A memória dos dedos

Passei outro dia por uma experiência estranha. Estava em casa de uma amiga que gosta de antiguidades e reparei em um lindo aparelho de telefone, daqueles que chamávamos JK (em homenagem ao presidente Juscelino Kubitschek), todo vermelho, lindo, sobre uma mesinha junto ao sofá. Peguei naquele objeto tão interessante e perguntei a ela se ainda funcionava.

– Claro. Quer experimentar?

– Quero.

Decidi então discar para minha filha, cujo telefone, claro, sei de cor.  Ergui o telefone, que tem o disco escondido no fundo, e enfiei o dedo no buraquinho correspondente ao primeiro algarismo do telefone da minha filha. Dei a volta até o fim, deixando o disco voltar a sua posição inicial, com aquele barulho salteado, tão peculiar, um verdadeiro expresso rumo ao passado. Mas, em seguida, parei. Tinha esquecido o número da minha filha.  Como era possível? Ligo para ela todos os dias, até mais de uma vez.

Fiquei olhando para o disco cheio de algarismos e para o meu próprio dedo indicador, inútil – até que, de repente, entendi o que estava acontecendo. Meus dedos se acostumaram de tal forma a escolher os algarismos em teclados digitais – na mesma ordem, na mesma posição – que eles, só eles, meus dedos, sabiam o número da minha filha. Eu não.

Foi uma sensação esquisita, essa de me sentir menos poderosa e auto-suficiente do que minhas próprias mãos. Fiquei tentando entender como isso começou. Talvez tenha sido há muito tempo. A própria máquina de escrever, precursora do computador, já me dava – quando aprendi a datilografar com os dez dedos, sem olhar – uma sensação semelhante. Com o advento do celular, então, tudo se acelerou. Se com os primeiros aparelhos celulares eu já digitava automaticamente, agora nem isso. Os celulares inteligentes, como o meu, têm suas listas de “favoritos” em que é só clicar no nome da pessoa com quem queremos falar para o aparelhinho já sair ligando.

Ainda com o telefone JK nas mãos, continuei parada, observando aqueles dedos, como se fossem seres alheios a mim. Lembrei então que, nas minhas aulas de teclado, muitas vezes tenho dificuldade de entender a pauta à minha frente, mas percebo que os dedos vão seguindo, tocando, acertando direitinho, quando nem eu mesma sabia que eles sabiam a melodia.

Então é isso. Existe uma coisa chamada a memória dos dedos. Vai ver que sempre existiu, os impulsos elétricos enviados do cérebro para nossos membros, pernas, braços, mãos, quando muito repetidos, formam caminhos conhecidos, já muito bem escavados, delineados, percursos que funcionam quase à nossa revelia. Mas agora, com esses aparelhinhos modernos, a coisa ficou mais gritante. Chega a ser um pouco assustadora. Dedos e mãos agindo por conta própria. Parece coisa do dr. Fantástico.

 

 

(Revista Seleções)