiores do que nunca, imponentes. E o espelho d’água exibia minúsculos caminhos de espuma, escavados pelo esforço dos remadores. Sempre lhe pareciam figuras solitárias, mesmo os que remavamem grupo. Porque será que precisam remar sempre tão cedo, quando o dia ainda nem nasceu?
Apertou as mãos no parapeito de mármore. A pedra estava morna, fora uma noite muito quente. Ou talvez fosse o contraste com suas mãos. Passou-as pelo rosto, devagar. Sentiu as pontas dos dedos úmidas, mais frias que o mármore.
Afastou-se da janela e caminhou de volta até o centro do quarto.
Sentou-se na banqueta diante da cômoda, o belo móvel antigo diante do qual sua mãe se sentava, tantos anos antes. Lembrava-se de ficar da porta espiando, enquanto ela penteava os cabelos, negros também. Fora linda, sua mãe.
Passou a escova nos cabelos, que caíam lisos, emoldurando o rosto. Os cabelos negros, como negros eram os olhos – ambos cintilavam. Um brilho diferente, desconhecido, assustador mesmo. Lembrou-se de uma canção, que não cantarolava havia muito, sobre a diferença que um dia pode fazer. Vinte e quatro pequenas horas.
Sabia que não seria fácil. Sabia que havia naquela mudança prazer e dor. Mas seu próprio olhar, com aquele brilho novo, não deixava dúvidas. Acontecera, não tinha como voltar atrás. Nada mais seria como antes.
Aquele era – definitivamente – um novo dia.
O anjo do Maracanã
(15/12/2002)
Hoje não tem jogo no Maracanã.
Se o Fluminense tivesse passado às finais, à tarde o estádio estaria repleto, colorido de verde e grená, salpicado também de preto e branco, porque o jogo seria na certa Fluminense e Santos. Mas, não. Hoje não vai haver ninguém nas arquibancadas, o gramado estará vazio, o anel de cimento da geral mergulhado no mais absoluto silêncio.
Houve um domingo, um domingo em especial, há muitos anos, em que o Maracanã se pintou de verde e grená, de preto e branco. Era o dia 27 de junho de 1971 e eu, mocinha, estava lá, no meio de mais de cem mil pessoas. Era uma final de campeonato e jogavam Fluminense e Botafogo. Mas não lembro do jogo. Naquela época, tinha dificuldade em acompanhar as jogadas com o estádio cheio. Ficava o tempo todo distraída, olhando o movimento da multidão, seu rugido e poder, ouvindo os cantos de guerra, observando o colorido vaporoso das bandeiras. E foi assim que, aos 43 minutos do segundo tempo, nem vi quando a bola entrou. Um a zero Fluminense, o gol do campeonato. Dizem que houve falta, que o gol não valeu. Eu não vi nada. Lembro vagamente do estrondo, do grito imenso, dos pulos e abraços. Mas há uma imagem que guardei comigo, esta com nitidez impressionante. Enquanto todos comemoravam, avistei, alguns metros abaixo de mim, andando de um lado para o outro na arquibancada, um homem, gordinho e careca, enrolado numa bandeira. Estava coberto de talco da cabeça aos pés, mas o que nele me chamou a atenção foi a expressão de fervor. Chorava, soluçava mesmo. E seus olhos úmidos pareciam dois cristais cravados naquela face de pedra, em cujo branco as lágrimas abriam caminhos, como veios.
Nunca mais esqueci aquele rosto.
Muitos anos depois, eu o revi na televisão. Só então fiquei sabendo que era um tricolor folclórico, de nome singelo, bem brasileiro – Guilhermino Santos – , cujo apelido era o Careca do Talco, porque sempre se cobria de talco e pó-de-arroz para ir ao Maracanã. Achei graça, relembrando sua expressão apaixonada, que vira um dia. Mas, na semana passada, justo no dia seguinte à vitória sobre o Corinthians no primeiro jogo, li a notícia triste nos jornais: Guilhermino morreu, vítima de um derrame, aos 68 anos.
Desde então, tenho pensado nele.
Hoje mais do que nunca, ao imaginar o Maracanã vazio. Quase posso vê-lo flutuando pelas arquibancadas, um doce fantasma que escolheu vagar pelo lugar que tanto amou, onde sofreu e foi feliz.
Talvez agora, em dias de estádio vazio como hoje, alguém tenha uma visão de sua figura incorpórea, flanando em meio a uma nuvem de talco, a uma névoa de pó-de-arroz, um tanto etérea e embaçada, como costumam ser as visões. Um anjo flou. Um anjo Flu.
Presente de Natal
(22/12/2002)
A noite já quase caía e eu ia passando pela praia de Ipanema em direção a Copacabana quando o motorista de táxi que me levava soltou uma exclamação. Inclinei-me para a frente, sem entender bem o que ele dizia, só tendo percebido que a frase acabara com a expressão “tudo dourado”. Já ia pedir que ele repetisse o comentário quando meus olhos viram, através do vidro da frente do carro, a imagem à qual sem dúvida o rapaz se referia. Na altura do Castelinho e indo até a ponta do Arpoador, os prédios, a areia, a pedra, tudo estava cor de ouro – e brilhava, brilhava como um enfeite de Natal.
O motorista diminuiu a marcha, ou talvez tenha sido um sinal de trânsito que, num ajuste perfeito e providencial, acabava de fechar. O fato é que ficamos os dois ali, em silêncio, olhando para a frente, observando o cenário tão conhecido mas que naquele instante ganhava uma tonalidade incomum.
Quando o carro recomeçou a andar, olhei para trás. O sol, que já quase se punha atrás do morro do Vidigal, surgira de repente – depois de tantos dias de chuva – e ao vencer as nuvens se mostrava como uma bola de fogo, cujos raios se despejavam diretamente sobre a ponta do Arpoador, formando à nossa frente aquela pequena cidade de ouro, como se saída de um conto das mil e uma noites.
Mas não foi só isso. Havia naquele fim de tarde algo mais.
Mal me recuperara da surpresa e olhei na direção do mar. E ali, muito além das ilhas, estava o pé de um arco-íris, de um colorido perfeito, subindo e desaparecendo no céu lilás do começo de noite, antes de completar o arco. Há muito tempo não via um arco-íris tão nítido, de cores tão bonitas. Mostrei-o ao motorista de táxi que, como eu, parecia não saber mais o que dizer.
Entramos pela Rua Francisco Otaviano, com pena de deixar aquela paisagem para trás. Mas quando desembocamos no Posto Seis, o arco-íris, fugidio e mágico como qualquer arco-íris, estava lá, só que agora inteiro, surgindo de trás do Marimbás, cobrindo com seu arco toda a curva do mar de Copacabana e indo desaparecer para além do Morro do Leme, lá pelas bandas do Pão de Açúcar. Suas cores eram menos nítidas, talvez porque a noite caía depressa, ou porque em Copacabana anoitece primeiro. Mas, de toda forma, era lindo.
E eu me deixei recostar no banco do carro, pensando no fascínio desta cidade, capaz de nos agredir tanto, com violência, sujeira, miséria, e ao mesmo tempo nos dar tanta beleza. E guardei nas retinas aquelas visões – todas as cores do arco-íris, o pôr-do-sol mais dourado – como se fossem presentes de Natal.
O demônio da meia-noite
(29/12/2002)
Pouso os dez dedos sobre o teclado e vacilo. Olho para os lados, inquieta. Nessa época confusa, de fim de ano, ele costuma aparecer. Já quase posso senti-lo, me rondando. Cheguei a pensar em ficar calada, guarda esta sensação como um segredo. Mas de repente me vem a idéia de que preciso encará-lo, e não há melhor forma de fazer isso do que começar pronunciando seu nome. Seu nome, com todas as letras.
Belphegor.
Não estou certa se é assim que se escreve. É pena, porque os demônios dão muita importância a isso. Mas é assim que o imagino, com ph, sem acento, com a tônica na segunda sílaba. Belphegor. Pronto, está dito. Agora, o que tiver de acontecer – acontecerá. Não é um desafio. Ao contrário, é uma espécie de catarse. Tenho a sensação de que se encará-lo e pronunciar seu nome, estarei mais leve, mais livre. E ele irá talvez me respeitar, me tratar com alguma deferência. Vamos ver.
Agora, passo à explicação sobre sua especialidade. Belphegor – isso eu aprendi com um amigo, há muitos anos – é o nome do demônio que vive nas máquinas. Ele é o responsável por aqueles defeitos que nos enlouquecem, por aqueles momentos em que, numa mesma semana, às vezes num mesmo dia, o carro enguiça, a máquina de lavar dá problema, o computador rateia. O computador. Antigamente, quando não havia computador, Belphegor devia viver entediado. Hoje, o computador é sua máquina predileta. E, de todas as proezas de Belphegor, a que mais me fascina é sua capacidade de agir na calada da noite. Desligamos o computador – em casa, ao deitar, ou no fim do dia, no escritório – e está tudo bem. No dia seguinte, quando apertamos o botão e esperamos os ruídos infernais e familiares, algo aconteceu. Mas como? Como, se eu tenho certeza de que ninguém mexeu aqui? Mexeu, sim. Você não sabe, não crê. Mas mexeu. Foi ele.
Às vezes, irá apenas brincar um pouco, rir de você. Fazer coisas sem muita importância, pequenas provocações. Nada muito grave. Algo como, por exemplo, fazer desaparecer aquela barra de ferramentas que ontem mesmo estava ali e que você nem saberia como tirar. Passados mais uns dias, pronto. A barra de ferramentas reaparece. Foi apenas um pequeno sobressalto. Mas é assim que começa.
E já começou, estou certa. A temporada de Belphegor. Porque esta é a época do ano em que ele mais se manifesta, é seu momento de glória, quando todos estão apressados, precisando fazer tudo ao mesmo tempo, e muito rápido. É quando ele se esbalda. Já quase posso ouvir sua risada estridente, ecoando por trás da tela de cristal líquido, à espera do momento em que eu, inocente, distraída, apertarei o botão para desligar a máquina, sem me dar conta de que quando o fizer outra vez – nada mais será como antes.
Belphegor. Bem, estou pronta. Respiro fundo. Vou gravar e mandar. Mas não me surpreenderei em nada se daqui a alguns dias esta última página da revista sair em branco.