A máquina do tempo

Na última Bienal do Livro, no Rio, havia um espaço de debates da Fundação Nacional do Livro Escolar, cujo auditório era em forma de máquina de escrever. O fundo da sala era formado por um painel com uma fotografia enorme de uma daquelas máquinas antigas e, diante da reprodução, os degraus da pequena arquibancada onde as pessoas se sentavam para ouvir as palestras formavam as teclas: eram degraus forrados de preto, com almofadas redondas, também pretas, tendo, cada uma delas, uma letra do alfabeto. Ou seja, para quem se colocava no palco, de frente para o auditório, a impressão era estar diante de uma gigantesca máquina de escrever.

Ao olhar para aquele cenário, lembrei da emoção sentida por mim quando, com oito ou nove anos, me sentei pela primeira vez diante de uma máquina assim. Era uma máquina de escrever das bem antigas, que pertencia ao meu avô, uma Royal, toda negra, com suas teclas redondas debruadas de metal prateado, a caixa principal tendo, com seus frisos e cantos redondos, um toque meio art déco. Na época eu não sabia nada disso, nem conhecia o significado de todos os seus detalhes, mas soube, sim – de imediato – que aquela máquina tinha um poder próximo do sobrenatural.

Lembro de ter pousado os dez dedos, todos de uma vez, sobre as teclas e fechado os olhos, invadida por uma sensação de reconhecimento, de reencontro, diferente de tudo que já sentira antes. Era como se a máquina, que sempre fora proibida às crianças, estivesse todo o tempo à minha espera – e me acolhesse.

Ao me sentar diante daquela Royal preta e pousar as mãos sobre as teclas, ela – a máquina – me reconheceu. Recebeu a ponta dos meus dedos e se deixou manusear, respondendo, a cada toque, com um movimento de seus pequenos braços de ferro, imprimindo, no papel que eu colocara no rolo, os sinais gráficos que eu escolhia. Maleável, cordata, companheira. Como se me convidasse para, no futuro, acionar seu mecanismo sempre que quisesse.

A sensação de reconhecimento que senti naquele dia ficou impressa em mim com tal força que, anos depois, passei a tentar interpretá-la. Uma das explicações que me vieram foi a de que eu sentira aquilo por ser uma pianista frustrada (quando era pequena, sempre quis aprender piano, mas, por um razão ou por outra, nunca aprendi). A sensação tátil dos dedos pousados sobre as teclas teria talvez despertado em mim a emoção, um lamento da não-pianista. Mas explicações como essa nunca me satisfizeram de todo. Porque o que eu tinha sentido diante da máquina do meu avô fora algo muito forte, quase uma epifania. Até que um dia eu entendi.

Um dia, quase trinta anos depois – eu me descobri escritora. Não foi gradual, aconteceu de repente, de uma hora para outra. Comecei a escrever ficção de forma compulsiva, movida por uma força maior do que eu, que me impediria de parar, mesmo que quisesse. E foi só então, ao me deixar levar por aquelas palavras que me dominavam, só então, em meio a sentimentos contraditórios, de prazer e dor – que entendi tudo. O encontro daquela manhã em que me vi diante da máquina do meu avô fora o prenúncio do que viria.

Eu não sabia, não podia supor, mas daquele momento em diante minha vida começava a se transformar. O longo caminho até que eu escrevesse meus primeiros textos começava ali. Como exclamou o barbeiro sanguinário de Fleet Street, no musical “Sweeney Todd”, de Stephen Sondheim, ao tocar aquelas teclas meus braços estavam, finalmente, completos.

Mesmo quando, um dia, a máquina também se transformou, quando suas teclas mudaram de formato e cor, quando o papel à minha frente se dissolveu em tela de cristal – eu não me importei. A sensação de intimidade permaneceu.

E hoje, quando olho para uma dessas máquinas antigas, eu me sinto transportada àquele momento no passado, o começo de tudo, como se a pequena caixa preta, com seu rolo e alavancas, fosse uma invenção saída de um conto de H. G. Wells, capaz de me conduzir a outra dimensão.

 

 

(Revista Florense)