2006

CONTOS MÍNIMOS

2006

 

Cá entre nós

(01/01/2006)

 

2005. Não sei se terá sido um ano cabalístico, que lá disso não entendo bem, mas foi sem dúvida cabal. Grande foi seu impacto, capaz de o tornar marcante, inesquecível. Cá comigo isso acontece, creio, de dez em dez anos – e quase sempre nos anos terminados em cinco.

Com 2005 foi assim. Foi o ano de Carmen, que começou sob o signo de Câncer, mais cabeça do que corpo, mais carinho que carícia, mais coração do que tudo. Calados, quietos, contemplativos, fechados a cadeado em nossa própria casa, enfrentamos o que parecia ser um cadafalso – e vencemos. Não foi fácil.

Às vezes é preciso mesmo calar, evitar a cacofonia que nos cerca, esperar a hora certa, talvez trazida pelo acaso, não importa, e só então agir, sem medo do caos, do ocaso.

Foi como aconteceu. E dos cactos brotaram flores claras, festas. No horizonte anjos cantaram glórias, cantigas, canções.

Foi um ano casto, sem dúvida. Um ano cansado, de cais distante – afinal alcançado. Um ano carente, acachapante, capcioso, cortante, mordaz. Mas coerente, também, na medida em que trançou amor e dor, essa rima tão antiga – porém inacabável.

E se foi um ano de contrastes, 2005 foi um ano brasileiro, um ano carioca.

Um ano cujo calendário, marcado, guardarei, com cada mês, cada semana e cada dia envoltos em pequenos círculos cor de carmim, com anotações de incerta caligrafia – a letra do medo, secreto e acossado.

Ano de calvário e entrega, de coroação. De lágrima e suor, de muito trabalho. De viagens imaginárias por países de doçura, com lençóis de cambraia, gosto de carambola e cambucá. Ano em que fomos acalentados pela corrente dos amigos, que nos cumularam de amor. Ano para ser em cálice brindado.

Carmen, câncer, coração, carícia, calor.

Um ano estranho, esse de 2005.

Que doeu e mordeu, assoprou, beijando, num flerte secreto entre comédia e drama, mas que acabou lânguido, acabou na cama.

Ano incomum, que desfilou por nós como colagem, caleidoscópio, cinema. Mas que só trouxe mais paixão, encontro de razão e sentimento.

E que, cá entre nós, acabou em casamento.

 

 

Prédios pequenos

(8/1/2006)

 

Numa esquina de Ipanema, daquelas bem arborizadas, já a caminho da Lagoa, paro e observo dois prédios, um diante do outro. São edifícios pequenos, de três andares, com detalhes art-decô e varandas inúteis mas simpáticas, mínimas, pouco mais do que sacadas. Nem um nem outro tem porteiro. Os muros são baixos. Nada de grades, vidros com filme escuro, alarmes. E muito menos aquelas tabuletas – uma nova e pavorosa mania – avisando que o lugar é guardado por um sistema de segurança.

Gosto desses prédios pequenos, nasci num assim. No Jardim Botânico, rua Faro, quase ao lado do Bar Jóia. Saí de lá aos 7 anos e dele só tenho uma lembrança mais vívida porque ali voltei a morar mais tarde, já casada. Ele ainda existe. Tem três andares (um deles abaixo do nível da rua, por causa do desnível do terreno) e uma característica comum a quase todas essas construções pequenas: nome de gente. Os prédios antigamente, quando não tinham nome de santo ou lugar, se chamavam como as pessoas, Alexandre, Adalberto, Aparecida. Coisa simples, terna, evocando alguma homenagem familiar, talvez um carinho para com uma criança.

Hoje é diferente. Os prédios têm nomes pomposos, tolos, têm títulos fingidos, de uma nobreza falsa. E já nem são mais edifícios, são solares, residências, townhouses, maisons. São frios, muitas vezes com o primeiro andar ficando na altura do quinto, por causa das garagens e play-grounds. Há uns, com portarias de pé-direito altíssimo, que, de tão austeros, têm cara de Ministério da Indústria e do Comércio.

Estava refletindo assim, diante daqueles prédios pequenos de Ipanema, quando uma mocinha parou na calçada diante de um deles e gritou pela avó. Logo, uma senhora apareceu na varanda e, para meu deleite, fez descer alguma coisa dentro de uma cestinha pendurada numa corda. A menina pegou (era uma chave!), abriu a portaria e desapareceu. Pensei então num amigo que reclama dos prédios novos, dizendo que eles não têm mais a dimensão do homem. E tornei a olhar com ternura para aquelas construções de Ipanema.

Alexandre, Adalberto, Aparecida. Prédios pequenos, antigos, com suas varandas tão próximas – ao alcance da voz. Testemunhas de outros tempos, quando até os prédios eram mais humanos.

 

Uma menina

(15/1/2006)

 

Aconteceu no mais improvável dos lugares – o Penafiel. O Penafiel, para quem não sabe, é um restaurante tradicional do Centro do Rio, com paredes de azulejos brancos, ventiladores antigos e um ritual delicioso, que é o de exibir a seus comensais os pratos do dia. Ao chegar, você vai até o fundo do restaurante e destampa as panelas para ver o aspecto dos pratos e só então fazer sua escolha. Uma beleza de lugar. Mas tem uma característica: não é o ideal para quem está querendo emagrecer. Pois, paradoxalmente, foi lá que aconteceu.

Vi quando ela entrou, acompanhada do pai, os cabelos longos e lisos emoldurando um rosto bonito, porém triste. Muito triste. O pai, ao contrário, gordo, já grisalho e de ar bonachão, parecia animado e feliz. Sentaram-se. O pai foi logo pedindo cerveja, mas a menina, pelo que percebi, nada quis beber. Chegaram então, como entrada, as tradicionais empadinhas de camarão do Penafiel – uma iguaria. Vi o olhar guloso do pai, apanhando-as, uma a uma, satisfeito da vida. Mas a menina, não. A menina não comia nada. Comecei a observá-la melhor. Tinha um rosto infantil, mas era alta e magra. Magérrima. Mesmo sentada, notei que era alta demais para sua idade. O tipo ideal para ser modelo. Quem sabe não era? Isso explicaria sua força de vontade em relação à comida.

Chegou o prato principal. O pai escolhera um arroz de frutos do mar que, na panela, me parecera espetacular, com anéis de lula, pedaços suculentos de polvo e camarões imensos. E a menina uma salada mista. Sim, salada mista. Aquela salada de restaurante tradicional, alface, tomate, ovo cozido e uns pedaços de cenoura. Mais nada. A menina se serviu e começou a comer. Levava horas para dar cada garfada, rasgando e dobrando as folhas de alface com todo o critério, como se estivesse fazendo o embrulho de presente de uma pessoa adorada. Ou como se quisesse enganar a fome. O pai, alegre, entre um e outro gole de cerveja oferecia a ela seu arroz de frutos do mar, insistindo, insistindo. Mas a menina permaneceu irredutível. E, quando afinal se levantaram para ir embora, vi que parecia ainda mais triste do que ao entrar.

Fiquei com muita pena dela. Era só uma menina. Sinto muito por essas jovens, sempre lutando para manter uma silhueta que contraria a natureza. É uma doença social, essa questão da magreza. Assim como a ditadura da beleza e da juventude. Minha geração lutou para mudar o mundo e de que adiantou? Agora, que quase tudo é permitido, alguém inventou que é proibido comer.

 

As amigas

(22/1/2006)

 

Eram duas amigas – uma feia, outra bonita. Amigas mesmo, desde pequenas. E também, desde pequenas, com aquelas características: uma feia, a outra bonita. Há uma crença de que nas diferentes idades a beleza se alterna com a feiúra (bebê bonito, criança feia, adulto bonito ou, ao contrário, bebê feio, criança bonita, adulto feio), mas no caso delas isso não aconteceu. Houve uma coerência. A feia foi feia sempre. Muito magra, de cabelos pretos, sobrancelhas grossas demais, quase formando um urubu que lhe sobrevoasse os olhos, nariz grande, boca como um traço. E a outra era o oposto. Sempre bonita, desde bebê. Cabelos castanhos claros, com um toque de cobre que cintilava ao sol. O rosto de um oval perfeito. Olhos quase negros contrastando com uma pele clara, sem qualquer sinal, e lábios grossos e vermelhos que pareciam desenhados com lápis de cor.

Brincavam juntas, desde muito pequenas, pois eram vizinhas. Era interessante vê-las de mãos dadas, correndo pela grama, subindo e descendo dos bancos, com seus vestidos rodados, a menina feia e a menina bonita. Numa, o que primeiro chamavam a atenção eram as sobrancelhas cerradas, que lhe pesavam a fisionomia. Na outra, a leveza dos cabelos avermelhados, flutuando.

O tempo passou. Elas cresceram. Sempre assim, uma feia, a outra bonita. E amigas. Sempre amigas. Presentes em todos os acontecimentos importantes da vida de cada uma. Não posso dizer que foram ao casamento de uma e outra porque uma delas, a bonita, nunca se casou. Mas teve grandes paixões. E um filho. A feia se casou duas vezes e teve três filhos, duas meninas e um menino. E o tempo continuou passando.

Até que um dia – de repente, de uma hora para outra – envelheceram. Parece mentira, mas as pessoas envelhecem assim. Principalmente as mulheres. Um dia, você acorda e vê uma nova marca no seu rosto. Não estava ontem, você tem certeza. Mas hoje está. Com elas, não foi diferente.

Uma tarde, tendo ido ao Centro da cidade para fazer compras, as duas amigas decidiram tomar um chá na Confeitaria Colombo. E foi ali, sentadas diante de um daqueles espelhos centenários, que as duas de repente se olharam e viram que tinham envelhecido. Lá estavam. Duas senhoras. E, incrível, na velhice, tinham ficado parecidas. Continuaram se olhando em silêncio por alguns segundos. “A idade nivela tudo, iguala feias e bonitas”, pensou uma delas. E a outra, como se lesse seus pensamentos, completou:

– A velhice é democrática.

Transformação

(29/1/2006)

 

Talvez fosse um sonho, pensou a mulher. Ou um sonho dentro de um sonho, dentro de um sonho. Mas talvez não.

Tornou a caminhar até a janela e olhou a rua deserta, lá embaixo. Na calçada em frente, um mendigo dormia sobre um burro-sem-rabo, todo enroscado, em meio a pilhas de papel e sacos de lixo. Parecia ele próprio um monturo, algo não humano. Mas era humano, sim. Para ela, para a mulher, era infinitamente mais humano do que aquilo que a ameaçava. Na verdade, o mendigo dormindo, os carros parados, a própria quietude da rua, tudo lhe transmitia uma sensação de normalidade, quase de segurança. Talvez devesse sair. Enfrentar a noite, sozinha. Talvez fosse mais seguro.

Virou-se e olhou para a sala vazia que ficara às suas costas, para a penumbra azulada que emanava da tela do computador. E se perguntou como atravessaria as horas que faltavam até o dia amanhecer. Mais do que isso, como conseguiria estabelecer o que era e o que não era real – continuar sã.

E, sobretudo, como resistiria à tentação de reler o que escrevera.

Ao começar a escrever a história de terror, não imaginara.  Já tinha feito coisas parecidas antes, muitas vezes. Nem sequer sentira medo ao escrever, como já lhe acontecera no passado. Apenas dessa vez a história era sobre um escritor. Um escritor que escrevia contos de terror. E que um dia via os personagens das próprias histórias se materializarem à sua volta. Talvez isso tivesse feito toda a diferença.

Torcendo as mãos, aproximou-se do computador. Chegou bem perto da tela, deslizou os dedos pelo teclado. Não se sentou. Tocou no mouse, conduziu a seta até a pequena pasta e abriu o arquivo, ainda de pé. Automaticamente, quase sem perceber o que fazia, recomeçou a ler, mais uma vez. E, como acontecera antes, a transformação se deu sem que ela notasse.

Talvez tenha fechado os olhos por uma fração de segundo e, ao abri-los, já não era mais ela mesma, já não estava de pé, na sala, no meio da noite. Estava andando na rua – uma rua que não era a sua, que não pertencia a seu mundo. E onde sabia que um perigo terrível – sobrenatural, incontrolável – a esperava. Sentiu o suor frio, as pontas dos dedos geladas. E, baixando os olhos, olhou as próprias mãos.

Eram mãos de homem. Mãos alheias às suas. E teve certeza de que estava vivendo a própria história que escrevera.

Sem querer, rompera as fronteiras.

 

Alma de arquiteta

(5/2/2006)

 

Eu, que quase só assisto a filmes em casa, outro dia fui ao cinema. É uma delícia assistir a um filme em tela grande, no escuro, mastigando alguma coisa (não gosto de pipoca, prefiro aquelas bolinhas de chocolate com passas dentro, ou então os delicados – será que ainda se chamam assim?). Pois, como eu ia dizendo, fui ao cinema. E a um cinema da minha infância: o Leblon, claro. É um milagre de sobrevivência, o cinema Leblon. Sou, há muitos anos, saudosa de outro cinema que fez parte da minha vida desde cedo, o Miramar, e ainda bem que pelo menos o Leblon continua de pé.

Assim que cheguei diante dele, ainda do outro lado da rua, observei a fachada Art Déco, com suas marquises arredondadas, seus desenhos geométricos, a sucessão de superfícies curvas que à noite são realçadas pela iluminação indireta, meio cenográfica. Aquilo sempre me fascinou. Aliás, não só o cinema Leblon, mas o Art Déco como um todo, tão abundante no Rio – o que inclui até a estátua do Cristo. Sempre tive a mania de observar prédios, desde muito pequena, e acho que tenho alma de arquiteta. Quando terminei o ginásio, fiz um teste vocacional na escola (eu estudava no Andrews) e deu Arquitetura. Só não concordei com o resultado porque detestava matemática e sabia que, para ser arquiteta, teria de estudar cálculo. Mas talvez esse pendor explicasse a minha mania de andar olhando as construções, observando seus detalhes e escolhendo os meus prédios favoritos.

Há nas livrarias publicações que listam os prédios Art Déco do Rio, bairro por bairro. Alguns são meus velhos conhecidos. Talvez os mais famosos sejam os de Copacabana, como os do entorno da Praça do Lido. Mas o mais lindo para mim é um que existe na Rua Ronald de Carvalho, cuja fachada em pó de pedra é toda sanfonada, fazendo com que pareça ser bicolor. É um vaso marajoara em forma de edifício. Uma beleza. E o outro, este talvez até mais famoso, é aquele da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, também de inspiração indígena: em torno da portaria, as paredes são uns tubos esverdeados, de cerâmica esmaltada (que me disseram ser majólica) e, no alto da porta, há uma índia-sereia de cabelos flutuantes, uma Iara – linda e quase assustadora –, capaz de encantar quem passa por ali.

Tudo isso eu olhava, com uma atenção quase incrível para olhos tão infantis, quando passava de carro com meu pai, ou mesmo de lotação, pela Avenida Copacabana do início dos anos 60.

Talvez, já naquela época, eu estivesse tecendo meus contos mínimos.

 

 Viajante

(2/4/2006)

 

Lá está ela.

Vergada, sim – mas soberba. O cabelo branco preso num coque no alto da cabeça, o corpo muito magro apoiado na bengala. Parada junto ao meio-fio, do outro lado da rua, prepara-se para atravessar.

Eu a vejo de longe, mas sua presença se impõe. O vestido é simples, de algodão talvez, um corte reto, sem mangas, sem bolsos. Os sapatos, um mocassim preto, de gáspea alta, pesado mas firme, talvez pela necessidade de um bom apoio para pés tão incertos, tão cansados. Na mão direita, a bengala; na esquerda, uma sacola de plástico, de supermercado. Tudo muito prosaico, simples, e no entanto há uma aura de majestade ali.

Agora, o sinal abriu. E ela começa a atravessar.

Da outra calçada, parada, observo. Ela desce o meio-fio com um passo leve, incerto, quase etéreo. Começo a me preocupar. Sei que aquele sinal é um sinal de pedestre e, como vivemos sob a tirania do automóvel, ele abre e fecha muito rápido. Os carros não podem esperar. Não vai dar tempo, penso. Mas a mulher não parece se importar.

Um passo depois do outro, lá vai ela, com todo o vagar do mundo, apoiando-se em sua bengala. E o sinal começa a piscar, anunciando que o tempo do ser humano se esgota, que este precisa abrir caminho para a máquina.

Estremeço, pensando: preciso fazer alguma coisa. Mas não faço. Continuo imóvel, pregada ao chão.

Pronto. O sinal fechou. E ela ainda está no meio da rua. Mas nenhum carro avança, parecem contidos pela realeza da mulher. E ela segue, sem apressar o passo, sem olhar para os lados, sem temor algum. Parece maior do que todos nós, do que o mundo inteiro, parece nos falar de uma outra maneira de viver, mais amena, mais gentil. Viajante do tempo, é como se caminhasse por uma Ipanema de setenta anos atrás.

Só quando afinal sobe na calçada do outro lado, só então, os automóveis arrancam. E eu a vejo afastar-se, no mesmo e imperturbável passo.

Talvez eu devesse ter ido ao seu encontro, tentado ajudar. Mas não pude. Sua dignidade, tamanha, me intimidou. E fiquei ali, imóvel, esmagada pela imponência daquela mulher-navio que, impávida e majestosa, singrava o tempo.

 

 Multidões

(9/4/2006)

 

Algumas pessoas têm horror às multidões. Eu, não. Gosto delas. Gosto muito.

Há uma energia quase sexual em desembocar do túnel do Maracanã numa final de campeonato, em dia de arquibancada cheia. Eu me sinto socada por aquele urro em uníssono, aquele troar feroz, que dá um frio no estômago. A boca fica instantaneamente seca, os maxilares contraídos, as mãos úmidas. Corre nas veias um veneno doce, que acelera o coração. Fui a alguns jogos inesquecíveis no Maracanã, nos anos 60, entre eles o Brasil-Paraguai de 1969, pelas eliminatórias da Copa do Mundo, com 180 mil pessoas no estádio, um recorde que não será jamais superado. Enfrentar uma multidão assim é como receber o beijo de um canalha por quem se está apaixonada. É algo feito de excitação e medo.

Mas num estádio de futebol ainda há uma salvaguarda, a própria conformação do lugar. A multidão está espalhada, e de alguma maneira contida. É diferente de estar espremido no meio de uma massa compacta, num comício ou show de rock, no Ano Novo ou no Carnaval. Aí, é como pisar no coração do caos. É preciso coragem, sim, admito. Mas só quem a tem pode desfrutar dessa estranha delícia.

O Cordão da Bola Preta, por exemplo. Agora que o Carnaval de rua do Rio se revitalizou, agora que blocos e bandas se espalham por todos os bairros de forma quase incontrolável, o Bola toma toda a Cinelândia e arredores, transformado num mar colorido e pulsante, com tanta gente por metro quadrado que é impossível enxergar o chão. Não estive lá este ano, mas soube que, pelos cálculos oficiais, a multidão na manhã de sábado chegou a quase 200 mil pessoas. Estive lá há um ou dois anos e me deixei arrastar por aquela onda incontrolável. A certa altura, tinha a impressão de que, se erguesse os pés, continuaria caminhando sem tocar o chão, sendo levada nos braços da multidão.

Talvez pareça contraditório, mas, em momentos assim, sinto como se estivesse a salvo. Dissolvida na massa, desprovida de individualidade, nada pode me atingir. Não há tristeza nem culpa, não há angústias ou contestações.

Não há pecado em meio a milhares de pessoas.

A multidão redime. A multidão perdoa.

 

Traição

(16/4/2006)

 

O escritor tem o direito de trair. Se não em gestos, pelo menos em pensamento e – sobretudo – em palavras.

Penso nisso ao me deparar com aquela mulher que ali está. Ela escreve. O que será que move suas mãos febris, que impulsiona sobre o papel o pulso fechado, abraçado à pena? Sobre que penas, que remorsos, que dores e amores escreverá essa mulher?

Há muito não lembrava de seu rosto, pensei que sequer existisse. Pensei que tivesse surgido um dia dentro de mim ou da imaginação de algum amigo, quando falei dela pela primeira vez, aqui. Mas ela existe, sim. Aí está. A mulher que escreve.

E trai.

Vejo seu olhar extasiado, os lábios que a língua umedece (sempre, a intervalos regulares), as pequenas gotas de suor que lhe porejam da testa, do colo. Quase ouço seu coração bater quando me sento perto dela, no café. Porque é num café que tudo acontece. Chego devagar, temendo interromper o idílio que se dá sobre a mesa, afasto a cadeira e chamo o garçom apenas com um gesto, em silêncio. Mal me movo, não quero fazer qualquer rumor que possa romper o momento. E, enquanto espero, observo.

É uma mulher de meia-idade, talvez até mais do que isso, embora seja difícil definir. Tem os cabelos encaracolados e pintados de um acaju escuro e seu rosto moreno me revela que já foi bonita. Lábios grossos, sobrancelhas cheias, arqueadas. Mãos grandes, de dedos longos, com apenas um anel – de prata e ônix. É com essa mão, a esquerda, que ela escreve seus textos febris, a cabeça pendendo de leve, as mechas avermelhadas encobrindo parte do rosto. Mas, ainda assim, consigo ver-lhe o semblante. E decifrar seu segredo. Sei o que ela escreve. É sobre um amor proibido, impensável, proscrito. Tenho certeza.

E é assim que se passa a tarde, ela sem sair jamais dali. Sobre a mesa, as xícaras de café se sucedem, mas ela, como eu, tampouco fala, pede tudo com gestos, e a vida se esvai naquele café sem nome, a mesa é a nave atemporal onde a mulher comete sua traição.

A mulher que escreve.

Eu a conheço bem. É aquela mesma da qual já falei tantas vezes.

A mulher que escreve por escrever, porque esta é sua sina, a expiação necessária, vício solitário que condena e escraviza. Mas que também a redime, salvando-a talvez da morte e da loucura. A mulher que continuará escrevendo, sempre – porque é preciso.

Provérbio chinês

(23/4/2006)

 

– Perdi a vista.

Foi a frase que falei ao telefone para um amigo (há muitos anos vivendo no exterior), que me perguntava pelas novidades. Eu estava falando do shopping que, como um cogumelo gigantesco, subiu diante do meu prédio, tapando a visão da Lagoa.

Houve um ou dois segundos de silêncio do outro lado do fio.

Imaginei o que ele estava sentindo. Como me conhece desde adolescente, muitas vezes se debruçou na janela da minha sala para apreciar, de dia ou de noite, aquela beleza toda: de dia, o espelho d’água com seus diferentes matizes, variando segundo a hora e a estação do ano, e por trás a sinuosidade das montanhas, do Sumaré ao Cantagalo, passando pelo paredão esplendoroso do Corcovado; de noite, o mesmo espelho, só que agora transformado numa miríade de luzes, os prédios acesos duplicados nas águas, tendo ao fundo o paredão escuro – então quase invisível – das montanhas silenciosas. E mais as festas, os fogos, as noites de lua. E mais os domingos de regata, a água da Lagoa pontilhada de velas brancas. E ainda, mais recentemente, nos natais, a árvore e seus brilhos, suas luzes mutantes, acendendo a água, deixando entrever no espelho noturno as figuras minúsculas e curiosas dos pedalinhos.

Tudo isso talvez se terá passando na mente de meu amigo naqueles dois segundos – ou terá sido na minha própria?

O silêncio continuava. Meu amigo devia estar chocado. Eu, já nem tanto. Tenho procurado me acostumar. Vai ser bom para minha mãe, ela vai poder passear dentro do shopping, tão pertinho. Vai ter teatro, cinema, uma livraria querida. Tenho de me conformar. Tenho de procurar esquecer o inferno, o metralhar de mil britadeiras ao mesmo tempo, o som surdo do bate-estacas, o estalar dos metais, a poeira fina, o cheiro de piche, sim, o interminável inferno, o dia todo, de manhã à noite, dia após dia, semana após semana, meses e meses, um ano depois do outro. Foram sete anos. Sete anos, como no sacrifício do pastor que servia Labão. Sete anos vendo a pedreira da minha infância sendo raspada, retalhada e finalmente morta, sem piedade. O que fazer?

– Perdi a vista – repeti. E só então me dei conta de que a frase tinha dois significados: eu poderia estar dizendo que perdera a visão. E me apressei a completar:

– Estou falando do shopping que construíram aqui. Não dá mais para ver a Lagoa.

Meu amigo riu, dizendo que tinha entendido. E eu, talvez tentando me consolar, lembrei daquele provérbio chinês, do homem que, reclamando de não ter sapatos, encontra um que não tem pés. Quando quiser ver a Lagoa, ainda posso ir até suas margens e encher os olhos.

 

 Uns cheios, outros em vão

(30/4/2006)

 

Minha mãe sempre adorou frases feitas, ditados. Um deles chegou a lhe causar um problema sério, que acabou em sangue. Ela contava para nós.

Tinha acontecido quando era mocinha. Estava ajudando a mãe (minha avó severíssima, dona Guiomar) a arrumar a louça no armário da cozinha. Dona Guiomar estava de pé em cima de um banco e minha mãe, no chão, passava a ela os pratos e compotas recém-lavados, para que os guardasse. Enquanto fazia isso, pedia para sair com o namorado naquela tarde. Dona Guiomar negava. Ela insistia, argumentava. Explicava que não era nada demais, que só ia ao cinema, que não poderia haver mal algum nisso. Mas dona Guiomar se mantinha firme. Até que minha mãe se irritou e acusou dona Guiomar de também ter feito das suas enquanto jovem, o que justificaria tanta desconfiança. E fez isso usando um ditado:

– Quem conhece a pedra é o lapidário.

Pronto. Bastou aquela frase para dona Guiomar ficar fula de raiva (talvez fosse verdade, afinal). Num gesto de total descontrole, deu na cabeça de minha mãe com o objeto que tinha nas mãos. E, por azar, o que ela segurava naquele momento era coisa muito dura: a tampa de cristal de uma compoteira. Isso mesmo. Minha avó Guiomar deu com a tampa da compoteira na cabeça de minha mãe – e lhe tirou sangue!

Nós, as crianças, que sempre tivemos um medo danado de nossa avó Guiomar, ouvíamos aquele relato com um misto de fascínio e horror. Nunca mais esqueci dessa história.

Mas não foi pensando nem em pedras nem em lapidários que, outro dia, remexi na caixinha de jóias de minha mãe à procura de uma corrente antiga, que afinal não encontrei. Mas achei, sim, uns brincos de pingente que ela costumava usar, uma fieira de minúsculas turmalinas verde-acinzentadas, terminando com uma pérola na ponta. Por algum tempo, fiquei olhando para eles e senti subir de dentro de mim uma sensação de difícil definição. Era uma lembrança antiga, difusa, esgarçada. Só ao erguer o par de brincos contra a luz é que a lembrança clareou. O verde das turmalinas faiscou, contrastando com a opacidade quase acinzentada da pérola, e eu me lembrei que minha mãe comparava aqueles brincos à vida: uma fieira de pequenas esperanças, uma lágrima para temperar. Não se pode querer tudo, dizia.

E, como sempre, resumia sua filosofia com um ditado:

– Uns cheios, outros em vão.

 

Hora do recreio

(7/5/2006)

 

Todos os dias, na hora do recreio, a menina se sentava no mesmo lugar. E dali, sentada, observava o mundo. Seu lugar era num dos extremos do pátio, sob as janelas coloniais azuis, numa faixa de grama que beirava o prédio antigo da escola. Todo o resto do pátio era de terra batida, mas aquele trecho gramado tinha atrações que a menina considerava especiais. Primeiro, o próprio gramado que, por ser pontilhado com pedras formando caminhos, oferecia segredos e descobertas. Segundo, o velho poço abandonado, em cuja tampa de cimento ela se sentava para apreciar o mundo. Um lugar privilegiado.

Era um mundo pequeno, aquele do recreio da escola, mas tinha de tudo um pouco. Havia a menina feia, de tranças, que vivia só num canto e não tinha amigos. E a menina bonita, de cabelos ruivos e encaracolados, que parecia um anjo. Havia o menino gordo e engraçado, em cujo olhar brilhava uma centelha de dor. E o rapaz alto, maior do que todos os meninos, que dizia bravatas e queria chegar sempre em primeiro, mas que no fundo só estava compensando com vaidade as próprias limitações.

Era assim o mundo da hora do recreio, um mundo igual a todos os mundos, apenas um pouco menor, pois só existia entre as quatro linhas do pátio da escola. Mas, mais do que as pessoas, a menina gostava mesmo era de olhar as coisas a seu redor. O formato das pedras que pontilhavam o caminho, seus brilhos e matizes; o mundo em miniatura que crescia por entre as lâminas de grama; os insetos, joaninhas e formigas, com suas vidas secretas, insondáveis. E os trevos. A grama ali estava cheia de trevos. Mas nunca a menina encontrou um de quatro folhas, só de três. Não se importava. Com ou sem seu trevo da sorte, escolhera aquele lugar e dali se sentava para observar o mundo. Olhava e olhava, porque o que mais gostava de fazer na vida era olhar. E era assim, olhando de seu canto no pátio do recreio, que via o tempo passar.

Até que um dia – o primeiro dia de aula depois de um feriado – o sino da hora do recreio trouxe uma surpresa. Assim que despontou no pátio, piscando os olhos por causa da claridade que ardia nos grãos de areia do chão, a menina viu que seu lugar não existia mais. O velho poço desaparecera e o trecho de grama do pátio fora cimentado para a instalação de uns brinquedos modernos, de colorido espalhafatoso. Não mais joaninhas, nem caminhos de formigas, nem mais trevos pontilhando a grama. O universo mínimo em torno do poço, com todos os seus segredos, sumira. Tinham cimentado tudo.

E a menina teve a impressão de que o mundo tinha perdido um pouco de sua delicadeza.

 

Meu coração secreto

(14/5/2006)

 

O fundo musical era o mais improvável. No som do meu carro, tocava uma velha canção, “I’ll follow my secret heart”, de Noël Coward, autor inglês que só há pouco tenho descoberto. Nada tropical, nada a ver com o Rio ou o Brasil. Mas, por paradoxal que fosse, a canção se encaixava de forma perfeita com o que eu sentia naquele instante: uma satisfação desmedida.

Eram cinco da tarde, essa hora em que os dias de outono no Rio são ainda mais bonitos, mais perfeitos. E eu dirigia pela praia de Ipanema, no meu primeiro dia de volta depois de uma pequena temporada fora.

É bom voltar. Mesmo depois de apenas duas ou três semanas, é bom voltar. Tudo bem que peguei uma primavera gelada na Europa, três, quatro graus, nuvens cinzentas, chuva fina. Mas foi lindo. Foi maravilhoso, sempre é – por que, então, eu sentia aquilo? Tudo bem que houve alguns percalços, mínimos: Berlim cheia de obras nas ruas, a um mês da Copa (pensei no Pan); o motorista de táxi que se queixou, dizendo que houve corrupção nas licitações; e as tortas de maçã que comi em quatro lugares diferentes sem que nenhuma fosse tão boa quanto a do Bar Lagoa. Mas tudo isso é bobagem, sei muito bem. Foi maravilhoso. Viajar sempre é. A gente aprende muito. Então, por quê?

Por que aquele sentimento tolo, a sensação tão boa por estar de novo em casa?

Aumentei o som do carro, pensando, pensando.

Claro, era culpa dele – do meu coração secreto.

Porque era com ele que eu olhava para aquele pôr do sol, praia de Ipanema, primavera, uma brisinha, um céu de Hollywood, palmeiras recortadas, o mar e suas cores, o recorte magistral dos Dois Irmãos à minha frente. Era com ele, também, que eu olhava as pessoas. Aquelas pessoas nuas, coloridas, despojadas, rindo, falando alto. Aquelas pessoas transgressoras, mal-educadas, atravessando fora da faixa, buzinando. Nossa deliciosa bagunça, nossa doce esculhambação.

Baixei o vidro da janela, deixei o vento bater no rosto. Ao parar no sinal, por um segundo, pensei em fechá-lo. Mas até aquele arrepio, o medo de assalto, até isso, por louco que fosse, me fez sentir viva, me fez estar aqui, de volta.

E daí se me chamassem de bairrista? Eu ia seguir meu coração secreto, minha paixão mais instintiva, visceral. E declarar bem alto: este é o melhor lugar do mundo para se viver.

 

Encontro

(21/5/2006)

 

Ela entrou. Entrou e se sentou diante dele.

Era o primeiro encontro a dois. Tinham-se conhecido dias antes, apresentados por uma amiga, e depois de algumas conversas por telefone, ele a convidara para jantar. Por uma razão qualquer, combinaram encontrar-se direto no restaurante. E assim, quando ela chegou, ele já estava sentado, à espera.

Era um homem maduro, experiente, não tinha por que se sentir daquele jeito. Mas ao vê-la surgir na porta do restaurante, seu coração perdeu um compasso, ganhou outros tantos, correu atrás da própria batida e levou alguns segundos para se regularizar, até que afinal se acalmou, entrando no mesmo ritmo dos passos dela.

E ela veio. Como eu dizia, entrou e se sentou diante dele. Sentada (só então), sorriu.

Foi o suficiente. Algumas pessoas têm o sorriso assim, transformador, quase subversivo. Um sorriso que faz emergir de dentro delas outro ser, diverso do que se mostra quando estão sérias. Mais do que isso. Um sorriso que, ao se abrir, revela uma intrincada rede de mistérios, como túneis secretos escavados sob uma igreja. Ela era assim. Com aquele sorriso, dezenas de mulheres, não apenas uma, estavam agora sentadas diante dele, várias mulheres contidas numa só mulher, mulheres díspares entre si, recatadas ou devassas, suaves ou cruéis. E ele gostou imensamente.

Começaram a conversar. Dias antes, ao serem apresentados um ao outro, já tinham conversado um pouco, e mais ainda pelo telefone. Ele gostara da maneira como ela falava, mas agora era diferente. Lá estava ela, contando alguma coisa engraçada, gesticulando, se mexendo na cadeira. E ele ouvindo, hipnotizado.

Ouvindo, era maneira de dizer. Não ouvia nada. Ria nas horas certas, concordava, fazia perguntas, mas era como se tudo acontecesse em outra dimensão. “Vamos, continue, não pare. Continue falando”. Ela podia dizer o que quisesse, não importava. Sua presença física diante dele era poderosa demais, avassaladora. Dos fios de cabelos às pontas dos pés, escondidos sob a mesa, ele a sentiu diante de si, inteira, ondulando, movendo-se como uma planta aquática, um polvo e seus tentáculos. Ela era uma promessa de luxúria, uma bomba-relógio, o fim surpreendente de um romance que ele queria levar para ler na cama, a letra de uma velha e deliciosa canção.

E ele gostou imensamente.

 

 Fragmento do passado

(28/5/2006)

 

Foi no meu primeiro dia em Berlim. Tendo acabado de chegar, botei as malas no quarto e saí para uma voltinha antes que anoitecesse, pois, naquele começo de primavera, o sol frio já quase se punha. Estava na parte mais moderna dessa cidade estranha, meio nova, meio velha, numa região devastada que ressurgiu recentemente, mantendo o velho nome, Potsdamer Platz. Mal atravessei a rua e, contornando um prédio de vidro e aço, me vi diante de uma praça. Tinha um lago no meio e restaurantes em torno, só que nada disso era a céu aberto e sim coberto por um toldo high-tech, parecendo aquelas coberturas dos novos estádios de futebol. Mas, naquele espaço tão moderno, de repente me defrontei com algo inusitado – estranho fragmento de outra época.

Era uma espécie de vitrine, cujo vidro guardava uma parede antiga, com sancas e detalhes florais, pintada, conservada, ostentando ainda os apliques de luz com seus pingentes de cristal. Num dos cantos, uns degraus de escada com corrimão de ferro dourado e um patamar levando a lugar algum. Do outro lado, uma lareira de mármore trabalhado, encimada por um espelho. Era parte de um salão, luxuoso e perfeito, porém incompleto, fora de tempo e lugar. Vi que havia uma placa de informação e me aproximei para ler.

Eu estava diante do que restara do Hotel Esplanade, um dos mais luxuosos da Europa nos primeiros anos do século vinte. Na guerra, ele viera abaixo e poucas paredes tinham ficado de pé. Aqueles fragmentos eram parte (na verdade, duas paredes) do Salão do Kaiser, assim conhecido porque lá Guilherme II dava suas festas.

O Esplanade fora uma lenda. Na Berlim de entre-guerras, muitos atores e atrizes famosos – entre eles, Greta Garbo e Charles Chaplin – costumavam se hospedar nele. De decoração suntuosíssima, tinha 600 quartos, com janelões que davam para as ruas em torno de Potsdamer Platz, então o coração de uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Foi lá também, no Esplanade, que o futuro diretor de cinema Billy Wilder, rapazola, teve seu primeiro emprego: de bailarino, abrindo o salão nos chás dançantes.

Dei mais uns passos e olhei minha própria imagem no espelho sobre a lareira, um espelho enorme, como costumam ser os espelhos dos salões reais. Suntuoso no passado, o espelho – e não só o espelho, mas todo aquele fragmento do passado – agora estava ali, aprisionado numa vitrine, parecendo tão deslocado em meio ao burburinho da praça moderna. Contando, de trás daquele vidro, um pouco da história da estupidez humana.

 

 Por que não?

(4/6/2006)

 

Ouço falar que há um movimento pela reconstrução do Palácio Monroe.

Tem gente que ri, acha uma brincadeira. Pois devo confessar que, se a princípio também achei a idéia risível, comecei a pensar no assunto com certa insistência depois de minha recente visita a Berlim. O Monroe, creio que todos se lembram, era aquele palácio que ficava entre a Cinelândia e o mar, ao lado do Passeio Público, no lugar onde hoje o metrô faz uma curva desnecessária. Com a desculpa do metrô, que ia passar por ali, inventaram de derrubá-lo e, mesmo depois que o traçado da linha subterrânea foi mudado, continuou a histeria. O Monroe representava o poder legislativo, os militares não gostavam dele. O Monroe era de estilo eclético, os arquitetos não gostavam dele. Houve quem levantasse a voz em sua defesa, mas de nada adiantou. Foi um caso, talvez único em nossa história, de linchamento de um prédio público.

E agora fico sabendo que o artista plástico Antonio Veronese está se batendo para que ele seja reerguido. Tem, desde já, meu apoio. Claro que o Rio não tem dinheiro para isso, com os hospitais e as escolas à míngua. Mas fiquei pensando: e se os alemães nos dessem de presente? Berlim, essa cidade co-irmã (agora mais encantada conosco do que nunca, por causa da Copa do Mundo) poderia construir para nós um Monroe novinho em folha, que seria trazido aos pedaços (como, aliás, aconteceu originalmente). Ou poderia, pelo menos, nos fornecer a tecnologia e o know-how, que devem ser caríssimos.

Digo que comecei a pensar nisso depois de minha visita a Berlim porque lá uma idéia como essa é a coisa mais natural do mundo. Há, por exemplo, num bairro chamado Nikolai, um lindo palacete chamado Palácio Ephraim. Estive diante dele: uma construção belíssima, com sacadas rococó, em ferro trabalhado e pintadas de dourado. Mas lendo um livro sobre a cidade fiquei sabendo que ele foi completamente destruído durante a guerra e que foi reconstruído, peça por peça, tijolo por tijolo, com todos os detalhes na fachada e nas sacadas, tudo, tudo. E com um requinte: 16 metros mais para trás em relação ao local original, para não atrapalhar o trânsito. Há também, à beira do rio Spree, um prédio modernoso e horrível, o Palácio da República, que está sendo demolido. Ele foi erguido na época do regime comunista, em lugar de um belíssimo palácio, o Berliner Stadtschloss, que já estava semidestruído pela guerra e que era considerado um símbolo dos velhos tempos. Pois vão refazer o antigo palácio, com todos os detalhes. E esses são apenas dois dos incontáveis exemplos. Para os alemães, nada é impossível.

Então – por que não podemos sonhar?

 

 

Maracanã

(11/6/2006)

 

Hoje vou falar de futebol. E quem pensa que sou como a grã-fina do Nelson Rodrigues, que ao ser levada a um jogo perguntou “quem é a bola?”, está muito enganado. Não sou dessas mulheres que só gostam de futebol durante a Copa do Mundo.

E aqui vão algumas informações para provar o que estou dizendo: sei muito bem como é a regra de impedimento; já ouvi falar até de coisas como “sem-pulo” e “da figura A para a figura B”; assisto às resenhas de futebol de domingo à noite, trocando de canal quando elas ficam chatas e só falam dos times de São Paulo; freqüentei muito os estádios quando era jovem e, entre outras façanhas, fui àquele jogo que foi recorde de público no Maracanã em todos os tempos (porque na Copa de 50 não se contava o número de espectadores): o jogo Brasil e Paraguai pelas eliminatórias da Copa de 70, com 180 mil pessoas.

Outro dia estava pensando nisso, com orgulho, e então concluí: se eu estava lá, eu vi o Pelé jogar. Vi o Pelé jogar… E aí me veio a sensação de que, naquele jogo, não vi nada, nem Pelé, nem jogador algum, nem Brasil, nem nada. Ou pior, se vi, esqueci. O jogo em si não me marcou. A única coisa que me marcou foi o próprio Maracanã, cheio, grávido de uma multidão colorida e compacta que ululava e tremia, fazendo vibrar seu esqueleto de ferro, seu enorme corpo de cimento armado.

Percebendo isso, a princípio cheguei a me sentir envergonhada. Parece coisa de mulher, pensei, ir ao estádio e não ver o jogo direito. Mas logo entendi: é que estar dentro do Maracanã lotado – e ainda mais lotado daquele jeito – é de fato uma experiência única, avassaladora. Por sua conformação, nosso estádio tem uma acústica espetacular, que é só dele. Quando, subindo pela rampa, desembocamos na arquibancada, ou mesmo nas cadeiras, somos recebidos pelo som uníssono da multidão, que nos atinge em cheio, em pleno peito.

Nenhum outro estádio do mundo ecoa e vibra assim. Foi por isso que, daquele histórico Brasil-Paraguai, eu guardei acima de tudo essa sensação. Mais do que qualquer jogo, mais até do que Pelé, ficou dentro de mim aquele Maracanã cheio, um monstro vivo de beleza e cor.

 

Símbolo maior

(18/6/2006)

 

Eu falava outro dia aqui sobre o Maracanã e eis que assisti, num daqueles documentários que antecederam a Copa, a uma reportagem sobre o estádio de Berlim. O mesmo estádio construído por Hitler para as Olimpíadas de 1936 e que agora, todo reformado, recebe uma série de jogos (tendo começado pela estréia do Brasil), até a grande final, em 9 de julho. E fiquei pensando: eles tinham tudo para querer botar abaixo aquele estádio. Derrubar e fazer outro – por que não? Seria talvez até mais barato. Os ingleses fizeram isso com Wembley, o que, devo confessar, me doeu muito. Pois os alemães teriam motivos de sobra para fazer o mesmo, apagando, de uma só tacada, o estádio ultrapassado e o passado terrível que está impregnado em cada pedra e cada fresta do lugar.

Mas, não. Não fizeram isso. Porque os alemães não querem apagar a História. Eles prezam o passado – até para aprender com ele. Os povos cultos são assim. Um lugar como o estádio de Berlim é parte da cultura alemã e por isso merece ficar de pé.

Já aqui, entre nós, é tudo tão diferente, não é mesmo?

Sim, porque aqui também temos um estádio que é História. Que é o símbolo maior de nosso futebol, essa parte tão brilhante e poderosa de nossa cultura. Um estádio que, como símbolo mundial do nosso futebol, devia ser usado para divulgar o país pelo mundo afora. Um estádio que foi o maior do mundo e onde se escreveu, com muitas lágrimas, o enredo do pior desastre esportivo jamais vivido por este país. Um estádio que ostenta o nome de um homem brilhante, um lutador, alguém que defendeu como poucos o esporte neste país de miseráveis: Mário Filho. Estou, é claro, falando do Maracanã. E se volto a ele é porque nós, brasileiros, não sabemos cuidar daquilo que nos é mais caro.

Entre nós, já houve gente – e não foi gente qualquer – que defendesse a demolição do Maracanã. Os altos dirigentes do nosso futebol admitem abertamente que, no caso de o Brasil sediar a Copa de 2014, nenhum jogo será no Maracanã. Porque ele está velho. Decadente. Precisa de reformas e ninguém se interessa em fazê-las. Não vêem a importância que esse símbolo tem para o mundo. Os turistas que vêm ao Brasil querem conhecer nossos símbolos, nossas marcas. E que marca maior pode haver para o país do futebol do que o Maracanã?

Ele devia ser tratado por todos os brasileiros – todos, não só os cariocas – como aquilo que de fato é: um pedaço importante de nossa História e de nossa cultura.

 

 

Um homem

(25/6/2006)

 

Era um homem que amava as mulheres. Muitos homens gostam de mulher – creio que a maioria. Mas não estou falando de gostar. Estou falando de gostar muito, de amar, de adorar. De ser alucinado por elas, um verdadeiro admirador do ser feminino. Ele era assim. Amava as mulheres. Gostava de ouvi-las, de estar com elas.

Mas não era, em absoluto, um homem de alma feminina. Muito ao contrário. Era daqueles que têm um jeito viril, quase agreste, uma atitude máscula – mas não machista – diante de tudo.

Por exemplo, roupa: ele detestava comprar roupa, abria o armário e pegava qualquer coisa que estivesse na sua frente. Se pudesse, mandaria alguém na sapataria comprar sapatos para ele. E assim que encontrava um modelo confortável, comprava logo dois ou três pares, de uma ou duas cores, para não ter de pensar no assunto tão cedo.

Outro exemplo: comida. Ele não tinha a menor paciência para restaurantes moderninhos, onde, segundo suas próprias palavras, os pratos parecem um quadro abstrato do Manabu Mabe. Não gostava de nirá enfeitando os pratos. Aliás, não gostava em absoluto de nirá. Nem de rúcula, nem de endívia. Gostava, sim, de maxixe e jiló. Mas seu negócio mesmo era sarapatel, rabada, caldinho de sururu. Feijoada e vatapá. Adorava comida de botequim, mas de preferência um botequim desses tradicionais, com balcão de mármore (sujo) ou aço inoxidável (molhado), onde em geral se come em pé ou sentado em tamboretes bambos. Preferia um bom pastel a um prato de restaurante francês. Italiano metido a besta, então, nem se fala. Não passava nem na porta. Ele era assim, esse homem.

Dizia, rindo, que mulher “é um bicho que sente frio nos pés, bebe vinho branco e acredita em horóscopo”.  E, no entanto, tinha e sempre teve amigas mulheres (coisa que nem todo homem é capaz de fazer). Mas é que ele realmente gostava das mulheres.

Pois foi ele que, outro dia, se enterneceu ao olhar para uma mulher feia, passando na rua. Olhou e olhou, até que ela se afastasse, comentando com a amiga a seu lado que não concordava com Vinicius. Beleza não é fundamental, disse. E arrematou com uma frase que a amiga nunca mais iria esquecer. Uma frase que só um homem profundamente apaixonado pelas mulheres poderia dizer:

– Deitada na cama, qualquer mulher é linda.

 

 

A lama

(9/7/2006)

 

Ela passava um fim de semana num hotel, em Mangaratiba, perto do Rio. Perto de um rio. Sim, porque o hotel ficava a poucos metros da foz de um rio largo, de águas cor de cobre, que desaguava no mar. E quando um rio deságua no mar, passa às vezes por um estado intermediário – que é o mangue. Pois havia um imenso manguezal nas cercanias do hotel e todas as manhãs, quando saía para dar sua caminhada, bem cedinho, a mulher apreciava aquela vegetação pitoresca, de raízes aéreas, compridas, se entrelaçando. No silêncio matutino, prestava atenção nos ruídos mínimos do manguezal, uma efervescência feita de pequenos animais, de caranguejo e lama, de folhas movidas pelo vento marinho. Adorava aquilo.

E, mais do que da paisagem e do som do lugar, gostava do cheiro. O cheiro de lodo era pútrido e doce, lembrando florestas decompostas, folhas úmidas, mundos desfeitos, fazendo a mulher pensar em momentos de transição na criação do planeta. E ela respirava fundo, fundo, enquanto seguia em sua caminhada matinal.

Foi só lá pelo terceiro ou quarto dia da temporada que começou a ter a sensação. Assim que virava a curva da pequena estrada onde fazia seu exercício, assim que entrava no trecho ladeando o manguezal, assim que o odor de decomposição lhe penetrava as narinas, sentia um estremecimento. Era uma sensação a um só tempo deliciosa e inquietante, como um prazer proibido que a chamasse. Começou a atravessar aquele trecho em passos cada vez mais lentos, até que um dia parou. Parou e caminhou até a beira da estrada.

Ali, naquele ponto, o manguezal era muito fechado, suas árvores de raízes entrelaçadas tinham as copas baixas e cheias, formando um mundo de sombra e umidade. Depois de olhar para um lado e outro, parecendo querer certificar-se de que não havia mais ninguém na estrada, a mulher agarrou-se a um dos troncos sinuosos e, baixando a cabeça, penetrou no mangue.

Pisou primeiro nos galhos, sobre eles caminhou, tentando esquivar-se dos cipós que a enredavam. E assim que penetrou o suficiente no manguezal, assim que se viu cercada por aquele mundo de raízes aéreas, flutuando acima da pasta viscosa e escura, soltou-se e saltou na lama. Suas pernas se enterraram nela até a altura das coxas. Por um segundo, fechou os olhos, ficou imóvel. E a sensação de prazer que teve foi avassaladora. Doce como o cheiro do mangue era aquele sentimento de perigo, de não saber o que ia acontecer enquanto continuasse ali, enterrada na pasta escura.

A lama era o desconhecido.

 

Página em branco

(16/7/2006)

 

Havia, muito antigamente, em algum ponto perdido de Portugal, um convento de freiras carmelitas conhecido por Convento Velho. Era uma construção imensa, que um dia já abrigara irmãs vindas das famílias mais nobres, sendo um privilégio viver entre suas paredes. Com o passar dos anos, a instituição foi decaindo, até chegar a um ponto em que as freiras passaram a ocupar apenas uma ala da construção, que de resto ficou abandonada. Mas, ainda que poucas, as irmãs continuaram uma tradição começada muitos séculos antes: ali, em meio àquelas montanhas azuis, cultivavam e teciam o mais puro e afamado linho de Portugal.

Era do Convento Velho que saíam os mais belos lençóis nupciais, usados por toda a realeza portuguesa, por nobres, príncipes e princesas. Por causa disso, por fazerem lençóis tão exclusivos, às freiras do Convento Velho era concedido um privilégio também muito especial: consumado o casamento, a família enviava de volta para o convento a parte central do lençol, contendo a mancha que atestava a virgindade da noiva. Esses quadrados de linho maculado eram colocados em quadros e pendurados nas paredes, tendo acima o nome da princesa à qual o lençol pertencera.

Formou-se assim, com esses quadros enfileirados, uma galeria, que passou a ser visitada pela nobreza portuguesa. Príncipes e princesas, e até reis e rainhas, vinham de toda parte para, com um silêncio reverente, quase sacro, percorrer aqueles corredores, tentando imaginar que histórias estariam contadas nas manchas, que augúrios e adivinhações teriam provocado. Mas, de todos os quadrados de linho havia um, no centro da galeria, que era de um branco imaculado, sem qualquer nódoa, e cuja placa, no alto, não trazia nome de princesa alguma. Porque o nome, não o pano, fora manchado – e não devia ser dito. Era diante desse que todos paravam por mais tempo, em meio a um silêncio opressivo. Pois nenhum outro quadro contava uma história tão tremenda.

Reproduzo aqui, com palavras minhas, esse conto da escritora dinamarquesa Karen Blixen (ou Isak Dinesen, como se assinava), cujo título é “Página em branco”. Li-o ontem à noite, véspera de escrever estas linhas, que são de despedida. E ele me fez pensar em quanta coisa está contida numa página não escrita, numa não página, de um não livro. Afinal, o branco é a soma de todas as cores. As possibilidades são infinitas.