2003

CONTOS MÍNIMOS

2003

 

 

Arte

(5/1/2003)

 

Folheio o belo livro sobre Farnese de Andrade. Fragmentos de passado, fotografias esmaecidas, pedaços de bonecas, restos de sonhos ou dores que ele juntava e transformava em objetos de arte, tudo desfila ante meus olhos, página por página. São conchas, vidros, caixas de madeira – madeira com suas arestas amainadas, como a representar a passagem do tempo, que a tudo desgasta, corrói. Que estranha beleza tirava Farnese de Andrade dos pedaços do cotidiano, dos nossos dejetos, restos, recortes.

Eu pouco sabia desse artista – lembrava vagamente de ter ouvido uma referência a ele na casa de Rossella e Franco Terranova –, até que um dia, numa livraria, a capa de um livro me chamou a atenção. Sobre seu fundo azulado, uma mulher de madeira, de expressão sonhadora, observava uma bola de cristal que parecia flutuar à sua frente. Peguei o livro – um volume pesado – e virei-o. E se a capa me despertara a atenção, a contracapa me paralisou. Ali estava, diante de mim, a cabeça nua de uma boneca de biscuit, seus olhos de cristal mirando o vazio, as delicadas pestanas desenhadas, a boca entreaberta deixando ver uma fileira de diminutos dentes. Uma visão fascinante e aterradora, ainda mais porque a boneca, desprovida de cabelos, estava pousada sobre uma superfície qualquer – de cabeça para baixo. Ela me perturbou a tal ponto que durante alguns segundos continuei imóvel, sem saber o que fazer ou pensar.

Só depois, em casa, já de posse do livro, pude folheá-lo com mais calma, observar cada um daqueles objetos, desenhos, pinturas. Eram inúmeras, as bonecas, muitas dentro de blocos de poliéster ou redomas de vidro, como se no fundo do mar. Fizeram-me pensar nas bonecas de biscuit de minha avó – eram quatro –, cujo olhar me aterrorizava (sempre achei que eram assombradas). Mas, na obra de Farnese de Andrade, não há assombro apenas nas bonecas. Retratos antigos, ex-votos, ossos, chaves, santos, contas, tudo nele inquieta, desconcerta, ganha dimensão de arte.Um simples cartão com vista de Cambuquira, incrustado numa caixa de madeira, tem um significado imenso, remetendo-nos a um passado que é de enorme solidão.

Mas, ainda assim, eu me perguntava o que havia ali que mexia tanto comigo. Até que, lendo o texto de Rodrigo Naves, que abre o livro, soube que a obra de Farnese de Andrade é às vezes comparada à obra literária de Lúcio Cardoso, especialmente a seu livro maior, “Crônica da casa assassinada”. E aí compreendi. Em Lúcio, como em Farnese, tudo nos faz pensar em nossa simples condição humana, de seres aprisionados ao tempo e ao espaço.

É estranha essa beleza que reside na alma do artista, esse dom de surpreender, tocar, despertar sensações – ainda que sejam de espanto.
 
 

Ao casal feliz

(12/1/2003)

 

Espero que não me levem a mal, mas escrevo na tentativa de um contato, uma palavra, um sinal – qualquer coisa, não sei, qualquer coisa que preencha o vazio deixado por vocês.

O que houve?

Se tivesse havido um preparo, uma pista qualquer que me levasse a supor o que aconteceria, talvez pudesse ser mais fácil. Mas não. Foi um desaparecimento repentino, intempestivo, inesperado.

Vocês eram para mim o paradigma da felicidade. Ainda posso ver a imagem das manhãs, quando a luz se insinuava através das cortinas, infladas pela brisa marinha. A luminosidade refletida nos tijolos de vidro enchia toda a sala de calor. Ou talvez fosse o gato amarelo que, deitado no parapeito, espalhasse aquela sensação de conforto. Os gatos são assim, capazes de se deitar num tijolo e fazê-lo parecer um travesseiro de penas. Mas na sala de vocês não havia apenas o gato. Havia também o cão. Um cão labrador, manso e amarelo como o gato, e que dormia ao lado deste, em total harmonia. E havia, ainda, os livros. Uma estante repleta deles, numa doce desordem. Não livros encadernados, excessivamente arrumadinhos, que dão a impressão de estar ali apenas para que a estante não fique vazia. Não. Os livros de vocês eram livros manuseados, de lombadas gastas, nem sempre bonitas. Livros com alma, companheiros, livros de quem ama a leitura. Toda a sala, aliás, transmitia essa sensação de despojamento, que a fazia parecer acolhedora. Não era uma dessas salas modernas onde tudo é branco e limpo, onde as paredes são nuas e parecem o estande de um salão de exposições. A de vocês era uma sala viva, quente, com sofás meio velhos, cobertos por mantas coloridas, com pilhas de revistas sobre as mesas e cachepôs de mosaico envolvendo delicados pés de orquídeas. Uma sala de verdade, onde vivia um casal de verdade, um homem mais velho, um pouco grisalho, uma mulher magra, suave e feminina. Um casal feliz.

Foi assim que os imaginei desde a primeira vez. Foi como os compus em minha mente e como nela vocês se cristalizaram, com o passar dos anos. Através de vocês, eu tinha diante de mim um mundo harmônico, mas com todas as cores do real. Uma utopia em carne e osso.

E de repente, um dia – sem qualquer aviso –, vocês desapareceram.

Abri a janela certa manhã e com espanto, quase com horror, vi do outro lado da rua o apartamento vazio. Descarnado, nu, sem mais móveis ou cortinas, sem mais nada. Apenas a parede de tijolos de vidro e o balcão junto à janela onde o gato se deitava continuavam lá, uma pitada de passado que tornava ainda maior a sensação de isolamento e desolação.

E me perguntei – por quê? O que teria motivado a transformação, que outro arranjo ou oferta, que nova vida, casa ou cidade teriam sido suficientes para levá-los embora, deixando para trás um lugar de tanta perfeição e harmonia?

É só isso que preciso saber. Por isso, por favor, entremem contato. Casocontrário, posso até pensar que a felicidade não existe.

 

No papel

(19/1/2003)

A médica entrou na sala de recreação e observou que estava quase vazia. Apenas um ou outro interno continuava sentado ali àquela hora, desenhando, mexendo com cubos e fôrmas, pintando. E viu que entre eles estava o velho. Gostava dele. Tinha pena, também, pois sabia que era um daqueles casos irrecuperáveis, de gente que está há tanto tempo internada que não terá mais como enfrentar o mundo lá fora. E caminhou até ele.

Pouco depois estavam sentados os dois lado a lado, dando risadas. Quem os visse assim, de longe, tão díspares, haveria de se espantar com tanta alegria e intimidade. Ela, uma mulher ainda bem jovem, de cabelos muito lisos, quase louros, cortados rente ao queixo, vestida com seu jaleco branco. Ele, um homem magro e de corpo ainda rijo, mas com um rosto que parecia ter mil anos, tal a profundidade dos sulcos escavados na pele, sulcos que nas mãos pareciam encontrar o seu contrário, pois nelas, em seu dorso, o que havia eram veias saltadas, cruzando a pele em todas as direções como rios num mapa.

Às vistas da moça, o velho desenhava. Sobre a mesa de tampo rústico, feita talvez de madeira de demolição onde ainda restavam manchas de tinta, estavam espalhados papéis e lápis de cera de todas as cores. A médica observava, sempre intrigada, a desenvoltura, a leveza com que o velho traçava seus traços, a maneira como os desenhos iam surgindo. Embora nem sempre lógicos, ordenados, eram contudo desenhos de grande força e beleza. À medida que os desenhava, o velho ia explicando para a médica o que significavam, aqui um peixe nadando nas profundezas, ali uma menina fazendo primeira comunhão, depois uma árvore que, ao contrário de todas as outras, tinha nascido com as raízes viradas para cima.

Mas foi só depois de quase meia hora de desenhos e conversa que o velho parou por um instante, espichando o olhar para fora dos janelões da instituição, que se debruçavam para um bananal. Continuou imóvel por um longo instante, com uma expressão neutra, indecifrável, como se tomado por uma catatonia. Quando a moça já pensava em fazer um movimento, perguntar alguma coisa, ele finalmente se mexeu. Curvou-se mais sobre a mesa e, tomando uma folha de papel e um lápis de cera preto, começou a desenhar alguma coisa. Desenhou, com precisão e riqueza de detalhes, uma grande aranha negra. A jovem olhou-o, à espera de uma explicação, e não precisou esperar muito.

“Pronto,” disse ele. “Agora não tem mais perigo. Se eu desenho, ela fica presa no papel e pára de existir dentro de mim.”

A moça sorriu, conversou um pouco mais e depois se levantou, saindo. Foi até sua sala e ficou um instante em silêncio, espiando as árvores lá fora, como o velho fizera. Em seguida, virou-se, caminhou até a escrivaninha e, tomando de uma folha de papel, escreveu nela um nome. Um nome de homem.

“Talvez assim eu possa arrancá-lo de dentro de mim.”

 

O quarto das bonecas

(26/1/2003)

 

Ficava nos fundos e suas janelas davam para o pátio, o pátio e seus coqueiros, seus pés de caju, plantados num chão de areia que parecia açúcar cristal. Davam também para a varanda, como aliás todos os cômodos da casa, a varanda e seus arcos, seu chão de lajotas vermelhas, suas jardineiras de samambaias. Mas não quero falar do pátio, nem da varanda, e sim do quarto em si. É a ele que devemos voltar. Ficava nos fundos e servia, entre outras coisas, de quarto de costura. Por isso, talvez, por haver ali dentro artigos perigosos para uma criança, coisas como tesouras e agulhas, esse quarto nos era vedado. Irônico que nós, meninos e meninas (ou pelo menos, eu), o chamássemos mentalmente de um nome tão associado ao mundo infantil: o quarto das bonecas.

Dera esse nome ao quarto porque sabia que era ali que minha avó guardava suas bonecas antigas, aqueles pequenos seres de louça que, como tesouras e agulhas, também nos eram proibidos. Eram quatro e eu sabia seus nomes, dados por minha avó: Aída, Nicinho, Celane e Regina. Por que esses nomes? Nunca soube. Não eram bonecas comuns. Uma delas, a maior e mais antiga, fora fabricada no século dezenove, minha avó dizia, mostrando o pequeno selo no alto da perna, que atestava sua procedência francesa. Era um ritual quando vovó nos chamava para ver as bonecas. Ela as segurava e deixava que as tocássemos, mas apenas por um instante, e nunca – nunca – sem que fosse na presença dela.

Mas um dia, eu passava pela varanda quando vi a janela aberta. Eu estava crescendo e, pondo-me na ponta dos pés, podia espiar por cima do parapeito. Foi o que fiz. O quarto estava fechado e vazio. Meus olhos imediatamente se prenderam naqueles pares de olhos de cristal, sempre mirando o vazio. Nicinho e Aída tinham os olhos azuis. Celane e Regina, castanhos. Regina, embora fosse a menor, era a minha predileta. Seus olhos eram sombreados por imensos cílios, seus lábios entreabertos num sorriso em que se viam pequeninos dentes, cintilantes. Elas me assombravam, aquelas bonecas. Mas, como tudo que assombra, fascina – eu as queria. Com um impulso, pulei o parapeito e entrei no quarto.

Estava com Regina no colo quando ouvi o barulho do trinco, alguém entrando. No susto, fiz um movimento brusco e – pronto – Regina foi ao chão. De seu rosto de biscuit, só restaram cacos.

Já não me lembro se me botaram de castigo. Sei que foi uma consternação. Minha avó, inconformada, levou Regina ao “médico das bonecas”, uma espécie de faz-tudo, e, muito tempo depois, reapareceu com ela. Aproveitaram o corpo de massa e aplicaram-lhe uma nova cabeça, a mais parecida que puderam encontrar. Mas não ficou igual. Regina nunca mais foi a mesma. Vovó olhava para ela de vez em quando e balançava a cabeça: “O outro rostinho era mais alegre, ela sorria mais.”

E pela infância afora eu carreguei aquela culpa, de ter transformado a alma de uma boneca numa alma triste.

 

O jovem poeta

(2/2/2003)

 

Era uma noite de sexta-feira, a noite das solidões. Mais do que o sábado, mais do que qualquer outro dia, a sexta-feira é quando os solitários saem à rua como lobos famintos. Era uma noite assim. E, ainda por cima, fazia muito calor. Talvez houvesse até uma lua, quem sabe mesmo uma lua cheia, escondida por trás da capa de nuvens, deixando o ar abafado e cinzento, de uma umidade quase intolerável. O restaurante com mesas na calçada estava apinhado de gente. Jovens, na maioria. Mais moças do que rapazes, todos rindo muito, falando alto. Os rapazes com roupas meios largadas, os tênis surrados, as meninas com suas camisetas justas, as calças de cintura baixa, os sapatos imensos, de solado alto.

De repente, vira a esquina um rapaz, com uma enorme bolsa de lona preta, à tiracolo. Algo nele chama a atenção, de imediato. É muito jovem, como tantos à sua volta, mas de toda sua indumentária apenas a bolsa de lona parece combinar com sua idade. No corpo traz uma roupa formal, camisa social e calça escura, parecendo muito usada. Tem os cabelos cortados curtos, o semblante muito sério. Assim que se aproxima das mesas, tira da bolsa um punhado de livretos de capa vermelha e me pergunto se não será o representante de alguma seita, tentando reconduzir o rebanho da noite para a senda do bem. Mas só quando ele chega onde estou, e me oferece o livreto, é que entendo. Ele é um poeta.

E se algo nele me parecia esquerdo, agora descanso, já não estranho nada. Sei que a um poeta tudo é permitido.

Chamo-o – e ele parece espantar-se com meu interesse. Tímido, quase nada diz. Quando me passa o livro, sinto o roçar de sua mão fria e úmida, como um réptil, um filhote de pássaro. Rapidamente se afasta, esgueirando-se entre as mesas, tentando vencer os sons de risos e conversas. Só então abro o livreto, ao acaso.

 

“Minha alma de poeta/ fluida, etérea,/ evaporou-se/ no ar morno da noite/ como um fantasma,/ desapareceu.

“Minha veia de poeta/ fina, frágil/ sangrou em vão/ verteu apenas pó.

“Meu coração de poeta/ tímido/ pulsou devagar/ por um instante/ sentiu-se vivo.

“Tolice/ engano.

“O vazio de meu peito/ o esmagou/ como a um pequeno pássaro/ que/ sem nunca ter alçado vôo/ morreu/ preso no ninho/ no ninho apodreceu.”

 

Olho em torno, em busca do jovem poeta, mas ele já não está à vista. Por alguma razão, seus versos me tocaram, como se explicassem tudo, o aspecto deslocado, aquelas mãos frias. E de repente volto no tempo, revendo a menina solitária que durante anos amaldiçoou a própria incomunicabilidade, buscou em vão um ponto de contato.

Aquele poeta era eu.

 

 

 A porta

(9/2/2003)

 

Fazia muitos anos já que ela mandara consertar a porta. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Talvez fosse por causa do calor. O fato é que fechava a porta do quarto com todo o cuidado ao deitar, apenas para acordar sobressaltada no meio da noite com ela se abrindo, com um estalo. Aquilo lhe dava nos nervos. Depois de se levantar para voltar a fechar a porta, ficava um tempo enorme até conseguir adormecer outra vez. De manhã, olhava-se no espelho com desgosto. Aquelas noites de sono interrompido lhe faziam mal ao semblante, que agora vivia sombreado por imensas olheiras.

Naquela noite, antes de fechar a porta, já pronta para se deitar, decidiu examinar o trinco com atenção. Mexeu na maçaneta, rodou a chave de um lado para o outro. A solução poderia ser dormir com a porta trancada a chave, mas isso lhe daria aflição. Só queria poder encostar a porta e dormir em paz, mais nada.

Durante muitos anos, no passado, aquela porta fora empenada, mas ela mandara consertar. Numa das vezes em que pintara a casa, pedira ao pintor que arrancasse a porta das dobradiças e passasse a plaina, para que não mais agarrasse no portal. Tinha ficado ótima. Por que estaria acontecendo de novo, então? Só podia ser por causa do calor.

Com um suspiro, tentou fechar a porta, mas a madeira parecia resistir cada vez mais, como se estivesse mesmo empenando novamente. Encostou o ombro à porta e fez força com o corpo, para que o trinco encaixasse.

E então a lembrança lhe voltou, de um jato.

Madrugada. Silêncio. Ela abria os olhos, mas por um momento ainda flutuava numa região intermediária entre a vigília e o sono. Tinha o corpo saciado, envolto por um cansaço imenso, queria continuar dormindo, mas alguma coisa a chamava. Ouvira um ruído qualquer, um rumor. Fora isso. Erguia-se na cama – e ali estava ele. Diante dela, junto à porta do quarto, quase encoberto pela penumbra, seu pássaro do prazer.

Era um pássaro noturno, visitante que, como um vampiro, saía antes que o sol nascesse. Antes de girar a maçaneta, ele forçava a porta empenada com o ombro, para que não estalasse ao abrir, assim denunciando sua fuga. Queria sair sem que ela o visse, sem acordá-la. Mas a porta sempre o traía. E ela o via ir embora, com um nó na garganta. Era sempre assim. Fora sempre assim, por muitos anos.

Mas por que tudo isso agora? Por que aquela lembrança extemporânea, invadindo seu cotidiano tão pacificado?

E por que a porta voltara a empenar, se ela, precavida, mandara aplainar a madeira, para nunca mais se lembrar?

Bem, talvez fosse por causa do calor. Só podia ser.

 

 

Na Glória

(16/2/2003)

 

Outro dia, saindo de um sebo de livros na Rua do Catete, decidi ir caminhando até a Lapa, para almoçar em algum daqueles simpáticos restaurantes ao redor dos Arcos. Com essa decisão, tive a oportunidade de andar a pé pela Glória, coisa que nunca faço.

Depois de cruzar a Rua Bento Lisboa, segui pela calçada da esquerda e, logo depois de avistar o relógio da Glória, passei pela frente do prédio onde morou Pedro Nava – e em cuja porta, atravessado nos degraus da entrada, dormia profundamente um mendigo. Enquanto andava, observava à minha direita, para além da pista de carros, a beleza degradada da mureta que antigamente dava para o mar e pensava num Rio cheio de lampiões antigos, chafarizes e jardins parisienses. Mas logo sacudi aqueles pensamentos de passado, evocando um exemplo de Rio eterno e maravilhoso: a lembrança de que ali, sob a sombra das árvores seculares que formam uma cobertura filigranada, realiza-se nos fins de semana uma simpática feira onde um grupo toca chorinho entre legumes, verduras e flores. Nada mais carioca.

Seguiem frente. Mas, apesar de todo o charme, a decadência da região ia me saltando aos olhos à medida que eu andava. Nas portarias dos prédios antigos, que na certa escondem aqueles lindos apartamentos de pé-direito alto e salões com arcadas, eu via o mármore já gasto, os apliques de bronze comidos pelo tempo, as fachadas repletas de pichações. É pena. Mas, ainda uma vez, procurei me concentrar na beleza – inegável – daquele bairro tão cheio de história e histórias.

Até que, a uma certa altura, naquela mesma calçada, passei diante de um chafariz antigo, completamente abandonado. Parei. Os tanques de pedra, secos, estavam cheios de lixo até a boca, a imundície chegando a tal ponto que era quase impossível divisar o chafariz em meio ao monturo. À frente das paredes de granito, imensamente gastas e imundas, camelôs vendiam bugigangas, balas e chicletes em duas carrocinhas improvisadas. Por trás do que restava do antigo chafariz, um pedaço de morro, com um resto de vegetação, era a lembrança pálida de um tempo em que certamente por ali descera um curso de água límpida, que se acumulava nos bojos dos tanques, onde era colhida pelas mucamas. Que o chafariz não mais servisse a tais propósitos, até porque felizmente já não há mucamas e a água nos chega agora pelas torneiras, é mais do que compreensível – é lógico. Mas que pelo menos se preservasse melhor aquele monumento de pedra, testemunha do passado num país que sabidamente não tem memória.

Dando de ombros, dei mais uns passos para me afastar dali, tentando outra vez me concentrar nas belezas do caminho – que no Rio, apesar de tudo, são sempre inúmeras –, quando na parede junto ao chafariz vi uma velha placa de bronze, tão negra de fuligem que mal se podia ler sua inscrição. Cheguei mais perto e não pude deixar de rir quando, apertando os olhos, consegui afinal constatar a suprema ironia do que ali estava escrito: “Patrimônio Histórico Nacional”.

 

 

Um lapso

(23/2/2003)

 

Naquela manhã, eu tinha lido uma história numa revista americana, que me deixara impressionada. Foi talvez uma coincidência, não sei. Sempre me pergunto se coincidências existem. Bem, o fato é que eu lera sobre uma jovem, Tracy Carcione, que fizera uma demonstração no Museu de Arte Moderna de Nova York. Críticos tinham sido chamados para ver Tracy, uma artista autodidata, desenhar. Quem chegasse, dizia a matéria da revista, e visse a apresentação – Tracy sentada diante de seus observadores, desenhando com uma caneta esferográfica objetos de forma geométrica – na certa não acharia nada demais. Isso, até saber o motivo por que Tracy estava ali: ela era cega desde a infância. E embora pudesse apenas tocar nos objetos de madeira que tinha à sua frente – cones, cubos e esferas –, era capaz de desenhá-los com um perfeito senso de perspectiva, tão perfeito que chamava a atenção. Segundo a revista, o caso de Tracy não é único e mesmo os cegos de nascença são às vezes capazes de copiar objetos com uma perfeição admirável. A explicação seria a de que o desenho é uma habilidade cognitiva tão profundamente embutida no cérebro que é capaz de se manifestar mesmo entre aqueles que nunca enxergaram.

Achei isso interessante e, refletindo sobre a capacidade que o ser humano tem de superar as próprias deficiências (o mesmo ser humano capaz de cometer tantas atrocidades), lá fui eu, dar minha caminhada de domingo, na orla. Era, como tantas têm sido, uma linda manhã de sol, mas não fazia um calor excessivo. Uma aragem movia as palmeiras, começando a querer levantar a crista das ondas. Eu ia, distraída, olhando o mar, quando de repente vi, alguns metros à minha frente, vindo em minha direção, um casal de cegos. Eram jovens, ainda. Caminhavam juntos, apoiados um no outro e em suas bengalas especiais. Mas havia nesse andar uma desenvoltura inesperada, como se estivessem certos de que, juntos, nenhum objeto lhes barraria o caminho. Como se nada tivessem a temer.

Essa característica me fez parar. E também a lembrança imediata da história sobre a moça cega que desenhava. E enquanto pensava no que será viver num mundo de trevas, esperei, junto à calçada, que passassem por mim. Mas ocorre que eles pararam também. Pararam e se olharam. Mais do que isso, envolveram-se nos braços um do outro – e se beijaram.

Não foi  um beijo espetaculoso, foi apenas um beijo leve, nos lábios, mas carregado de tamanha ternura que foi como se de repente tudo à volta deles se congelasse, ou deixasse de existir, ou existisse dentro de uma dimensão encantada. Por um instante em suspensão, um lapso, tempo e espaço desapareceram, restando apenas aquele beijo tátil, alimentado pela matéria escura em que estavam mergulhados. Todos em volta pareceram compreender. E – não foi impressão, tenho certeza – fez-se um silêncio profundo durante o tempo assombrado que durou o beijo. Naquele instante, existiram apenas eles dois, mais nada, imersos em seu mundo de escuridão e silêncio.

 

Os buracos da máscara

(9/3/2003)

 

Ele, um homem tão sisudo, tão chegado às letras, desses que só pensam em trabalhar (era revisor numa editora), tinha com o carnaval uma relação como as de antigamente. Durante os quatro dias da festa, transformava-se. O rato de sebos, o homem introspectivo e solitário, que só andava de vista baixa, quase escondido por trás dos óculos de grau – desaparecia. E em seu lugar surgia outro, livre, brincalhão, que sabia de cor todas as marchinhas, mesmo as mais antigas, e que varava as madrugadas dançando pelas ruas do Centro.

Sábado, acordou cedo e foi logo tomando o metrô para a Cinelândia. Era como sua temporada de folia começava. Pelo Cordão do Bola Preta. Assim que subiu a escada perto do Amarelinho, fez aquilo que fazia sempre, no carnaval. Tirou os óculos e guardou no bolso da camisa. Satisfeito, peito estufado, olhouem volta. Pronto. Comotodos os anos, o mundo era agora um borrão multicor, confuso, desfocado, mas por isso mesmo envolvente, que o tragava e arrastava como numa vertigem. A miopia era a senha para sua liberdade.

Com um sorriso nos lábios, o rosto já desvairado, misturou-se à multidão. O sol, batendo inclemente nas cabeças e nas pedras, fazia ferver o álcool das veias. Em poucos minutos, o homem já se deixara arrastar de forma tão completa que era como se seu ser individual cessasse de existir. E foi nesse torpor que de repente percebeu a seu lado, no ponto em que a multidão era mais densa, um rosto mascarado.

Embora fora de foco, ou talvez por isso mesmo, a visão o fez parar de cantar. A máscara, de um vermelho muito vivo, pairando um pouco acima das outras cabeças, estava virada para ele, como se o encarasse. Sentiu uma inquietação. Contrariando os próprios princípios, tateou o bolso da camisa, em busca dos óculos. Queria ver que olhar se escondia por trás dos buracos daquela máscara. E então, num segundo, veio-lhe à lembrança um livro que comprara num sebo, anos antes. “Os buracos da máscara”, uma antologia de contos fantásticos, traduzidos por José Paulo Paes, de quem ele gostava muito. O conto que dava título ao livro, escrito por um autor francês cujo nome ele já não recordava, falava de um homem que, num baile de máscara, vivia um momento de terror. Enquanto pensava isso, o revisor puxou os óculos do bolso. A máscara parecia aproximar-se. E crescia nele a impressão de que, assim como no conto, por trás da máscara que o encarava não havia olhos – não havia nada. Suas mãos suadas lutavam para abrir as hastes dos óculos. Mas um ondear da multidão o empurrou com mais força e os óculos escapuliram, foram ao chão, desaparecendo  em meio à massa de pernas e pés.

O homem ficou imóvel, olhando tolamente para baixo. Sabia que não adiantava se abaixar para procurar. Agora, quisesse ou não, estava condenado à visão desfocada, por todo o carnaval. Virando-se, começou a remar na multidão, para sair dali. Melhor assim. Melhor não descobrir o que havia por trás daquela máscara.

 

Na madrugada

(16/3/2003)

 

Passava da meia-noite, começo da madrugada de segunda-feira. E eu voltando para casa, sozinha em meu carro.

Como em geral acontece nas madrugadas de segunda-feira, estava tudo deserto, ainda mais naquelas ruas que parecem estradas, lá para os lados da Barra, a caminho de Jacarepaguá. Sem ar refrigerado, eu ia com as janelas abertas, o vento entrando e rodeando o carro por dentro, em grandes lufadas. Eu dirigia como sempre distraída, perdida em pensamentos, muito longe dali.

Quando a Barra foi ficando para trás, fiz uma curva à esquerda, outra à direita e peguei uma pequena ponte para tomar a avenida principal que corta a Cidade de Deus, caminho obrigatório para mim. Ali havia mais vida, mais movimento, embora já fosse madrugada. Junto à pracinha, no ponto em que a avenida faz uma leve curva, o sinal fechou e, mesmo àquela hora, parei. Sempre parei em sinais vermelhos. Sempre levei a sério essa coisa de obedecer a regras e leis, mesmo que isso signifique algum perigo.

Mas nada aconteceu. E segui em frente, ainda pensando na vida, distraída e sem pressa. Com o vidro aberto, indiferente à noite que me cercava.

Alguns minutos depois, cheguei afinal ao Largo da Taquara. Ali também havia lugares abertos, a padaria iluminada na esquina, pessoas debruçadas no balcão, ao longe um rumor de samba. E sinais vermelhos. Muitos sinais vermelhos. Alguns deles nas ruelas desertas que eu precisava pegar, para fazer o contorno do largo e tomar a Avenida Rodrigues Alves. Pareiem todos. Como vidro aberto. E era madrugada, já. Madrugada de segunda-feira.

Mas nada aconteceu.

Cheguei afinal à Rodrigues Alves e, depois de alguns quilômetros, virei à direita na rua deserta que era meu destino. Parecia mais deserta do que nunca. Parei diante do portão de ripas de madeira, já meio podre, puxei o freio de mão e saltei do carro. Podia ouvir o som dos meus passos no chão de terra, tal a quietude da rua. Nunca tive portão eletrônico, nem cadeado, apenas aquele velho portão de ripas, com uma corrente enrolada para manter as bandas fechadas. A inconveniência era que, para entrar ou sair, precisava saltar do carro para abrir o portão. E era o que eu fazia agora. Sozinha. De madrugada.

Empurrei uma banda do portão, depois a outra. Com dificuldade, pois elas agarravam no chão de terra. Prendi cada uma delas com uma pedra e voltei para o carro. Olheiem volta. Arua deserta. Eu ali, sozinha. Uma mulher sozinha, na madrugada. Uma madrugada de segunda-feira. Não sei como não tenho medo, pensei. Mas, não. Não tinha medo.

Entrei. Voltei a frear o carro e saltar, para fechar o portão e só então subir. E subi.

Não. Não esperem o desfecho dramático. Nada me aconteceu. Nunca, nas inúmeras vezes em que fiz isso, nas incontáveis noites e madrugadas, saindo do jornal. Parece mentira, não é? E agora acreditem: tudo isso aconteceu há pouco mais de quinze anos.

 

Nova estação

(23/3/2003)

 

Alguém um dia lhe contara que na China o Ministério da Justiça se chama Ministério do Outono. Isto, porque para os chineses, com sua sabedoria milenar, o outono é o tempo dos julgamentos. Passado o verão, com seu calor e euforia, chega a hora de iniciar a preparação para o inverno, sendo portanto o momento de separar as coisas, ponderar, fazer escolhas.

Pensando nisso, com o jornal nas mãos, a mulher ergueu o olhar para a chuva lá fora, anunciando por fim que o verão acabara. Sempre se disse que no Brasil, e no Rio principalmente, as estações do ano não são bem marcadas, mas desta vez o outono (alguns dias antes do calendário, é verdade) tinha chegado de um dia para o outro, sem gradações. Junto com a chuva, a temperatura despencara, o céu se fizera cinzento – toda a paisagem mudara de repente.

Talvez fosse um sinal, pensou.

Levantou-se e, deixando o jornal sobre a mesinha de centro, caminhou até a varanda. A chuva diminuíra um pouco e agora os morros estavam mais visíveis, em meio à cerração. A floresta, antes tão verde, fora coberta por uma película cinza-azulada. E nos espaços sem vegetação, ela via muito bem os paredões transformados em leitos de pequenas cascatas, os pontos em que a pedra nua brilhava, encharcada. Os morros choravam.

Não seria fácil, sabia muito bem.

“Toda decisão implica uma renúncia,” dizia seu tio quando ela era mocinha, citando um filósofo qualquer, Schopenhauer talvez. E ela prestava enorme atenção, a frase lhe parecendo de uma grandeza imensa, seus significados desdobrando-se diante de seus olhos em mil camadas, infindáveis. A verdade contida naquela sentença a deixava perplexa, principalmente por ela jamais ter pensado nisso antes.

Uma escolha. Uma renúncia. Não, não seria fácil. Cruzou os braços, abraçou-se. Podia sentir na superfície da pele os minúsculos pêlos eriçados. Estava quase frio. Precisava tomar coragem.

Tornou a entrar e a sentar-se no sofá. A gata veio aninhar-se em seu colo. Engraçado. No verão, ela nunca fazia isso. A cada troca de estação, antes até de qualquer modificação visível na temperatura, a gata mudava de comportamento, escolhia novos lugares da casa para cochilar.

Torcendo os dedos, a mulher olhou para o telefone. Era preciso. Sim, seria melhor assim. Como as estações, os amores também vivem seus ciclos. E às vezes chega a hora de um escolha, por mais tristeza que isso traga. Acontece. Que fazer? Não pode ser verão para sempre.

E, com as pontas dos dedos frios, ela ergueu o fone. Não podia esperar nem mais um segundo. Sua decisão estava tomada.

 

 

O menino sem bola

(30/3/2003)

Há um poema de Jacques Prévert em torno do qual eu sempre faço comigo mesma uma aposta. De tempos em tempos, tento lê-lo, do início ao fim, em voz alta. Mas não adianta, não consigo terminar a leitura. Em algum ponto, não importa qual, minha voz falha. Alguma coisa se fecha, aperta, esmaga e o som morre na garganta, não sai mais. Eu mesma acho um exagero, uma bobagem – mas não adianta. A voz se recusa a sair.

Chama-se “Barbara”. Começa singelo, apenas a recordação de uma bela mulher, cruzando uma rua. “Eu me lembro de ti, Barbara, chovia sem parar naquele dia em Brest e tu caminhavas, sorrindo”.  O poeta sabe que ela se chama Barbara porque um homem gritou seu nome da outra calçada e ela correu para seus braços.

Barbara. O poeta nunca mais a viu, nada sabe sobre ela. Por que, então, não pode esquecê-la? Por que sua imagem se mantém tão viva, a imagem de uma mulher apaixonada, cruzando uma rua sob a chuva?

Porque agora já não choveem Brest. Agora, o que cai sobre as ruas, os prédios, é uma chuva de ferro e fogo e sangue, pois começou a guerra. “Ah, Barbara, que absurdo é a guerra”, diz o poeta. E ele se pergunta – em meio a tanto luto, o que terá acontecido com ela, com seu sorriso e seu amor?

O poema de Prevért foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando começaram a cair as bombas sobre Bagdá. Porque eu sabia que, em meio àquela cidade deserta, àquelas ruas silenciosas no amanhecer, cuja quietude era cruzada apenas de vez em quando pela presença absurda, atemporal, de um ou outro ônibus, de um ou outro carro, eu sabia que ali, em algum lugar, escondido talvez ou tentando fugir – estava um menino.

Era um menino magro, de sorriso e olhos imensos, mostrado por uma câmera de televisão algumas semanas antes da guerra. Ia descalço, andando solto pelas ruas, por entre as bancas de verdura e frutas. Tinha os cabelos pretos cortados curtos, mas mesmo assim desfeitos, empoeirados. Parecia pobre, desnutrido, a própria imagem de uma infância crescida ao tempo de um embargo cruel. Mas estava feliz. E mais feliz ainda ficou quando soube que a câmera que o focalizava era de um país distante chamado Brasil. O menino alargou o sorriso enorme e ergueu o agasalho, mostrando a camiseta que levava por baixo, da seleção brasileira. Depois, sempre sorrindo para a lente do cinegrafista, disse o nome do jogador de futebol que admirava – Rivaldo – e imediatamente se pôs a fazer com o pé uma embaixada imaginária, sem bola.

Não me saiu mais da cabeça, esse menino sem nome, sem bola, de sorriso feliz. E agora, como Prevért, toda vez que cai a chuva de ferro e fogo e sangue, revejo seu rosto, não consigo esquecer.

Eu me lembro de você, menino.

 

Momento lúdico

(6/4/2003)

Volto à guerra. Não queria falar dela, mais. Queria fazer neste espaço um conto, uma história, qualquer coisa fluida, etérea – inteiramente desvinculada do real. Mas não pude. A guerra está em toda parte. Podemos tocá-la com as mãos, todos os dias de manhã, enquanto tomamos café. De dia ela nos segue, se insinua, pontua as conversas pelas ruas. À noite ressurge ainda mais viva, entrando por nossos olhos na hora do jantar.

Talvez seja mesmo melhor escrever. Antes que estejamos todos definitivamente embrutecidos, antes que as imagens de fogo e sangue se cristalizem de tal forma dentro de nós que já não haja mãos para contá-las.

Volto à guerra. E busco mais uma vez um ponto de contato.

Certa vez folheei um livro de fotografias do psicanalista Hugo Denizart sobre os internos da Colônia Juliano Moreira. Aqueles mesmos loucos que um dia povoaram minha infância, pois eles viviam soltos nas ruas de Jacarepaguá, onde minha família tinha um sítio. O livro de Denizart, com belas fotos, mostrava uma coisa: que os internos, com seus uniformes de brim azul, tinham sempre um detalhe qualquer na roupa – e isso os tornava diferentes entre si. Um bordado, uma gola virada, uma bainha desfiada, qualquer coisa que os fizesse acreditar que, apesar de tudo, ainda eram seres individuais.

Aí está. Nosso alento possível é manter o foco no ser humano, no indivíduo, não deixar que a guerra se transforme num amontoado de números.

Foi por isso que outro dia falei do menino sem bola, fazendo sua embaixada imaginária. Porque ele é único, aconteça o que acontecer. E é por isso também que hoje falo de outra imagem dessa guerra: uma partida de futebol em Bagdá, num estádio com mais espectadores do que às vezes vemos por aqui. Ao fundo, por cima das arquibancadas, a fumaça das bombas, a cidade em chamas.

Olhei a fotografia e fiquei pasma. Depois li que, num dado momento do jogo, houve uma explosão perto do estádio e a zaga de um dos times se desconcentrou, tomando um gol. Parece mentira, uma brincadeira macabra. Parece absurdo, quase uma temeridade.

Como é que aqueles homens podiam ter coragem de jogar futebol em plena guerra?

Mas depois fiquei pensando.

Talvez, em meio a tanto horror, eles estivessem ali para acreditar que ainda são humanos. Havia dignidade naquele gesto, mais até do que coragem. O momento lúdico, a guerra de mentira por uma bola, um objetivo, um gol, tudo o que poderia parecer pequeno diante da imensa tragédia da batalha de repente se revestiu de uma grandeza insondável. Porque talvez não haja nada tão humano quanto brincar. Afinal, o homem – por mais atrocidades que seja capaz de cometer – é o único animal que ri.

 

 

Uma mulher

(13/4/2003)

 

Estava satisfeita. O dia fora muito proveitoso. Não era sempre que conseguia cumprir todas as metas. A caminhada, as quatro horas na academia – duas de manhã, duas de tardinha –, a estimulação, o pilates. Muito bom. E agora, deitada, banho tomado, olhava para a televisão, distraída.

Sim, sem dúvida fora um dia ótimo. Começava a se acostumar com a nova dieta – se é que podia chamar aquilo de dieta. Era na verdade um jejum. E daí? Sua amiga dizia que queria morrer magra para ser enterrada de biquíni. Então? Não era isso mesmo? Comer, para quê? Comer era um conceito vago, pertencente ao passado, qualquer coisa longínqua misturando formas, sabores, cheiros, um amontoado de sensações um tanto difusas, que sobreviviam apenas em seu subconsciente. Comer já não fazia parte de sua vida.

Tomou entre as mãos a caixinha de plástico cheia de divisões, que estava em cima da mesa de cabeceira. Já preenchera os espaços com todas as pílulas para o dia seguinte. Observou seus diferentes formatos e cores, distribuídos pelas divisões de que era composta a caixa: manhã, almoço, jantar, hora de deitar. Olhava aquelas pílulas com uma espécie de ternura, sentia-se envolvida por elas. As pílulas, sim, eram seu alimento. Elas a mantinham viva. Um ex-namorado certa vez dissera que ela parecia um astronauta numa viagem intergaláctica, vivendo de alimentos sintéticos, em forma de comprimido. Os homens são muito intrometidos.

Recolocou a caixinha na mesa de cabeceira e tornou a erguer os olhos para a televisão. Um comercial mostrava uma mocinha cravando os dentes num hambúrguer. A mulher apertou o botão de desligar do controle-remoto quase sem sentir. E abrindo a gaveta da mesa de cabeceira, tirou dali seu espelho de mão.

Olhou-se demoradamente. Primeiro séria, depois sorrindo e outra vez séria. Apalpou a  fronte, quase junto à raiz dos cabelos. Não havia sinal do grampo de metal que, sob a pele, cumpria a missão secreta de erguer o rosto, na luta desigual contra a lei da gravidade. Passou também a mão pela linha que descia da asa do nariz em direção ao queixo, agora enrijecida pela doce presença de uma bactéria, ali inoculada pela injeção de Botox. Às vezes, sentia um arrepio. Pensar que a ruga fora preenchida por paralisia facial, provocada por envenenamento. Era horrível, se pensado assim. Mas e daí? Mais uma vez – e daí?

Era isso mesmo que queria, portanto estava feliz. O ex-namorado intrometido na certa diria que não, que ela apenas – como era mesmo que ele dizia? – ah, sim, que ela apenas “arrumava por fora, para segurar por dentro.” Ainda bem que ele não estava mais por perto para se meter em sua vida. Melhor assim. O velho ditado, antes só do que mal acompanhada.

Era isso mesmo. Melhor assim.

Muito melhor assim.

 

 Outra mulher

(20/4/2003)

 

Mal podia esperar. Ao acordar, no primeiro segundo em que abrira os olhos, já pensara nela – ou melhor, nelas. Naquelas duas mulheres, tão díspares e no entanto tão iguais, que vinham povoando seus sonhos. Uma delas era loura, de cabelos finos, muito lisos, olhos translúcidos. A outra, morena, de cabeleira cheia e anelada, olhos escuros. Precisava sair logo da cama, tomar um banho rápido, sentar-se diante do espelho e começar. O espelho. Era assim que a chamava agora, àquela janela onde despejava seus devaneios. Levantou-se.

Entre a chuveirada e o gole de café, tomado de pé mesmo, encostada ao balcão de fórmica da cozinha, não levou mais do que meia hora. As duas mulheres, a loura e a morena, continuavam a sussurrar-lhe segredos e anseios, precisava apressar-se.

Passava pouco das oito da manhã quando, depois de regular a veneziana da sala, sentou-se afinal diante do computador.

O computador – a estranha janela que era também espelho.

Era ali, naquela superfície de cristal líquido, na tela plana e iluminada onde qualquer gotícula se transformava em diamante, era ali que despejava seus sonhos.

Hoje, tinha muito a falar sobre as duas mulheres, a loura e a morena, sobre seu mundo de amor e ódio, sobre as lembranças de um passado que ela própria desconhecia. Ligou o computador. As letras apressadas desfilaram sobre o fundo preto, como os algarismos passando a toda velocidade no início de um filme antigo. E ela suspirou, pondo-se em guarda, os dez dedos pousados sobre as teclas enquanto o azul se materializava diante de seus olhos.

Mas de repente pensou na amiga. Lembrara dela, dias antes, ao ler numa revista um conto sobre uma mulher que só se alimentava de pílulas coloridas, que se submetia a todo tipo de tortura para continuar jovem. Sua amiga era assim. Tinham crescido juntas e se gostavam muito, embora fossem muito diferentes. Ela, loura, a outra, morena, como as mulheres do sonho. Além disso, a amiga sempre fora vaidosa demais. Com o passar dos anos, isso se tornara um fardo. Coitada, ela sofria muito. Envelhecer é um direito humano que anda sendo muito desrespeitado, pensou a mulher, dando de ombros.

À sua frente, a tela azul esperava, como um céu. Mais que um céu, um mundo, um universo inteiro.

Não sofria como a amiga – definitivamente, não. Seu corpo se transformava, sim. Tinha rugas, sem dúvida. Mas e daí? Chegara aos 50 anos sem medo de envelhecer. Por causa daquela janela, daquele estranho espelho. Escrevendo, tinha começado do zero, reinventado a própria vida. Era outra mulher.

 

 

Manias

(27/4/2003)

Lembro de um concurso que o Jornal do Brasil promoveu há uns 15 anos, para ver quem conhecia bem o Rio. Toda semana, o jornal publicava na primeira página uma fotografia – mostrando apenas um ângulo de uma construção, uma torre, um pedaço de fachada, uma porta, não mais do que isso – e os leitores tinham de adivinhar onde ficavam. Quem acertasse todas (já não sei quantas fotografias foram, mas lembro que o concurso durou semanas e mais semanas), seria premiado, ganhando se não me engano uma viagem a Paris. Eu não participei, mas uma tia minha, que se interessou pelo teste, me ligava sempre que estava na dúvida: “E esta fachada de hoje, você sabe onde fica?” Quase sempre eu sabia.

Certa vez, ela me desafiou: “Você já viu a foto de hoje? É uma fachada estranhíssima, parece um templo grego. Não tenho a menor idéia de onde fica.” Fui espiar o jornal e matei a charada na hora: era uma construção que fica atrás do prédio dos Correios, no Centro, a poucos metros do Sambódromo. Já não lembro o que funciona lá, mas ao ver a foto sabia bem que já tinha visto aquela fachada em algum lugar. No fim das contas, minha tia acertou o teste inteiro e só não foi a Paris porque inúmeras outras pessoas também acertaram – e o prêmio acabou tendo de ser sorteado.

Sempre tive mania de andar observando a cidade. A paisagem, é claro, por ser irresistível. Quando se mora num lugar como o Rio, é dever de cidadão olhar em torno, perceber as nuances de cores nas montanhas e no mar, observar o pôr do sol, os reflexos na água, em vez de simplesmente passar pela cidade como se o fato de ela ser linda assim fosse a coisa mais comum do mundo.

Eu sempre olhei para o Rio. Mas não só para a paisagem natural. Também tenho mania de observar as construções, os monumentos, as praças. Quando era criança e tinha o privilégio de andar de carro no banco de trás, sem precisar prestar atenção ao trânsito, gostava de escolher meus prédios preferidos e guardava nas retinas cada detalhe das fachadas, com uma precisão que até hoje me impressiona. Prédios históricos, importantes, mas também edifícios residenciais e casas comuns, onde às vezes um beiral, uma varanda de enxaimel, uma parede de azulejos, qualquer coisa podia torná-los queridos a meus olhos. E quando, com o passar dos anos, muitas dessas construções começaram a vir abaixo, eu sofri – e sofro – quase como se tivesse perdido um parente. Foi uma dor danada a demolição da casa de Bidu Sayão e, não muito depois, de sua vizinha, a Casa Rosa, ambas na Lagoa. Isto, só para citar exemplos bem recentes de agressões a esta cidade.

Esta cidade que, mesmo tão batida, sofrida e violentada, continua encantadora. E de repente percebo que, enquanto escrevo, estou cantarolando mentalmente uma canção antiga, cuja letra me parece agora uma declaração de amor ao Rio: Entre as manias que eu tenho, uma é gostar de você.

 

 

Uma cena

(4/5/2003)

É de manhã. Não num lugar qualquer, mas no Rio. E não numa época qualquer, mas no outono. Outono no Rio. O ar é fino, quase frio, as pedras portuguesas da calçada estão úmidas. No alto, o céu já é de um azul escandaloso, mas o sol oblíquo ainda não conseguiu vencer os prédios e arrasta seus raios pelo mar, pelas praias, por cima das montanhas, longe dali. Não chegou à rua. E naquele trecho, onde as amendoeiras trançam suas copas, ainda é quase madrugada.

Mesmo assim, ela já está lá – como se à espera do sol.

É uma senhora de cabelos muito brancos, sentada em sua cadeira, na calçada. Na rua tranqüila, de pouco movimento, não passa quase ninguém a essa hora, tão de manhãzinha. Nem carros, nem pessoas. O que há mais é o movimento dos porteiros e dos pássaros. Os primeiros, com suas vassouras e mangueiras, conversando sobre o futebol da véspera. Os segundos, cantando – dentro ou fora das gaiolas.

Mas mesmo com tão pouco movimento, a senhora já está sentada muito ereta, com seu vestido estampado, de corte simples, suas sandálias. Tem o olhar atento, o sorriso pronto a cumprimentar quem surja. No braço da cadeira de plástico branco, sua mão repousa, mas também parece pronta a erguer-se num aceno, quando alguém passar.

É uma cena bonita, eu acho. Cena que se repete todos os dias. Parece coisa de antigamente.

Parece. Não fosse por um detalhe. A senhora, sentada placidamente em sua cadeira na calçada, observando as manhãs – está atrás das grades.

Meu irmão, que foi morar fora do Brasil e ficou 15 anos sem vir aqui, ao voltar só teve um choque: as grades. Nada mais o impressionou, tudo ele achou normal. Fez comentários vagos sobre as árvores crescidas no Aterro, sobre o excesso de gente e carros, tudo sem muita ênfase. Mas e essas grades, me perguntou, por que todas essas grades? E eu, espantada com seu espanto, eu que de certa forma já me acostumara à paisagem gradeada, fiquei sem saber o que dizer.

Penso nisso agora, ao passar pela rua e ver aquela senhora. Todos os dias, o porteiro coloca ali a cadeira para que ela se sente, junto ao jardim, em frente à portaria, por trás da proteção do gradil pintado com tinta cor de cobre. E essa cena tão singela, de sabor tão antigo, se desenrola assim, por trás de barras de ferro, que mesmo sendo de alumínio para não enferrujar são de um ferro simbólico, que prende, constrange, restringe.

Eu, da calçada, vejo-a sempre por entre as tiras verticais de metal, sua figura frágil me fazendo lembrar os passarinhos que os porteiros guardam nas gaiolas, pendurados nas árvores.

E fico me perguntando por que hoje vivemos todos assim.

 

 

Uma idéia

(11/5/2003)

 

Mas por que vivemos todos assim, atrás de grades?

Foi o que a mulher se perguntou, com a revista nas mãos. Era um domingo claro, quase como se fosse verão de novo, mas não estava calor. Ela saíra de casa bem cedo para andar um pouco e ler jornal num dos bancos da praia. Fazia isso sempre. E agora, olhando a areia à sua frente, a massa enorme do mar, pensava na beleza de sua cidade e refletia sobre aquilo que acabara de ler. Grades. Grades, por toda parte. Era isso mesmo.

Há pouquíssimos anos, não era assim. Levantou-se do banco e recomeçou a caminhar, com o sol às costas. Há pouquíssimos anos, muita coisa era diferente. A areia da praia, junto à calçada, tinha mais daquela vegetação rasteira, com flores lilases, de que ela tanto gostava. E não, não havia grades. Tudo mudara muito rápido.

Mas – por quê? Como é que tinha começado?

Engraçado, tinha a impressão – quase certeza – de que a coisa começara não por causa da violência, mas por outra razão. Até porque ninguém detém violência com grades. Bandido quando quer entrar, entra. Diz que vai entregar flores, pizza, qualquer coisa. Entra junto com um morador. Ou simplesmente mostra uma arma ao porteiro. No começo – sim, sim, ela agora se lembrava bem –, no começo, os primeiros prédios a botar grades tinham feito isso para evitar que mendigos dormissem sob as marquises. Isso mesmo. Não fora a violência, mas a miséria.

E virara uma epidemia. Os fabricantes de grades devem ter gostado.

Uma pena. A gente se acostuma, mas a verdade é que é muito feio. E opressivo. De ferro ou alumínio, pintadas de preto, verde, cor de cobre ou ouro velho, elas estão por toda parte, como se todos vivêssemos encerrados num imenso presídio. Será que precisa mesmo ser assim? E ela continuou andando. Distraída, atravessou a rua. Gostava de entrar às vezes numa daquelas ruas transversais do fim do Leblon, sempre tão arborizadas.

De repente, percebeu que havia alguma coisa diferente ali. Que rua era aquela mesmo? Engraçado, pensou, será que é impressão minha? Andou mais um pouco. Não, não era impressão. Um quarteirão inteiro, dos dois lados. Era isso mesmo.Em pleno Leblon, no trecho nobre, junto à praia, um quarteirão inteiro – sem grades!

A mulher parou, sorrindo. Seria coincidência? Ou um movimento dos moradores, talvez. De qualquer forma, aquele quarteirão era uma prova da inutilidade das grades. Caso contrário, os prédios ali viveriam sendo assaltados.

E se nos organizássemos e enfrentássemos o medo? E se parássemos de nos esconder? Foi o que ela pensou (era uma sonhadora, não se pode negar). E de repente seu sorriso se abriu ainda mais.

E se fizéssemos um movimento para pôr abaixo todas as grades do Rio?

 

 

Navegar

(18/5/2003)

 

O capitão ergue o rosto e inspira com toda a força, satisfeito por encher os pulmões com o ar marinho. Ah, há quanto tempo não navegava. Estava velho, é verdade, mas seus músculos continuavam rijos, podia muito bem enfrentar uma ventania como aquela, quem sabe até um temporal. Um velho lobo do mar nunca se deixa abater. Pouco importava se o mar aos poucos se encapelasse e as ondas lavassem o convés, pouco importava. Ele não teria medo. Jamais tivera. Desde os primeiros tempos, ainda menino, marujo, sempre que o navio era sacudido pelas ondas ele se deixava invadir por aquela sensação, uma vontade de gritar, uma mistura estranha de euforia e pavor. Mas era bom. Muito bom. Sabia que ali estava sua vocação, não podia ter nascido para outra coisa. Ah, e que beleza essas velas enfunadas, seu tecido transparente balançando ao vento, seu branco recebendo os reflexos marinhos e cintilando ao sol com matizes de azul. Navegar, navegar. Esquecer tudo, o torpor, a decadência, o fim. Esquecer as dores, fechar os olhos e ser livre como o vento, os pés plantados no tombadilho, ele e seu navio transformados num só corpo de madeira e carne, singrando o mar sem medo. Esse mar que é o deus maior, a representação máxima de todos os poderes da natureza e diante do qual tem vontade de prostrar-se. Claro que isso não pode fazer, não ele, um capitão. Mas pode, sim, saudar as águas como cabe aos comandantes, prestando a Netuno – de igual para igual, com respeito mas também com todo o garbo – sua homenagem. É o que fará agora.

 

* * *

 

– Você já viu o vovô?

– Vi.

– Ele anda esquisito, não é? Parece que de repente se desliga de tudo, fica com um olhar perdido, olhando pela janela.

– É. E sabe o que eu já reparei?

– O quê?

– Que ele ficou assim depois que começaram a obra na fachada do prédio.

– É mesmo?

– É. Quando venta, ele não sai da janela. Fica olhando fascinado para essa tela azul que penduraram aí fora.

– É bonita, essa tela. Eu gosto. A casa da gente fica toda azulada.

– Pois outro dia aconteceu uma coisa estranhíssima.

– O que foi?

– Estava ventando muito e a tela azul ondulava sem parar. Espiei pela porta e vi o vovô na frente da janela, imóvel, todo empertigado – e sabe o que ele estava fazendo?

– O quê?

– Batendo continência.

 

O Rio do meu tempo

(25/5/2003)

 

O Rio do meu tempo tinha cor e luz e cheiros, como em lugar algum.

Tinha manhãs de outono em que o sol vencia o ar fino e tocava a pele devagar, numa carícia. Tinha também tardes de primavera, em que floriam os espinheiros das praças, espalhando na atmosfera um cheiro de jasmim. Tinha buganvílias, flamboyants e amendoeiras. E coqueiros enfileirados junto à orla, cujas palmas delicadas, mexidas pela brisa, se recortavam diante do horizonte lilás, como num cenário de filme. O Rio do meu tempo tinha montanhas, cadeias e mais cadeias de montanhas esbatendo-se em degradê pela paisagem afora e ainda um pôr do sol que no verão deixava um rastro de cobre na areia molhada, transformando em silhuetas os retardatários das praias, que se deixavam ficar junto às ondas até a última réstia de luz. Ah, e tinha mar, um mar enorme no Rio do meu tempo.

O Rio do meu tempo tinha também sons, murmúrios, batuques. Choros e sambas em velhos casarões, burburinhos sem fim nas madrugadas sob os Arcos, risadas nas portas dos botequins, onde os embates sobre futebol tinham sabor de cerveja, de fritura e churrasquinho. O Rio do meu tempo tinha a nova Bossa, que era mais que Nova e reinava em templos com nome de maestro, de sons modernos ou finas misturas. Música, música, muita música – é o que tinha o Rio do meu tempo. Sem falar no carnaval, porque aí já é covardia. O Rio do meu tempo sabia ser espalhafatoso, quando fazia de sua ópera popular um milagre gigantesco, com dezenas de milhares de atoresem ação. Ouainda quando deixava escoar pelas ruas uns rios brancos, feitos não de água mas de gente, para saudar na praia o novo ano. Mas a cidade sabia também ser acolhedora e mansa, envolvendo quem a amasse em pequenos refúgios, em seus cafés, restaurantes, em suas livrarias. Eram coloridas e animadas as livrarias do Rio, e nelas nos deixávamos ficar por horas e horas, folheando os livros sem pressa, conversando nas mesas de seus cafés, encontrando amigos.

Ah, como era bom o Rio do meu tempo.

É claro que havia, também, problemas. Corrupção, drogas, violência. Muita violência. Mas ainda assim o Rio do meu tempo era maravilhoso. E nós não podíamos deixar que as notícias ruins tomassem todo o espaço, não podíamos deixar que o pânico crescesse e gerasse mais pânico, numa escalada sem fim. Sabíamos bem que éramos uma caixa de ressonância, tudo o que acontecia em nossa cidade repercutia mais. Precisávamos fazer alguma coisa, mostrar a nós mesmos nossos encantos, para nunca esquecê-los. Dizê-los em voz alta como a recitar um mantra, com o qual ganharíamos força para vencer o medo. Porque o pior de tudo era o medo. E porque era tempo – sempre seria – de salvar aquela cidade feita de beleza e pavor.

Era assim, no Rio do meu tempo – esse tempo chamado agora.

 

 

Terral

(1/6/2003)

 

Começou de manhã. Ou talvez mesmo ainda de madrugada, mas ela nada ouviu, pois naquela noite dormira com as vidraças fechadas, o ar ligado. Mas de manhã, sim, já no primeiro segundo em que se viu desperta, os olhos ainda fechados, a mulher ouviu o rugido à distância – e estremeceu. O barulho monótono do ar refrigerado estava mais próximo, mas de lá de fora vinha aquele rumor constante, como um lamento, um pranto, uma voz em agonia, de mau agouro. Sentou-se na cama, alisando os próprios braços. Não havia engano. Era uma ventania.

Levantou-se e desligou o ar, entreabrindo a cortina. As copas das árvores dançavam, enlouquecidas, e a placa de uma obra do outro lado da rua parecia a ponto de sair voando. Sim, era uma ventania. Com o coração acossado, a mulher abriu uma fresta da janela. O sopro atingiu seu rosto em cheio e ela fechou os olhos.

Terral.

Sudoeste, Norte.

Siroco, Zonta, Mistral.

Às vezes eram estranhos, os nomes dos ventos. E ela sentia, no próprio som de suas letras, uma inquietação, uma eletricidade. Talvez fosse sugestão, mas jamais, desde menina, conseguira ficar imune aos ventos. Quando era pequena, morava num prédio muito alto, onde qualquer sopro mais forte zunia pelas frestas, assustando-a. Era uma bobagem, ela sabia bem, mas tinha uma sensação de insegurança que beirava o pânico, uma impressão de que o prédio estava ameaçado, de que iria cair. Sempre que começava a ventar, via-se dominada por aquela mistura de fascínio e terror. E a sensação continuara, pela vida afora.

Sendo que o pior de todos era esse que soprava agora.

Terral.

Era o vento que mais a inquietava. Era raro, mas quando surgia, durava o dia inteiro, soprando sem trégua, direto sobre a face Norte de seu prédio, estremecendo as janelas, imiscuindo-se pelas mínimas fendas. Não era um vento qualquer. Não tinha a umidade do mar, não trazia em seu seio a frialdade austral, anunciando chuva. Ao contrário, era seco e quente, tinha um cheiro de urgência, de perigo. Havia em seu soprar um estranho poder – pelo menos sobre ela.

Por muito tempo, continuou parada diante da janela, o rosto bem próximo à abertura da vidraça, os olhos fechados. Como num transe, inalou o ar seco, preenchendo-se dele, e como num transe atravessou afinal o quarto, indo até a cômoda. Dali, da última gaveta, tirou uma peça de seda preta, debruada de renda, e a caixa de metal onde guardava o batom vermelho. Depois sorriu para a própria imagem no espelho.

Era tudo culpa do vento.

 

Ponto final

(8/6/2003)

 

Já era quase meia-noite quando ele se levantou, fazendo ranger a cadeira giratória, forrada de um pano azul. Azul era também a luminosidade da saleta onde ficava a bancada do computador. O escritor tinha esse costume. Quando trabalhava à noite, jamais acendia as luzes, nem de cima, nem do abajur. Gostava de escrever envolto pela luminosidade que emanava da tela. Sendo a única luz do aposento, a tela (e tudo o que nela se escrevia) ganhava substância. Era a fonte de energia, o epicentro da sala, seu cérebro e coração. Tudo o que a circundava não passava de coadjuvante. Tudo, os móveis, os livros, a janela com seus quadrados de vidro – o próprio homem.

E era nessa luz azulada que ele caminhava agora, de um lado para o outro, os braços para trás, a mão direita segurando o pulso esquerdo. Singrava a penumbra como um mergulhador sem arpão, desarmado. E embora parecesse às vezes inquieto, na verdade não estava. Ao contrário, sentia-se saciado, repleto, e seu caminhar era apenas uma forma de não sucumbir ao cansaço, de se manter desperto – por muitas horas, se possível – para saborear por inteiro o momento tão esperado.

O ponto final.

A última frase que, depois de tanto tempo, estava a ponto de escrever. Já sabia o que seria, tinha todas as palavras estocadas no cérebro, o tempo das incertezas estava terminado. Precisava apenas respirar um pouco, refletir sobre o suor, o prazer e a dor despendidos naqueles meses sem fim, em que sua vida girara em torno da história. E mais: sabia que, segundo um costume seu – quase um fetiche –, a última frase seria escrita de uma só vez, sem emendas. Deixava assim para o último instante o ponto final, pois sabia que era, mais do que qualquer outra coisa que escrevia, como uma sentença definitiva. Não havia volta.

Chegou à janela e espiou a noite lá fora. A rua deserta, as janelas apagadas. Na madrugada sem brisa, nada se movia, nem as folhas das amendoeiras que em sua rua formavam um trançado fechado, através do qual ele só enxergava pedaços do asfalto.

Pedaços. Era de pedaços também que se fazia uma história. Fragmentos captados em alguma região desconhecida e abissal, somados a uma pilha de informações, conhecimentos, vivências. Foi o que o homem pensou, suspirando. Sabia que tinha chegado a hora. Tempo de fechar o ciclo, de se despedir daquelas almas que o tinham visitado.

Lentamente, sentou-se no computador. Enquanto seus dedos se moviam sobre o teclado, a tela azulada formou duas pequenas piscinas em seus olhos úmidos. Escreveu a última frase, fechando o destino daquelas pessoas que criara. E o ponto final caiu sobre elas com o peso de uma sentença, como o ecoar de portas de ferro no corredor de uma prisão perpétua.

 

 Civilização

(15/6/2003)

 

Há alguns dias, li que no Jockey Clube do Rio alguém mandou fechar com tapumes um porão, deixando gatos presos lá dentro. Emparedados, condenados a morrer de fome e sede – como numa história de terror de Edgar Allan Poe. Uma crueldade inominável, inconcebível. Como foi denunciada pela imprensa, quero acreditar que tudo se tenha resolvido da melhor forma. Mas o simples fato de uma coisa assim ter acontecido, ainda que por algumas horas, me deixa estarrecida.

Nunca pude tolerar maldade com animais. E entre todos os bichos, o gato tem sido um dos mais maltratados pelo homem. Associado ao mal, ao demônio, ele é tachado de egoísta, interesseiro e frio, sendo sempre representado nas histórias como vilão.

A má-vontade talvez se explique pela dificuldade que as pessoas têm de compreender os gatos (aquelas, é claro, que ainda não tiveram o privilégio de conviver com eles). Sim, porque eles são animais sofisticados, complexos, tendo características que podem ser facilmente mal interpretadas. Altivez e dignidade, por exemplo, são confundidas com egoísmo. Franqueza, com frieza.

O gato é sempre verdadeiro. Se vem no seu colo é porque quer estar ali, não está fazendo isso para agradá-lo. Os momentos de carinho que ele oferece podem ser talvez em menor quantidade, ou menos ostensivos, mas não se deve nunca duvidar de que sejam genuínos. Um gato não faz concessões. Um gato está inteiro em tudo o que faz, até nos gestos mais simples. Por isso é capaz de passar do sono profundo ao mais completo estado de alerta. Um gato é talvez a criatura mais íntegra que existe. E também a mais livre. Tamanha liberdade e integridade, num ser dito irracional, pode incomodar algumas pessoas.

Conviver com um gato – aliás, com qualquer animal – é uma coisa que traz lições para o homem. Os animais têm às vezes a capacidade de nos desarmar, de nos desconcertar, de nos fazer crianças – e isso é muito bom. Temos muito o que aprender com eles. O amor e o respeito aos animais deveria ser algo a ser aprendido na escola, como parte do currículo oficial. Quem viaja à Europa, por exemplo, e visita países como a França, a Inglaterra ou a Itália, vê como os animais – e em particular os gatos – são respeitados. É muito difícil ver cães e gatos abandonados pelas ruas, magros, imundos, revirando lixo em busca de comida, como é tão comum por aqui.

A crueldade contra bichos indefesos é uma marca dos povos bárbaros. E o grau de civilização de um povo se mede, entre outras coisas, pelo tratamento que ele dá aos animais.

 

 

O beijo

(22/6/2003)

 

Coincidência ou não, aconteceu justamente na esquina do poeta, naquele pedaço de calçada em que as pedras portuguesas formam versos de Drummond. Ali, na fronteira entre Copacabana e Ipanema, a tarde caía. Mas ainda havia luz. O entardecer de outono descia lentamente sobre os prédios, em cujos topos, para além da vegetação das coberturas, brilhava um céu de azul intenso.

Cá embaixo, na calçada, embora ainda houvesse luz, soprava um ventinho frio, que em junho passa ali como num corredor, provocando arrepios nas nucas descobertas, do Castelinho ao Posto Seis. As pessoas iam apressadas, com as golas dos casacos levantadas, porque qualquer brisa mais fresca faz tremer esse animal solar que é o carioca.

Era um dia de semana e o trânsito, àquela hora, já estava apertado. Ao volante, eu esperava o sinal abrir quando reparei nos dois. Estavam de pé junto ao meio-fio, semiencobertos por um poste de luz. Um casal – ambos seguramente com mais de 70 anos.

No instante em que pousei os olhos neles, houve o abraço. E depois o beijo. Um beijo de amor entre homem e mulher, que nada tinha de fraterno, um beijo com qualquer coisa de sôfrego, de apressado. Um beijo de despedida.

E em seguida, de fato, separaram-se. O trânsito recomeçava a fluir quando o homem estendeu a mão, chamando um táxi. A mulher sorriu, antes de embarcar. E, de dentro do carro, ainda virou-se e deu adeus pelo vidro de trás. Em resposta, o homem fez uma leve curvatura para a frente, como o galanteio de um cavalheiro com quem se acaba de dançar.

Havia nos gestos de ambos uma história e eu logo imaginei um conto de encontros furtivos, de tardes de amor em Copacabana, caminhadas até a esquina, beijos com sabor de proibido.

Cheguei a pensar em acompanhar o táxi para continuar observando a mulher, mas ele virou na Canning, desapareceu. E eu segui em frente, desembocando no poente de Ipanema com aqueles dois na retina.

Na minha mente, a imagem do beijo se repetia, ganhando contornos mais definidos, um cenário cada vez mais vivo. Dava-se de repente em câmera lenta, um beijo de amor no centro de um rodamoinho, onde voejavam folhas de outono. Um beijo de amor outonal, com uma beleza própria, peculiar.

Segui pela praia com o sol já caindo, deitando uma luz dourada na calçada de pedras portuguesas, onde àquela hora havia uma multidão, incluindo muita gente de idade. E fiquei pensando. Não é em qualquer lugar do mundo que duas pessoas mais velhas se beijam no meio da rua, um beijo ardente, com tamanho despudor. É preciso ter em torno uma cidade lasciva, irreverente, docemente permissiva e sensual.

E que bom que o Rio é um cenário assim.

 

Carta

(29/6/2003)

 

Meu caro,

Tenho pensado muito em você, ultimamente. Em seu traquejo e perspicácia, em sua capacidade de percepção, na maneira desmedida com que sempre amou nossa cidade. E sabe de uma coisa? Você está fazendo falta.

Às vezes me pergunto o que diria de tudo a que temos assistido. Você, com seu jeito mundano, cosmopolita – elegante. Sim, porque é sobretudo elegância que nos tem faltado.

Talvez você já saiba que as notícias não são lá muito boas. Pensei em começar dizendo que apesar de tudo o Rio continua lindo, mas sustei a pena, primeiro porque seria um clichê e depois porque isso você vê todos os dias, apesar de estar distante. Mas a verdade é que estamos passando um aperto. Nosso Rio, meu caro, tornou-se de repente um símbolo do mal. De uns tempos para cá, uma conjugação de fatores – policiais, políticos, econômicos e outros mais impalpáveis – tem contribuído para isso, criando uma bola de neve que não temos sabido como deter. A imagem da cidade foi associada à violência, de forma taxativa. É estranho porque, embora a violência seja inegável, há dados que deveriam nos fazer, a todos, refletir. Não faz muito tempo eu li que, entre as cidades brasileiras, o Rio está em sétimo lugar em número de homicídios, oitavo lugar em número de assaltos com morte, quinto lugar em número de mortes violentas. Sua “melhor” colocação nesse ranking macabro é um segundo lugar em número de roubos de carros.

Por que então essa satanização, esse linchamento moral?

Pode ser que você, daí de longe, saiba me responder.

Há pouco eu falavaem clichês. Talvezseja isso. O clichê pega, ganha força, vida própria, começa a ser repetido automaticamente, sem reflexão. Até que todos acabam acreditando. Se a lenda for mais forte que a verdade, que se publique a lenda, disse o personagem de um filme antigo, do qual você devia gostar.

Mas temos de reagir. E a primeira coisa que nós, cariocas, precisamos fazer é não nos deixar vencer pelo medo. O que seria de Nova York se depois do 11 de setembro as pessoas tivessem deixado isso acontecer? Mas elas reagiram, saíram de casa, foram para a Broadway, encheram os restaurantes. Houve quem, morando fora há muitos anos, voltasse para Nova York, só para ajudar a salvar a cidade. É assim que tem de ser.

E sabe de uma coisa, meu caro? Estou achando que a situação já começa a mudar. Estou percebendo um movimento, um rumor nas ruas. E tenho a impressão de que você concorda comigo. Porque outro dia, numa manhã cinzenta, passei por sua figura de bronze, parada ali de frente para as areias do Leblon, o paletó jogado às costas, e pensei ter visto em seu rosto – esse rosto já azinhavrado pelos ventos e ressacas – um olhar de esperança. Foi quando me convenci de que as coisas vão melhorar.

É isso.

Para você, meu caro Zozimo, um grande abraço.

 

Nenhuma dor

(6/7/2003)

 

Tudo começou quando ela era ainda bem menina. Não saberia dizer ao certo se fora de súbito ou se acontecera gradativamente. Algumas lembranças eram mais vívidas e apontavam para instantes precisos em que se dera a percepção, a certeza de que havia qualquer coisa de diferente com ela.

Por exemplo, um dia, brincando descalça no quintal, enfiou um espinho no pé. Mancando, foi pedir ajuda, pois o espinho se cravara bem fundo. Via apenas um pontinho preto, perto do calcanhar, mas não tinha como arrancá-lo. A mãe não estavaem casa. Aempregada bem que tentou, mas não conseguiu tirar o espinho. “Talvez nem esteja mais aí,” disse, “não estou vendo nada.” E ficou por isso mesmo. De fato, dias depois, já não havia mais o pequeno ponto escuro, nem qualquer sinal do espinho. A menina quis acreditar que ele tivesse saído ou que não tivesse chegado a entrar, mas o tempo passou e o pé começou a inchar. A mãe acabou chamando o médico da família para dar uma olhada. E ele, um médico experiente, daqueles antigos, matou a charada: havia uma inflamação, só que por dentro – mascarada.

Anos depois, já adolescente, ela teve apendicite. Vivera a vida inteira ouvindo histórias sobre a dor terrível de quem sofre uma inflamação no apêndice, de como, deitada, a pessoa não consegue sequer levantar a perna (principalmente a direita) e de como esse tipo de inflamação costuma dar febre altíssima. Com ela, não. Com ela foi diferente. Só descobriu que estava com apendicite porque o médico da família – ele, mais uma vez – foi chamado. Ela se sentia apenas indisposta, levemente febril, com uma quase imperceptível sensação de dor no abdômen, e atribuía aqueles sintomas a uma gripe forte. Não fosse por insistência do médico de levá-la para o hospital e talvez sua situação se complicasse.

Na ocasião, o médico comentara que algumas pessoas têm, por natureza, um organismo com baixa capacidade de reação às agressões. A febre e a dor, explicou ele, são alarmes. Quando ocorre um problema sério e esses dois elementos não se apresentam, ou se apresentam de forma excessivamente sutil, pode ser perigoso. O organismo fica indefeso, demora a reagir. E ela ficou muito tempo refletindo sobre aquela frase.

Continuava ainda a refletir, hoje, tantos anos depois, agora mesmo, ali, diante do espelho. Estranha, essa sua natureza, esse dom de não sentir dor.

Sorriu com amargura.

Sabia muito bem que não era assim, que a verdade era outra. Não é que não sentisse dor. O que tinha era uma incrível capacidade de mascarar os sentimentos, a mágoa, o rancor, de mantê-los encapsulados num cofre de carne e osso, bem fundo, bem fundo.

E pressentia que talvez um dia pagasse caro por isso.

 

Miniatura

(13/7/2003)

 
Sentindo o sol arder na nuca, o menino inclinou-se. Fincou as mãos na areia e abriu bem os olhos para observar melhor aquilo que via.

A planície lunar, silenciosa, se estendia à sua frente.

O solo estéril, intocado pelo homem, de uma areia fina, compacta, parecendo cinza de vulcão. E as rochas, de tamanho e formato diversos, de diferentes matizes de cinza – cinza, mais uma vez. Não havia cor naquele cenário, cuja quietude parecia o prenúncio de uma aventura, como se a qualquer momento fosse surgir diante dos olhos do menino o fogo propulsor do módulo lunar, fazendo-o descer lentamente com suas pernas de aranha. Quando tocasse a superfície árida, a pequena nave faria subir uma nuvem de poeira. E pouco depois os homenzinhos prateados, com suas imensas cabeças de vidro, sairiam saltitando, deixando pegadas listradas no pó cinzento.

O menino sorriu, erguendo o rosto. Só então olhou em torno, voltando ao planeta Terra – seu planeta. O mundo real. Era bonito, também, mas ali tudo lhe parecia grande demais. Na areia rosada que se estendia em curva até a outra ponta, havia pouca gente àquela hora. Mas no mar, batido por um vento que abria no azul pequenas cicatrizes de espuma, muitos surfistas já navegavam as ondas. E três ou quatro velas coloridas de windsurfe se enfunavam contra o vento. O menino tornou a baixar a vista, voltando a seu mundo em miniatura.

Pensou de repente no avô. Era um homem engraçado. Muito falante, gostava de contar histórias. Mas não coisas de criança e sim histórias da História, que tinham acontecido de verdade, sobre guerras e reinados e disputas de poder. Coisas do mundo dos homens. Outro dia mesmo ele dissera uma frase engraçada. Que a História era como a vista cansada. Quanto mais se afasta, melhor se consegue enxergar. O menino não entendera direito, mas ficara com aquilo na cabeça. Era inteligente, seu avô. Gostava dele. Mas não sabia se concordava com isso de se enxergar melhor à distância. Com ele, era diferente. Quando olhava as coisas de perto, via muito. Via coisas que ninguém mais via, coisas para as quais ninguém mais parecia dar importância. Pequenos mundos em miniatura – como a superfície lunar que acabara de descobrir no canto da praia.

Tornou a baixar os olhos. No pequeno recanto entre as pedras, que o mar só alcançava em dia de ressaca, a natureza formara um pedaço da superfície da lua, miniatura perfeita, como um cenário de filme. E o menino sorriu, satisfeito. Gostava de seus pequenos mundos, distantes da Terra dos homens, com suas guerras, seus ódios, seus horrores. Os cenários em miniatura que enxergava, estes sim, eram seu reinado. Como aquele à sua frente – o mundo da lua.

Às vezes

(20/7/2003)

 

Às vezes, se lembrava. Sem dor, sem susto, a recordação pura se desenrolando nos olhos de sua mente como um filme de Alain Resnais, 24 quadros por segundo. Era sempre noite no universo daquela lembrança e talvez por isso sempre em preto e branco. Hiroshima meu amor, Marienbad, luzes, sombras. Imagens que se sobrepõem e se repetem. Os arabescos de um palácio, as sancas, os afrescos, os detalhes das paredes. Braços que se tocam, dois corpos tornados um só corpo, pele coberta de purpurina e cinzas. Luminosos que passam, corredores, quadros. Pisos de mármore formando losangos, homens e mulheres espalhados pelos salões como seres inanimados, peças de xadrez. E jardins. Jardins imensos e bem desenhados, onde só os humanos dispõem no chão as suas sombras.

E, ainda, as vozes – muitas vozes.

Por toda parte e todo o tempo. Vozes que também se sobrepõem e se repetem, obsessivas, apaixonadas, vozes movidas por um amor maldito, feito de lodo e destroços, de pólvora e sangue, um amor cercado de negror e medo. Rosa de Hiroshima, um quadro num corredor, um quadro dentro de um quadro, 24 quadros, 24 horas, o momento fatal que se aproxima, tempo de separação e morte.

Era assim, era igual, quando se lembrava. Uma história não contada, um caso desconstruído. Fragmentado, sem sentido, irreal – uma lembrança sem final feliz.

Mesmo quando não queria, mesmo em horas impróprias, surgia sem aviso, a recordação. Desaparecia às vezes por muitos anos, muito tempo, mas voltava sempre. E por mais que quisesse contar a si mesma uma história diferente, era sempre invadida pela história real, a dor, a morte imiscuindo-se no sonho, invadindo, pressionando, infiltrando-se como água pelo vão da porta.

Era assim quando, às vezes, se lembrava.

Alguma coisa gritava dentro dela, uma agulhada. E a bolha do passado estourava, perigosamente. Mas só às vezes.

Só às vezes, ainda bem.

Como naquela noite, ao voltar para casa.

Ainda não totalmente noite, mas já quase anoitecendo, e ela, da janela do ônibus, viu de repente o muro pichado. Foi rápido, o trânsito estava bom, o ônibus passou voando e o muro logo ficou para trás. Uma frase, mais nada, no meio de tantos sinais, arabescos da cor do carvão, signos incompreensíveis. E entre eles a declaração, o testemunho, uma frase quase sem sentido, mas que a fez pensar num segundo, que a fez recuar no tempo como se atingida pelo deslocamento de ar de um milhão de megatons. Uma frase, apenas.

Às vezes, só tenho você.
 

Silêncio

(27/7/2003)

 

Era uma mulher ativa, que trabalhava muito. Mas acreditava piamente na idéia de que o domingo é sagrado. Se havia alguma coisa na vida que prezava, era o descanso nos fins-de-semana. Não gostava de sair. O prazer maior que cultivava aos domingos era descansar. Vagar pela casa sozinha, molhar as plantas na varanda, preparar o próprio almoço bem devagar, tudo isso tendo ao fundo boa música, tocada baixinho, sempre baixinho. Sim, o silêncio, a quietude eram elementos fundamentais em seus momentos de descanso. Depois do almoço, gostava de se deitar um pouco – coisa que jamais podia fazer em dia de semana – mas não chegava a dormir. Ficava de preguiça, pensando, e depois pegava um livro, em geral um romance policial, sua leitura predileta.

Naquele dia, sentia-se especialmente confortável. Lá fora fazia sol e os raios penetravam pela persianas, tornando o quarto ainda mais aconchegante. A tarde prometia. Deitou-se para ler.

Mas mal abrira o livro e algo aconteceu. Assim, de repente, sem aviso. O domingo, que começara como outro qualquer, foi interrompido de repente por um ruído – ou seria um grito? – que varreu a rua, vindo da pracinha a poucos metros de seu apartamento. A mulher saltou da cama, com um susto. E foi até a janela ver do que se tratava.

Era um homem que, munido de um microfone e um sistema de som, se pusera a pregar em altos brados. O som era distorcido, embora altíssimo, e ela não conseguia entender bem o que ele dizia. Percebeu apenas que era um pregador, conclamando os passantes para o seu rebanho, alertando-os para os pecados do mundo e as tentações do demônio. Mas o que chamou a atenção da mulher não foram as palavras e sim a maneira com que eram proferidas. Com ódio. As sílabas saíam da boca daquele homem como lanças de fogo, palavras gritadas tão próximas do microfone que reverberavam na caixa de som em pequenas explosões. Ele parecia um possesso.

Para a mulher, que cultivava o silêncio, aquilo era uma agressão. Não entendia como a prefeitura permitia. Fechou as janelas, aborrecida, mas não adiantou. Os gritos do homem penetraram pelas frestas, invadindo-lhe os ouvidos.

E ela ficou pensando. Era estranho. Não podia imaginar alguém falando de Jesus aos gritos. Para ela, qualquer manifestação de fé devia ser algo discreto, silencioso, talvez apenas insinuado ou murmurado. Até mesmo os adesivos nos carros, em letras garrafais, lhe pareciam excessivos, agressivos, como se as pessoas estivessem atirando na cara dos outros suas próprias crenças. E, enquanto tentava não pensar na gritaria feroz que continuava lá fora, veio-lhe de repente à lembrança uma frase de Nelson Rodrigues sobre a beleza do silêncio nos momentos de reflexão espiritual:

Deus só freqüenta igrejas vazias.

 

 

Água efêmera

(3/8/2003)

 

Era só ela encostar na pia para lavar a louça e ele chegava. Parava por um instante no chão da cozinha, sentado nas patas de trás, olhando para cima. E no segundo seguinte, saltava. Tinha fascínio pelo barulho da água correndo da torneira. Quem disse que gato tem medo de água? Aquele, definitivamente não. A mulher achava graça.

Era difícil lavar a louça com o gatinho sentado em cima da pia, os olhos meio estrábicos fixos na água que caía. A mulher tomava cuidado, temendo espirrar sabão no gato, mas seu pêlo preto e branco logo ficava todo respingado. Às vezes, ralhava com ele, chegava a mesmo a fechar a torneira, enxugar as mãos e colocá-lo no chão, mas não adiantava. Tantas vezes fizesse isso, tantas vezes ele tornaria a pular. Ficava parado, como seem transe. Amulher sabia bem o que ele queria. Assim que acabava de lavar a louça, fechava a torneira mas não completamente, tomando o cuidado de deixar um fio mínimo correndo, como uma linha de matéria transparente. E se afastava um pouco da pia para observar. Aí, sim, começava a grande performance do gatinho.

Pulando dentro da pia, dava pequenos botes com a pata, tentando a custo pegar o fio d’água, o fio ilusório que se desfazia, sempre que tocado. A princípio, a mulher pensara que era falta de esperteza e que ele acreditava mesmo estar diante de um fio que poderia puxar com a pata. Mas logo percebeu que não. Assim que se cansava de brincar, o gato aproximava a boca da torneira e, em grandes lambidas, bebia a água. Portanto, ele sabia que era um fio de mentira. E que jamais conseguiria agarrar aquela água efêmera.

Naquela manhã, o gatinho estava mais animado do que nunca, desfechando seus golpes dentro da pia. A mulher chegou a sentar-se no banquinho da copa, para apreciar. E começou a pensar.

Um dia já fora como ele, como aquele gatinho. Brincara com o impalpável. Mesmo percebendo que tudo daria em nada e que acabaria se machucando, não pudera fugir. As amigas tinham avisado, tantas e tantas vezes, mas ela não dera ouvidos. Não queria dar. Não podia dar. Fora atraída para aquele homem, inexoravelmente, como o gatinho para o fio d’água. E, com um suspiro, as mãos ainda finas pelo contato com o detergente, ela se lembrou dos versos de Cecília Meireles que citava sempre, quando queria contar a própria história:

“Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.

“Sabendo bem que eras nuvem depus a minha vida em ti.

“Como sabia bem tudo isso e dei-me ao teu destino frágil,

“Fiquei sem poder chorar, quando caí.”

 

Dia dos Pais

(10/8/2003)

Naquele domingo, ele acordou cedo e, com a sala vazia, foi até a janela observar a vista. Gostava de fazer isso no silêncio das manhãs, quando todos na casa ainda dormiam. Mas assim que apoiou os cotovelos no parapeito, a cadelinha, sua grande companheira, subiu no recosto do sofá para ficar perto dele. O homem virou-se e, sorrindo, passou a mão pela cabeça do animal, seus dedos afundando nos tufos brancos, anelados, com a consistência do algodão. Em seguida tornou a apoiar-se no parapeito e olhou para fora.

Era uma beleza a paisagem que se descortinava à sua frente. Como era cedo e o sol invernal mal se insinuava por trás dos morros de Copacabana, a água da Lagoa parecia ainda  adormecida, coberta por uma bruma acinzentada. E os remadores solitários abriam caminho por água e bruma como se as proas dos barcos fossem cunhas fendendo uma superfície sólida. A curva dos morros mais baixos era bem nítida, mas uma grande massa de nuvens engolira o alto do Corcovado e o Sumaré, fazendo desaparecer o Cristo e as antenas de televisão.

O homem gostava tanto daquela paisagem que mandara pendurar um enorme espelho na parede da sala, em frente à janela. Assim, tinha as montanhas e a Lagoa dentro de casa, o tempo todo.

A cachorrinha latiu atrás dele. Olhava-o ansiosa, como se pedisse alguma coisa. Era hora de passear. Afastando-se da janela, ele pegou a coleira e nem precisou chamar. Saíram juntos para a pista da Lagoa. Logo seriam, eles também, homem e animal, parte da paisagem.

Lá embaixo, junto ao espelho d’água, fazia um friozinho gostoso. O homem e sua cadelinha aceleraram o passo, satisfeitos. Ele era assim, sentia grande prazer em caminhar no silêncio, quando a pista ainda estava quase vazia. Gostava da solidão. Vivia cercado de gente, mas era um solitário vocacional, uma daquelas pessoas que têm um mundo inteiro dentro de si, um universo que não dividem com ninguém. Em geral essas pessoas buscam a companhia dos animais. Era o seu caso. Inclinando-se, acariciou a cadela. Gostava muito dos cães, e também dos gatos. Quando era pequeno, tivera um gato preto chamado Fantoche. E agora, passados tantos anos – ah, muitos anos! – desenvolvera por aquela cachorrinha um carinho enorme, especial.

Imerso em pensamentos, continuou andando. Um ou dois quilômetros à frente, no ponto onde a pista é contornada por um parquinho, viu um homem brincando com o filho. E pensou no próprio pai. Alto, esguio, fora um atleta na juventude. Muito brigão, tinha pavio curto, mas com ele, com o filho, era só doçura. E o homem sentiu de repente uma saudade imensa. Era estranho, pois seu pai estava morto havia quase vinte anos.

E só então se lembrou que aquele domingo era Dia dos Pais. Olhou o relógio e sorriu. Hora de voltar para casa. Já deviam estar procurando por ele.

 

 

Cafés e livrarias

(17/8/2003)

Toda sexta-feira, quando anoitece, sou invadida por uma sensação de bem-estar. E sei muito bem por quê. É que nas noites de sexta-feira eu me dedico a fazer o périplo dos cafés e livrarias do Leblon. Já é um ritual. Há um trecho no fim do Leblon, perto da confluência entre a Ataulfo de Paiva e a Dias Ferreira, onde eles se concentram. Livrarias e cafés. São muitos. Às vezes, vizinhos uns dos outros, às vezes dividindo o mesmo teto. Mas todos têm uma coisa em comum, algo que é uma característica daquela região – o charme.

Não vou a todos os lugares num só dia. Vou alternando. Às vezes, paro para apreciar as estantes de livros usados, a vitrine com pequenas preciosidades, enfeitada por contas coloridas, e para um bate-papo com Flamínio tendo ao fundo um pagode, um samba, um João Gilberto ou mesmo – vá lá – um jogo do Botafogo. Depois vou a um café ali do lado, na calçada, onde gosto de sentir o aroma que sobe da xícara, graças a um detalhe simples e engenhoso: é um pau de canela que serve de colher.

Em outras noites, caminho mais um pouco, escolho aquela livraria meio escondida, cujas estantes são feitas com os gavetões de uma velha tipografia. E aí sigo em frente, vou até a livraria mais tradicional da região, com seu café ao fundo. Foi onde lancei meu primeiro livro. Lá, estou cercada de aconchego.

E há ainda as noites em que, já caminhando de volta, bem depois da meia-noite, cruzo a livraria que é também café – e que não fecha nunca. Sim, eu disse “cruzo” porque ela agora é como uma galeria e pode-se atravessá-la de uma rua à outra. Fico um pouco por ali, não só espiando os livros, mas também folheando as revistas, que são muitas e de todas as partes do mundo. Depois atravesso a rua e ainda paro para um sorvete num café onde tudo, ou quase tudo, é de café. Até o sorvete. Até o nome.

Mas há também momentos em que, esperando a visita de alguém, desço para comprar o pão de passas, as mini-baguetes, o patê rústico coberto por uma gelatina salpicada de pimentas vermelhas. Esses, só encontro num lugar que é uma mistura de tudo, restaurante, café, mercado, adega. E ali, enquanto escolho o que vou levar, fico apreciando o movimento, o ruído das xícaras, o vapor que sobe da máquina de café, as mesas no mezanino gradeado, fazendo lembrar a velha Colombo.

São mesmo deliciosos os cafés e livrarias do Leblon.

Outro dia li que, isoladamente, a Zona Sul do Rio (mesmo incluindo suas áreas mais pobres, como a Rocinha e o Vidigal) tem uma qualidade de vida melhor que a da Noruega. Não me espantei. Meus passeios noturnos sempre me provaram isso. Sinto-me em casa andando por aquelas ruas do Leblon, mesmo de madrugada. Feliz, cercada de beleza e charme – sem medo algum. Uma sensação que nenhuma bala perdida há de me tirar. Muito menos uma bala perdida de mentira.

 

 

 

Assombração

(24/8/2003)

 

Sentada na ponta da pedra, as pernas em posição de lótus, a mulher olhava a paisagem, o livro largado sobre o colo, junto com a viseira e os óculos. Olhava a paisagem, mas quase não via nada. Ou melhor, via apenas luz, uma luz que inundava tudo, um sol que anulava as cores e os contornos, fazendo-a estreitar os olhos. Meio-diaem ponto. Erainverno, é verdade. No verão, um sol daquela hora seria insuportável. Mas ainda assim a luminosidade era tanta que lhe feria a vista.

Tinha ido até a pedra porque gostava de ler ouvindo o barulho das ondas. Colocara a viseira e os óculos escuros para se proteger do excesso de luminosidade, mas agora, tendo interrompido a leitura, era com o rosto nu que encarava a paisagem encharcada de sol. Piscou. Sentia as lágrimas se formando no canto dos olhos. Fechou-os por um instante e deixou que o sol se transformasse apenas em tato, em calor, incidindo na vertical sobre ela.

Meio-dia. Quando criança, sua babá tinha medo do meio-dia. Dizia que era uma hora assombrada – assim como a meia-noite. Ela, mesmo menina, dava risada. Como podia ser assombrada uma hora em que o sol a pino deixa o mundo sem sombras?

Mas, ao pensar nisso, seus olhos se abriram. Estranho. O que era?

Voltou a piscar, ofuscada pela luz que se derramava, impiedosa. Uma sensação. Um arrepio.

Uma certeza.

O ser humano sabe quando se defronta com o desconhecido – alguma coisa, algum elo se parte e nada mais é como antes. Sua relação com o mundo se transforma, instantaneamente. Era o que acontecia com ela, agora. Foi invadida num segundo pela certeza de uma presença – uma presença assombrada.

Chegou a virar levemente o rosto para a direita, pensando em espiar sobre o ombro, mas o pescoço pareceu resistir. E no entanto sabia, sentia com clareza a presença estranha atrás de si.

Voltou a abrir os olhos. No sol, na luz que a tudo contaminava, imaginou um rosto, um olhar. Alguém que sofria, alguém que lhe pedia socorro. Os cabelos da nuca em riste, os maxilares trincados, esperou. Estava cada vez mais forte. Cada vez mais perto. Teve vontade de correr, de gritar, mas de que adiantaria? Se estivesse no escuro, seria só acender a luz. Se sozinha em casa, sairia pela porta. Mas e agora? O que fazer?

E ela concluiu, tarde demais, que a velha babá estava certa. O pior terror é o terror diurno, ao meio-dia e a céu aberto, pois dele não se pode fugir.

 

Cal

(31/8/2003)

 

A semana começara com um sonho estranho. Às vésperas da viagem, o homem sonhara estar num galpão enorme, de paredes rústicas, onde dezenas de jovens trabalhavam na instalação de obras de arte. Ele próprio era jovem no sonho e trabalhava também. Com um martelo nas mãos, pregava gigantescos compensados, forrando paredes para que recebessem quadros. Mas de repente, algo se modificou. E as pessoas à sua volta começaram a desaparecer, uma a uma. Desapareciam de estalo, como bolhas de sabão, até que não sobrou ninguém. Ele olhou em torno e, com espanto crescente, viu que agora era o cenário que desaparecia, sendo substituído, pedaço por pedaço, por um branco absoluto, um branco sobrenatural que era a própria representação do nada. E ele afinal ficou sozinho naquele não-mundo, naquele não-tempo, sozinho com o martelo na mão. Sentiu então que seus dedos se abriam lentamente, afrouxando a pressão em torno do cabo. E quando martelo foi ao chão, ele acordou.

O sonho aconteceu poucos dias antes da viagem à cidadezinha de sua infância, aonde não ia há anos. Achou-o estranho, mas tentou não pensar mais nele. A viagem foi tranqüila, a chegada também. A visita aos parentes, aos amigos, tudo transcorria como ele esperava, sem sobressaltos. Até que um dia, conversando com um amigo de infância, perguntou se era verdade que a cidadezinha não tinha mais cinema. O amigo confirmou. E o que foi feito daquele cinema grande, que ficava atrás da praça? Virou estacionamento. A informação deixou-o chocado. O cinema que freqüentava em criança, seu primeiro contato com o mundo de sonho da sala escura, tinha virado um estacionamento. Decidiu ir até lá.

Foi sozinho. As ruas estavam vazias, era um domingo. Atravessou a praça e alcançou a transversal onde ficava o cinema. A fachada fora parcialmente destruída, não havia mais sinal da porta de madeira e vidro, da bilheteria, do espaço em que se colavam os cartazes. Tudo viera abaixo para a construção de uma rampa, por onde na certa os carros subiam para parar dentro da sala de projeção – agora estacionamento. Entrou. Estava deserto. Observou o salão de pé-direito altíssimo, vazio de poltronas. A inclinação do chão fora mantida e o salão era uma enorme rampa que ia dar – e aqui ele se surpreendeu – no palco. Sim, o palco e a própria tela, lá estavam, ainda. Desceu. No espaço imenso, seus passos ecoavam, misturando-se ao arrulhar dos pombos, centenas, milhares de pombos que habitavam o forro do cinema abandonado, enchendo o ar com seu som agourento. O homem estremeceu, lembrando-se do sonho, em que – como agora – se vira sozinho caminhando sobre o nada, num não-mundo.

Por uma pequena escada lateral, subiu no palco. E viu o que restava da tela, a mesma que, como uma janela mágica, se abrira para ele um dia, transformando sua vida: fora toda ela coberta, assim como o chão do palco, pela sujeira dos pombos. E o excremento esbranquiçado dos pássaros foi um escárnio, uma ofensa a mais, como uma camada de cal que enterrasse definitivamente seus sonhos de menino.

 

 

Irmandade

(7/9/2003)

 

Não, não pensei na velha canção com teu nome, pois não foi tristeza o que vi em teu olhar aquele dia. Teus olhos desvairados surgiram cintilantes da poeira, mas sem tristeza alguma e sim saltados de pavor e raiva. Nesse ódio, nesse horror – cintilavam. E abriam um clarão de luz – ainda que de luz agônica – no rosto tornado moreno pelo pó, pelas cinzas, pelo cheiro da morte.

Não posso esquecer teu rosto, tua luta muda e inútil, as forças que te cercavam e cerceavam sem saber que teu coração jazia destroçado, já, nos escombros. Não vacilei, tive a compreensão instantânea, sabia estar diante da dor infinita de uma mulher, embora diluída em meio ao horror da guerra sem sentido.

Não, não declinarei teu nome, já basta ter sido tua dor exposta sem meandros, sem fronteiras, mas não pude evitar falar, dirigir-me a ti. E assim como a Barbara que Prévert um dia teve a intimidade de chamar por tu, embora não a conhecesse, assim também te chamo a ti, irmã no inferno, porque as mulheres que amam com paixão, as mulheres que quase enlouquecem de dor são uma continuação da minha própria carne e de alguma forma me pertencem. São elas que há muito povoam meus sonhos, soprando em mim seu hálito assombrado. À noite, no silêncio, ouço-lhes as vozes e quase posso tocar-lhes os ossos translúcidos, o tecido imaterial de que são feitas suas almas. Conheço bem a textura dessa dor, sua carnadura. Sei das regiões abissais onde paixão e horror, amor e morte formam a mesma argamassa. E por isso aqui estou, para te falar.

Não, não direi que é sem dor que eu própria o faço (mas quem sou eu para pronunciar tal palavra?), direi apenas que é o que precisa ser, a expiação necessária. Há nesse contato que nos faz irmãs um mecanismo duplo em que dor e consolo fluem, ambos, nas duas direções. Mas não importa, precisei fazê-lo.

Não é muito o que tenho a dizer, queria apenas estender um fio, mostrar a mínima réstia de luz que teus olhos encharcados de poeira e lágrimas talvez ainda não consigam enxergar. É o que faço aqui. Neste desabafo onde tantos parágrafos começam com um não – como a lembrar tudo o que te foi negado –, queria dizer apenas o quanto existe de sim à tua espera.

Não importa se não tiveste um corpo, se te foi roubado o direito ao último pranto. Terás contigo aquilo por que anseiam tantos, o trunfo maior, o verdadeiro sentido, aquilo que nada nem ninguém será jamais capaz de te negar. Aquilo – e só aquilo – pelo qual se batem muitos, a partícula que sozinha justifica uma vida inteira: a memória da paixão.

 

Intromissão

(14/9/2003)

 

Metódica, sistemática, e morando sozinha, a mulher cultivava pequenos prazeres, aos quais se dedicava nos fins-de-semana. Um deles era ler. Lia bons livros, sem dúvida, mas tinha uma queda especial pela leitura de revistas. E suas preferidas eram as revistas estrangeiras, de viagem ou decoração. Aqueles mundos coloridos a deixavam encantada, tinham o poder de transportá-la para muito, muito longe dali.

Suas tardes de sábado eram um ritual: recostava-se na cama e se dedicava a folhear as revistas que comprara na véspera, na simpática loja 24 horas a poucos metros de seu prédio. Começava pelo cheiro. Fechava os olhos e levava uma das revistas ao nariz. Não era só o odor da tinta ou do papel. Aquelas revistas estrangeiras tinham o cheiro de outra dimensão, com a qual a mulher, flutuando em sua cama, sonhava. O perfume que emanava das páginas fazia com que uma pequena fração daqueles mundos de fato se materializasse para ela. Depois, era o tato. Abria os olhos e começava a folhear as páginas, bem devagar. Sentia um prazer físico em deslizar as pontas dos dedos pelo papel brilhante, como se apreendesse na pele as cores, as imagens. Era uma delícia.

Mas para que tudo isso acontecesse, para que pudesse aproveitar por inteiro a sensação de estar sendo transportada, precisava de uma coisa: silêncio. Enquanto folheava suas revistas, a mulher não ligava nem televisão, nem som, nada. Qualquer interferência sonora desfazia o encanto.

E foi assim – como uma intromissão – que encarou o ruído que de repente lhe chamou a atenção naquela tarde. Não que a assustasse, de forma alguma, parecera-lhe até banal. Mas era um som e, como tal, capaz de atrapalhá-la em seu momento de relaxamento. Um som surdo, continuado, insistente.

A princípio tentou não pensar nele. Fixou bem os olhos na página dupla da revista que mostrava uma praia das Ilhas Seichelles, com um mar azul transparente e pedras de um formato estranho, estriadas, parecendo lagartos ao sol. Mas o som intermitente começou a crescer, a encorpar-se, clamando por atenção, desconcentrando-a, quase como se a provocasse. Passou mais uma página. As ilhas, o paraíso. Era ali que queria estar, era para lá que se transportaria – por que o som não deixava? Uma terra distante, um mundo perfeito, tão diferente do seu, um lugar onde talvez jamais estivesse só. Apenas o som a puxava de volta.

Irritada, fechou a revista. E nesse mesmo instante, num segundo – como um jato ou uma bofetada – compreendeu o que aquele som significava. Os baques surdos, compassados, deram-lhe de repente a dimensão da imensa solidão em que vivia. Eram as batidas de seu coração.

 

 

Vilas e servidões

(21/9/2003)

 

Outro dia, caminhando à procura de um endereço na Rua Barata Ribeiro, passei diante do portão de uma vila. A rua de paralelepípedos tinha casinhas de ambos os lados, todas de dois andares, com muros baixos, trepadeiras e arbustos, vasos de flores nas janelas. Construções típicas dos anos 40, imagens de outros tempos. Fiquei fascinada, pois não sabia que ainda restavam vilasem Copacabana. Paramim foi uma surpresa. Em Ipanema, sim, sei de muitas que ainda resistem.

Lembro de um carnaval em que fui a uma festa numa vila da Barão da Torre. Foi no início dos anos 80, quando a especulação imobiliária já se incumbira, havia muito, de acabar com a paisagem harmônica de Ipanema, formada durante muitas décadas por prédios de no máximo quatro, cinco andares. Mas a vila continuava lá (e creio que continua até hoje): as casas eram em estilo normando, com toras de madeira incrustadas nas fachadas, e no espaço comum diante delas havia um grande jardim. A festa era nesse espaço e não dentro de uma das casas, mas acabei entrando em uma delas e pude observar as salas com pé-direito alto, as estantes embutidas nas paredes, os detalhes em pinho-de-riga, a escada de corrimões torneados, com volteios de carpintaria que hoje ninguém mais sabe fazer.

Mas, mais do que as vilas, meu fascínio recai sobre as servidões. Tive um amigo que morou numa casa da Prudente de Moraes que não dava para a rua. Para se chegar a ela, era preciso tomar uma passagem estreita entre duas casas, com seus muros altos – uma servidão. A própria expressão parece já quase em desuso, coisa de
antigamente. Servidão. Creio que essa, do meu amigo, já desapareceu, não tenho certeza. Mas há outras. Muitas, talvez. É só procurar. Com paciência e curiosidade, acabamos descobrindo mil lugares secretos pela cidade, mesmo nos bairros mais populosos.

Na própria rua onde fica meu escritório, a Gomes Carneiro, há uma servidão. E fica em seu trecho mais agitado, ali onde até pouco tempo ficava o restaurante Grottamare. Nunca entrei nela, mas de vez em quando espio e vejo que há um grupo de casas lá atrás, sem dar frente para a rua.

Eu, que desde pequena olho as janelas de prédios e casas com curiosidade, perguntando-me o que haverá por trás daqueles vidros e cortinas, espio da rua essas vilas e servidões e é como se de repente me deparasse com um pedaço do passado. Olhar para essas pequenas ilhas dentro do burburinho da cidade é para mim como espiar uma foto antiga através daqueles aparelhinhos parecendo um binóculo, em que se colocavam dois slides com a mesma foto para que a imagem se fundisse diante de nossos olhos. É como estar de repente diante de um fragmento do passado.

 

Vidros escuros

(28/9/2003)

 

Num fim de tarde, peguei carona no carro novo de uma amiga. Começava a anoitecer enquanto nós percorríamos a Visconde de Pirajá e eu ia com os olhos presos à vida lá fora, distraída e feliz como só os motoristas são capazes de ficar quando têm a oportunidade de entrar num carro sem dirigir. Mas, observadora como sou, logo notei uma coisa: a rua estava muito escura. Nem era completamente noite, ainda, e as calçadas já estavam mergulhadas numa penumbra tão densa. Seria algum problema nas lâmpadas dos postes? Uma falha geral, uma queda na corrente de luz? Comentei com a amiga, que dirigia a meu lado, e ela riu: não eram as ruas que estavam escuras, era o vidro do carro que tinha aquele filtro, explicou.

Olhei-a, admirada. “Foi você quem pediu?”

“Não, agora eles estão vindo assim de fábrica, acho. Pelo menos o meu veio.”

Fiquei em silêncio por um instante. Tenho uma implicância solene com esses vidros escuros. Logo que eles começaram a surgir, lembrei imediatamente de um filme a que assisti há muitos anos, cujo título em português era o ideal para as brincadeiras de mímica: “Encurralado”. Um sujeito vinha vindo tranqüilamente pela estrada e passava por um caminhão enorme, que sem mais nem menos começava a segui-lo, a desafiá-lo e por fim a persegui-lo numa caçada mortal. E o que dava mais medo era que não se via ninguém ao volante, os vidros do caminhão eram meio espelhados. Aquilo dava à frente do caminhão o aspecto de um rosto, os vidros com uma divisão no meio parecendo dois olhos baços. Era um caminhão-fantasma, movido talvez por uma força demoníaca, sobrenatural. Só podia ser.

Pois fico vendo esses carros de vidro escuro, esses carros sem motorista, sem ocupantes, e sempre penso no caminhão assassino. É desumano, é frio, é assustador. Tenho a impressão (embora chegue a me perguntar se não é tudo imaginação minha) de que as pessoas que dirigem carros de vidro escuro são mais agressivas ao volante. Talvez se sintam impunes por saber que seus rostos não podem ser observados.

E fico me perguntando o que aconteceria se de repente todos – todos – os automóveis fossem assim. Se andássemos pelas  ruas como se cobertos por uma máscara, todos nós sem rostos, sem ver uns aos outros, trancados, mais do que nunca, nas nossas bolhas de segurança,  inescrutáveis, indevassadas, inexpugnáveis (será?). Trancados – é isso. Sempre trancados, é como vivemos, cada vez mais. Por trás das grades, por trás dos vidros escuros.

Encurralados.

Até quando?

 

As mãos de Mariá

(5/10/2003)

 

Olho minhas mãos, os dez dedos pousados sobre o teclado do computador, sob o jato concentrado de luz que desce da luminária de mesa. Observo os desenhos das veias, da pele, as pequenas ranhuras circulares, semelhantes a um rodamoinho, que se formam nos nós dos dedos. Vejo também as unhas largas, crescendo apenas um pouco acima da linha da ponta dos dedos, unhas levemente encurvadas para baixo, pintadas de um esmalte da cor da carne, da cor da renda. É impressionante a semelhança. Mãos de Mariá. Com o passar do tempo, minhas mãos vão ficando cada vez mais parecidas com as de minha avó (embora as dela fossem mais bonitas).

Mariá tinha mãos assim, de dedos torneados e unhas largas, que ela sempre pintava de um esmalte natural, uma mistura transparente. Às vezes, quando era época de festa,  pintava-as de vermelho. Nessas ocasiões, gostava de tirar o esmalte das pontas, o que formava um fio branco na extremidade, e também de deixar à mostra as meias-luas, coisa que já não se usa mais.

Lembro que quando era menina eu invejava aquelas mãos, achava-as lindas, tão diferentes das minhas, sempre com as unhas roídas. Observava-as enquanto seguravam os livros, nas reuniões noturnas em que minha avó nos contava histórias, ou quando, com destreza, elas movimentam as agulhas de crochê, o brilho do metal faiscando sob o abajur. Observava-as também quando seguravam as cartas do baralho. E me deliciava quando aqueles dedos longos, elegantes, deitavam sobre a mesa as canastras. Meu avô ficava furioso porque Mariá jogava distraída, sem prestar atenção, e ganhava sempre, pois tinha uma sorte incrível e tirava todos os coringas.

E agora, olhando minhas próprias mãos, fico pensando: quando eu nasci, minha avó estava mais ou menos com a idade que tenho hoje. Talvez por isso a sensação de reconhecimento, porque as mãos de minha avó, quando eu as conheci, tinham a idade destas minhas mãos, estas que estão agora mesmo pousadas aqui, sobre o teclado do computador.

É curioso porque, nos últimos tempos, quando minha avó já estava muito velhinha, as enfermeiras que cuidavam dela costumavam cortar-lhes as unhas muito curtas para que não se ferisse. E, ao visitá-la, eu olhava aquelas mãos e via que estavam cada vez mais parecidas com minhas mãos de menina, com as unhas roídas.

No fim, Mariá – que se estivesse viva faria hoje 100 anos – ficou com minhas mãos e eu herdei as dela. Foi como se fizéssemos uma troca. E agora suas mãos maduras, que eu tanto admirava, têm em mim uma extensão, um tempo extra de existência, para que continuem segurando livros, folheando páginas – e contando histórias.

 

Misericórdia

(12/10/2003)

 

 

Gosto de fazer turismo no Centro, de passear a pé tanto pela região da Praça Quinze, à direita da Avenida Rio Branco (que eu chamo de Rive Droite), quanto na região mais decadente (porém interessantíssima) em torno da Avenida Passos que, sendo à esquerda da Rio Branco, obviamente chamo de Rive Gauche. Há, tanto de um lado quanto do outro, inúmeras ruas e lugares que adoro. No lado direito, a própria Praça Quinze, o Albamar, o Paço Imperial, o Arco do Telles, os centros culturais, a Travessa do Ouvidor. Do outro lado, a Colombo, a Rua da Carioca, o Bar Luiz, o Penafiel, o Real Gabinete Português de Leitura, a Casa Turuna, o Cedro do Líbano, todo o Saara com seu colorido e o cheiro das especiarias. Devo estar esquecendo muita coisa, pois a lista é grande, mas são lugares aos quais não me canso de ir.

Só que outro dia fiz uma coisa que jamais tinha feito na vida: fui à Ladeira da Misericórdia. O que é a Ladeira da Misericórdia? E onde fica? Fica ali na Praça Quinze, entre o Museu Histórico e o Museu da Imagem e do Som, junto à Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso. E é o seguinte: é uma rua onde não mora nem trabalha ninguém, uma ladeira inútil que leva do nada a lugar algum, cujo chão forrado de pé-de-moleque acaba de forma abruta, numa pequena mureta. É um pé de ladeira, mais nada. Uma ladeira abortada, uma rua interrompida.

Por quê?

Porque, mais do que uma ladeira, a da Misericórdia é um alerta e um testemunho. Uma prova de que o ser humano é capaz de cometer as piores sandices e de que é preciso estar sempre atento contra isso. Ali ficava o pé do Morro do Castelo, onde o Rio foi fundado – o mesmo morro que seria arrasado sob a alegação, entre outras coisas, de que impedia a circulação do ar na cidade. E só o comecinho da ladeira foi mantido, não por misericórdia (que esta, em favor de ruas e morros, não havia) mas provavelmente para que a Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso não perdesse a sustentação. E assim o trecho inicial da ladeira foi poupado, poucos metros de aclive com seu belo calçamento antigo indo dar numa mureta baixa por trás da qual crescem árvores.

E só. Ela acaba ali.

Assim como do lindíssimo mercado da Praça Quinze (destruído para a passagem de um viaduto) só restou a torre onde hoje é o Albamar, o pé da Ladeira da Misericórdia permaneceu para nos alertar, para que jamais esquecêssemos. E com o passar dos anos pedras e ferros continuam dando seu testemunho, mostrando-nos o quanto o homem é capaz de, por motivos vãos, destruir parte da História da cidade. Sem misericórdia.

 

Natureza morta

(26/10/2003)

 

Sentada na ante-sala do consultório, a mulher esperava. E, enquanto esperava, olhava em torno com seus olhos ávidos, na varredura de cada centímetro do cenário à sua volta. Era sempre assim. Quando tinha de esperar, em algum consultório, casa ou escritório, dedicava-se a uma estranha mania, cultivada havia muito: imaginar-se limpando, reformando e arrumando o lugar.

Começava por escrutinar as paredes, os móveis, os tapetes, tudo, com seu olhar que não saltava sequer um centímetro. Ali, tinha diante de si um sofá de brim azul-marinho, de três lugares, ladeado por mesinhas de madeira clara e tampo de vidro, sobre as quais haviam sido colocados dois abajures de pés de louça branca, com as cúpulas um pouco maiores do que deveriam ser. Na parede à sua frente estava um quadro que ela achara bonito, uma natureza-morta mostrando uma espécie de balcão branco, com uma garrafa e frutas, tendo ao fundo o mar azul. O chão da saleta onde estava era de lajotas e no corredor à esquerda havia uma série de aquarelas muito semelhantes entre si, com mínimas variações, todas exibindo um vaso contendo uma única tulipa vermelha.

Ah, suspirou – o que faria primeiro? Gostava do quadro, daquela natureza-morta, mas não do brim que forrava o sofá e muito menos daqueles abajures horrorosos. As aquarelas no corredor talvez deixasse. Mas a ante-sala em si, ela modificaria, sem dúvida. Trocaria o sofá por um de napa branca. Sim, suja muito, e daí? Na minha cabeça as coisas só existem no instante em que ficam prontas, lindas, perfeitas. Se sujar depois, já não é problema meu. Enfim, poria, sim, a napa branca, o que realçaria a luminosidade da natureza-morta atrás, e os abajures horrorosos mandaria embora, trocando-os por luminárias mais modernas, talvez com bolas de vidro branco, fosco. O chão forraria de…

Droga! Alguém a chamava. Estava na hora de entrar. Ia ter de deixar para depois, era sempre assim. Aquilo a deixava irritada. Tinha pensado na reforma, mas nem ao menos começara a limpeza, a faxina dos rodapés, o álcool que passaria nas paredes, o lustra-móveis que, com a ajuda de uma flanela… mas, ora, a enfermeira insistia, estava mesmo na hora de entrar.

Resignada, levantou-se. Enquanto dava os primeiros passos rumo ao corredor, procurou pensar em alguma coisa que lhe desse prazer, alguma coisa arrumada e perfeita. Sua gaveta de calcinhas, por exemplo. Dobrava-as todas da mesmíssima maneira, nem uma dobrinha a mais, nem uma dobrinha a menos, e colocava-as em degradê, das cores mais claras para as mais escuras, em perfeita arrumação, em criteriosa harmonia. Harmonia. Era isso o que gostava naquela natureza-morta. As cores eram harmônicas, as linhas bem distribuídas, tudo em seu lugar, tudo… interrompeu-se, pois chegara ao fim do corredor. E cruzou o umbral com mais um suspiro de resignação. O psiquiatra a esperava, sorrindo.

 

 

Luz

(26/10/2003)

A primeira coisa que me veio à cabeça foi a imagem da teia búdica. Poucos dias antes, um conhecido me falara sobre ela. Os místicos, explicou, crêem que temos em torno do corpo uma teia de luz, uma espécie de aura, sei lá. Uma teia búdica, foi a expressão que ele usou. Na hora, achei graça. Parecia coisa de hippie, dos anos 70. Mas não esqueci mais. E aí de repente, naquela noite, a idéia dessa teia de luz me voltou à cabeça. Vou explicar por quê. Mas antes queria descrever o lugar, o ambiente. Vamos por partes.

O lugar. Estamos no segundo andar de um sobrado de mais de século,em pleno Centrodo Rio. É noite, uma noite no meio da semana, e a cidade ali, naquela região próxima à Praça Tiradentes, está relativamente deserta. Todas as janelas – as imensas janelas de madeira crua, descascada, com as bandeiras formando uma curva – todas elas estão abertas. E através desses vãos vemos a rua lá fora, os casarões apagados cercando um largo, ao fundo do qual há um único prédio iluminado, os arabescos e agulhas do estilo manoelino dando-lhe o aspecto de um templo. É o Real Gabinete Português de Leitura. Mas voltemos para dentro do sobrado, é aqui que tudo deve acontecer.

O ambiente. O sobrado está cheio de gente, não há mais lugar nas mesas e de vez em quando alguém passa carregando uma cadeira para tentar se ajeitar num canto. Há muitos bambas nas mesas, mas eles se misturam aos outros, aqui somos todos iguais. Daqui a pouco, o show vai começar. As luzes estão baixas, mas é possível ver com nitidez as paredes de pedra e óleo de baleia, das quais foi tirado todo o reboco para que pudéssemos apreciar essa beleza de outros tempos. Na entrada, junto à escada, há um nicho escavado na pedra, onde uma lâmpada vermelha ilumina uma pequena imagem de São Jorge. O burburinho é grande, todos riem, todos parecem imensamente felizes. Mas de repente, faz-se silêncio. Chegou a hora.

Os músicos tomam lugar no pequeno palco e um facho de luz se acende sobre a figura principal – e é quando sou assaltada pela lembrança da teia búdica. Aquele homem corpulento que ali está parece envolto numa aura. Seu sorriso, seus colares, sua voz, tudo como que flutua numa camada de luz. Talvez não seja coincidência que ele, um Moacyr, tenha Luz no nome. E quando louva Pixinguinha, me vêm lágrimas aos olhos. Há qualquer coisa de sagrado ali.

E de repente fico pensando. Não é só ele, mas todos que estão com ele. É possível ver a alegria transbordando dos músicos, dos amigos, o prazer com que tocam juntos como se brincassem. Ninguém é produto de marketing, ninguém está pensando em ficar rico ou aparecer. A questão não é ser celebridade, estamos falando de amor. Amor pelo samba, pelo Rio, pelo Brasil – amor por aquilo que se faz. E talvez seja por isso que enxerguei em torno deles a teia búdica, essa aura de luz.

 

 

Mistura carioca

(2/11/2003)

 

À espera de um táxi em Laranjeiras, parada junto ao meio-fio, eu olhava para o prédio em frente, apreciando sua beleza. Era um prédio pequeno, de apenas três andares, cuja portaria – um belo portão de madeira trabalhada – se erguia um pouco acima da rua. Para se entrar no prédio, era necessário galgar quatro ou cinco degraus de uma escada de pedra, com corrimões de bronze. Era o que tínhamos ali: pedra, madeira e bronze. Três materiais nobres, símbolos de outros tempos.

E foi olhando para aquela portaria que de repente comecei a pensar na preservação de prédios pequenos e antigos, mesmo os que não têm um valor arquitetônico bem definido. Outro dia, folheando uma publicação da Prefeitura sobre os prédios do Jardim Botânico, descobri que o edifício onde nasci, na Rua Faro, entrou na lista dos bens  preservados. É um prédio pequeno, de apenas dois andares, que nada tem de especial – é feioso, até. Mas a notícia me encheu de alegria. Sei que existe muita polêmica a respeito do assunto, mas se a opção é destruir sou sempre a favor da preservação, mesmo que ela inclua equívocos, injustiças, problemas. E mais: acho que a verdadeira preservação não deveria incluir somente prédios, mas também estabelecimentos que contribuem para formar o espírito do lugar.

A Dias Ferreira, por exemplo. O charme maior dessa rua do Leblon tem sido que, nos últimos anos, em meio aos restaurantes chiques que ali surgiram, ainda existem os botequins, os mercados, as lavanderias, as lojas de piano ou de uniformes de trabalho. Tudo isso, junto com as livrarias e os cafés, ajuda a formar o espírito do lugar. O chamado comércio de quarteirão, as pequenas lojas de serviço, têm um papel fundamental nessa mistura. E essas lojinhas deveriam ser preservadas por decreto, subsidiadas, o que for. Alguma coisa precisaria ser feita para evitar o assédio, caso contrário todos esses pontos, supervalorizados, acabarão sendo repassados. Essas lojas tão simpáticas irão desaparecer, em seu lugar surgirão novos restaurantes finos – e aí a Dias Ferreira não será mais a mesma.

Porque a beleza dela está na mistura.

Nada é mais carioca do que isso. O Rio é assim – uma cidade mesclada, não partida. Um misto de beleza e bagunça, de terror e alegria. Talvez por causa da paisagem, não sei. Ou porque na praia, de calção ou biquíni, sejamos todos iguais. Sei lá. Mas o fato é que aqui o dinheiro não manda sozinho. E um botequim pé-sujo pode muito bem ter o mesmo status de um restaurante cheio de estrelas. Isso é uma parte importante de nosso patrimônio cultural. É a verdadeira mistura carioca.

 

 

Pérolas absolutas

(9/11/2003)

Fundo do mar, em algum ponto do planeta. Na luminosidade difusa, partículas mínimas – fragmentos de plantas, microorganismos, grãos erguidos do chão arenoso – dançam nas águas uma dança a que ninguém assiste. Tudo é silêncio e quietude no fundo do mar, esse mar eterno.

Mas não, nem tudo.

Há, no seio de uma ostra, um movimento – ainda que imperceptível. Qualquer coisa imiscuiu-se pela fissura, uma partícula qualquer, diminuta e invisível. Venceu as paredes lacradas, que se fecham como a boca que tem medo de deixar escapar um segredo. Venceu. E agora penetra o núcleo da ostra, contaminando-lhe a própria substância. A ostra reage, imediatamente. E começa a secretar o nácar. É um mecanismo de defesa, uma tentativa de purificação contra a partícula invasora. Com uma paciência de fundo de mar, a ostra profanada continua seu trabalho incansável, secretando por anos a fio o nácar que aos poucos se vai solidificando. É dessa solidificação que nascem as pérolas.

As pérolas são, assim, o resultado de uma contaminação. A arte por vezes também. A arte é quase sempre a transformação da dor.

Escrever, por exemplo. Fico lembrando de quando comecei. Estava com quase 40 anos e de repente alguma coisa dentro de mim clamou por ser escrita, mas clamou ferida, gritando. E eu cedi. As pessoas às vezes me perguntam se não é preciso coragem para começar a escrever tão tarde, mas respondo que não foi por coragem que comecei e sim por covardia. Tinha medo de morrer. Ou melhor, tinha certeza de que morreria se não escrevesse.

Hoje, mais de dez anos passados, fico pensando ainda em tudo isso, na magia e no fascínio da escrita. Quando escrevemos um romance, entregando-nos à história por semanas, meses, anos, temos por vezes a impressão de estar cruzando um deserto. E corre na espinha o medo de nunca chegar do outro lado. Mas afinal chegamos. E aí nos vem aquela sensação de vazio, como a de alguém que morto de sede atravessasse o deserto apenas para descobrir que no horizonte o que está à sua espera é o mar. O mar, a água salgada, incapaz de matar a sede. E vemos que será preciso virar as costas e trilhar outra vez o deserto, outros desertos, incansavelmente.

Há dor, delírio e delícia em tudo isso – mas, que importa? Escrever é preciso. É preciso continuar secretando o nácar, formar a pérola que talvez seja imperfeita, que talvez jamais seja encontrada e viva para sempre encerrada no fundo do mar. Talvez estas, as pérolas esquecidas, jamais achadas, as pérolas intocadas e por isso absolutas em si mesmas, guardem em si uma parcela faiscante da eternidade.

 

 

O olhar

(16/11/2003)

 

Para começar, ela fechou as cortinas. Talvez fosse bobagem, porque era noite, mas ela fechou assim mesmo. Seu apartamento ficava diante de um prédio com um anúncio luminoso no alto e as luzes vermelhas despejavam reflexos nas paredes. Seria uma interferência e a mulher não queria que nada atrapalhasse o momento, o clima. Precisava de silêncio e escuro, para ter a ilusão de que estava num cinema de verdade. O fim de semana começara chuvoso, frio mesmo para uma primavera no Rio, e ela decidira se dedicar a rever filmes antigos.

Queria que fosse tudo muito clássico, muito tradicional. Só não queria pipoca. Isso, não. Seria demais. Pipoca engorda e, para dizer a verdade, ela não achava muita graça. Mas, no mais, sua sessão de cinema seria um clássico, sem dúvida. A começar pelo filme, claro. Podia até ser uma escolha óbvia, mas não tinha importância. Era um filme do qual nunca se cansava. Será que alguém é capaz de se cansar de assistir a “Casablanca”?

E assim foi sua noite, uma noite em preto e branco, feita de amor e ódio, de guerra e desencontros, de cinismo e saudade. Uma noite ao som de um piano e de fichas de jogo, de hinos, de tiros, de gritos de revolta ou júbilo, uma noite marcada pelo giro lento e inexorável das pás dos ventiladores de teto – tudo parecendo escoar lentamente para um só momento, um instante que reúne em si a emoção do filme inteiro, um olhar que brilha com o nevoeiro ao fundo (embora os tolos afirmem que não há nevoeiro no Marrocos!), um olhar pelo qual valeu a pena o cinema ter sido inventado. O olhar de Ingrid Bergman para Humphrey Bogart no momento em os dois vão se separar, no aeroporto.

Com um nó na garganta, a mulher teve ímpetos de congelar a cena, mas não ousou mover-se. Deixou que ela seguisse seu curso, a ponta dos dedos sobre o controle-remoto, sentindo as pequenas protuberâncias dos botões. E logo depois, quando o filme acabou, ela desligou tudo e ficou sentada, em silêncio, no escuro. Sentiu o calor da lágrima, descendo devagar. E mais uma vez se perguntou por que aquela cena era capaz de lhe emocionar de tal forma, tantas vezes depois. O que havia ali, naquele olhar, no brilho da lágrima que não caía, ainda – que não podia cair?

Ah, ela sabia. Sabia muito bem. Quando duas pessoas apaixonadas se separam – com a certeza de que nunca mais se verão – há nessa despedida uma energia feroz, uma revolta física avassaladora. Há choro e gritos e abraços desesperados. Mas e se isso não for possível? Se houver alguma coisa, um impedimento, algo que obrigue os dois amantes a se despedirem com apenas um olhar, sem mais um gesto, mais nada – o que acontecerá? Esse olhar será o adeus absoluto e guardará em si toda paixão, toda dor, todos os gestos de despedida de todos os amantes que um dia viveram sobre a terra desde o início dos tempos.

 

O sorriso

(23/11/2003)

 

Eu, que outro dia falava de olhares e despedidas, fiquei pensando. Talvez mais dramático do que um momento assim – em que duas pessoas dizem adeus sem poder expressar o que sentem, como na cena final de “Casablanca” –, talvez mais dramático do que isso seja nos despedirmos de alguém sem saber que o fazemos. Aconteceu comigo, não faz muito tempo.

Era uma noite de sexta-feira. Há muitos lugares para se ir numa noite de sexta-feira no Rio, mas entre tantos há um especial para nós – e foi para lá que fomos naquele dia. Um amigo meu diz que ao entrar numa livraria se sente tão cercado de amor que tem a impressão de que nada de mau lhe pode acontecer. Pois nesse lugar especial de que estou falando eu sinto a mesma coisa. E não é uma livraria. É uma loja de discos. Mas a música, como as letras, na certa tem esse dom de exalar amor. Quando entro lá, tenho a impressão de estar cercada de amigos. A grandeza do espaço, o pé-direito alto, lembrando-nos que ali um dia foi um cinema, nada tira de mim a sensação de aconchego. Discos, discos, discos por toda a parte. E também filmes – e até alguns livros. Uma parede de pedra, cercada de plantas, um murmúrio de águas. Um bistrô onde, entre cafés e taças de vinho, entre empadinhas e tábuas de queijos, os garçons parecem estar sempre sorrindo. E foi nesse bistrô que aconteceu a história.

Era, já disse, sexta-feira. E sempre, às sextas-feiras, havia show de Juarez Araújo na loja de discos. Acompanhado de alguns músicos – piano, baixo, bateria – Juarez ali estava, a poucos passos de nós, tocando seu saxofone com um virtuosismo não cerebral, mas apaixonado. Só duas mesas nos separavam dele, por isso naquela noite, mais do que em qualquer outra, fiquei observando minuciosamente seus gestos, as mãos, o olhar. E acima de tudo seu sorriso. Sempre que terminava um solo, olhava em torno com um sorriso escancarado, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça, feliz como uma criança aprovando um brinquedo. Achei-o de repente parecido com Louis Armstrong, que também era um menino quando tocava e cantava, sacudindo seu lenço enorme. E comecei a pensar nos músicos em geral, na imensa confraria de anônimos que tocam por amor, muitas vezes se desgastando na noite, nunca pensando em ficar ricos. Há uma alegria infantil e poética em seus gestos, parecem contentes em tocar sem se importar se estão sendo ouvidos ou não. É por isso que ao final de qualquer show, na hora da apresentação dos instrumentistas, eu aplaudo até ficar com as mãos ardendo. Sempre torci pelos músicos.

Tudo isso passou por minha cabeça naquela noite de sexta-feira enquanto observava Juarez, aquele homem de mais de 70 anos com jeito de menino, músico extraordinário, respeitado no mundo inteiro, mas tão pouco conhecido aqui.

Não podia imaginar que aquela era a última vez que o via. Mas foi o que aconteceu.

Continuamos indo lá, nesse lugar tão querido, na sextas-feiras ou em qualquer outro dia da semana. É sempre bom, é maravilhoso. Mas devo confessar uma coisa: sinto falta do sorriso de Juarez.

 

Estilhaços

(30/11/2003)

 

Por um instante, a mulher fechou os olhos e esperou. Esperou imóvel, as mãos crispadas junto aos quadris, os maxilares trancados, os pés postos com firmeza no chão como se disso dependesse o próprio equilíbrio da Terra.

Esperou.

Cerrara as pálpebras de tal forma que enxergava diante de si um negror compacto, nem por um segundo rasgado pelas pequenas flechas cintilantes que cruzam a vista de quem acabou de fechar os olhos. Tinha a impressão de que sua própria mente era um bloco assim, um gigantesco volume de granito maciço e escuro, que nada poderia penetrar.

Isso durou muitos segundos (minutos, talvez, ou mesmo mais). Era uma espécie de transe, um estado alterado da consciência, pautado pela estranheza e o medo. Foi só depois de um lapso incontável de tempo que a mulher viu surgirem em sua mente, como se em letras brilhantes, de néon, aquelas palavras que lera ou ouvira em algum lugar.

“Pouco tempo antes, a realidade me confrontara com seu rosto pavoroso e eu não queria entrar outra vez em contato com ela. Em algum ponto dentro de mim esgueirava-se ainda um medo sombrio e assim me refugiei no fantástico, como uma criança infeliz que mergulha num conto de fadas”.

Surgiram assim, as palavras. Em bloco, formando períodos, frases, um parágrafo inteiro. Perfeitamente ordenadas, em letras de imprensa, porém cintilantes. Como se a mulher tivesse acabado de lê-las num daqueles anúncios luminosos das ruas de Tóquio ou de Times Square.

A princípio ela não identificou a origem das palavras, que continuavam desfilando por sua mente sem parar, da direita para a esquerda. Algumas pareciam mais fluorescentes, de luminosidade especialmente intensa: realidade, rosto, contato, medo, fantástico. E lá iam elas, passando, passando. Quem as teria dito ou escrito e onde e quando? A mulher nada sabia. Sabia apenas – isto, sim, com certeza absoluta – que eram de uma mulher.

Uma mulher como ela. Imersa em seu sofrimento, tentando resistir.

Fechou os olhos ainda com mais força e as palavras continuavam lá, deslizando devagar: pavoroso, sombrio, infeliz, fadas. Sentiu as unhas cravadas nas próprias palmas, as mãos se fechando mais e mais. E de repente, num lampejo, lembrou-se.

Lera aquelas palavras dias antes, na introdução de um livro de Isak Dinesen, “Sete contos góticos”. Sentira de imediato sua força, lera e relera a frase até a exaustão, mas não tinha idéia de que as tivesse decorado. E só ao vê-las agora desfilarem, brilhantes, em sua mente, compreendeu tudo. Ela própria vira o rosto hostil da realidade e se refugiara no silêncio e na escuridão. Fechara-se para não receber os estilhaços do mundo.

 

 

O gato-luz

(7/12/2003)

 

Era madrugada e um ruído qualquer, que a princípio não pude identificar, me acordou. Sentada na cama, apurei o ouvido. Silêncio. Esperei. O som se repetiu. Dessa vez,não poderia haver engano. Era o miado do meu gato, por trás da porta do quarto. Levantei e fui abrir. Ele entrou, abanando o rabo, feliz por se intrometer assim no meu mundo em plena madrugada, um mundo em geral vetado a ele, pois só durmo de porta fechada.

Sempre abanando o rabo ele subiu na cama, com a sem-cerimônia típica dos gatos, que parecem sempre reinar sobre o ambiente a que chegam, seja qual for. Depois de se esfregar em mim, pedindo um carinho, deu mais alguns passos sobre a cama e olhou para a janela, cujas cortinas, de painéis de bambu trançado, também estavam fechadas.

De imediato, entendi a mensagem. Ele estava querendo subir no parapeito para apreciar a paisagem (coisa que fazia sempre, só que durante o dia). Como a essa altura eu já havia perdido o sono, decidi fazer-lhe a vontade. Ajoelhada sobre a cama, corri os painéis da cortina e também as janelas de vidro. Ele não esperou um segundo. Pulou no parapeito.

E foi assim que nós dois, juntos, ficamos parados, fascinados, apreciando a árvore de Natal da Lagoa.

A inauguração fora na véspera, mas eu chegara tarde e fora me deitar sem olhar pela janela, por incrível que pareça. E agora ali estava a árvore, linda, linda, cintilando, piscando. Olhei para meu gato, que se sentara no mármore do parapeito. Também parecia fascinado.

Fiquei observando-o. Estava imóvel. A única coisa que se movia eram suas retinas, que se abriam ou fechavam quase imperceptivelmente, conforme a intensidade da luz.

Pensei então num livro que li há pouco tempo sobre as lendas envolvendo gatos, ora  considerados deuses, ora perseguidos como malditos. Fiquei sabendo por exemplo que no Egito Antigo, além de Bastet, a deusa-gata, símbolo da fertilidade, havia a adoração ao Grande Gato, ou gato-luz, cuja principal atribuição era orientar Rê, o deus-sol, durante a travessia das trevas, sempre que a noite caía. E por que seria o gato, e não outro animal mais feroz e mais forte, o guardião do astro-rei? Porque, contou-me o livro, com os olhos diafragmáticos que tem, o gato é capaz de encarar o sol – e sustentar esse olhar.

Achei bonito, isso. E foi  assim pensando que me voltei uma vez mais para observar meu gato, sentado no parapeito. Como dois pequenos espelhos mágicos, aqueles olhos de brilho próprio, tão misteriosos, refletiam agora, em centenas de pontos coloridos, as luzes da árvore de Natal.

Ali estava meu gato-luz.