Aldir Blanc: pedras de toque refinado e louco

Em 1932, o compositor americano Ira Gershwin recebeu um Prêmio Pulitzer pelas letras das canções que compôs com seu irmão, George, para o musical da Broadway Of thee I sing, estreado em dezembro do ano anterior. Foi o Pulitzer de Arte Dramática – mas bem que poderia ter sido o de Literatura.

Há, e sempre houve, grandes poetas entre os letristas, embora estes nem sempre sejam encarados como tal. Talvez, ao ouvir uma canção, nossos sentidos fiquem divididos entre a melodia e a letra, e isso nos impeça de absorver por inteiro a “poesia” das canções.

Em seu livro Pedras de toque da poesia brasileira, lançado em 1996, José Lino Grünewald teve a sensibilidade de incluir vários compositores da música popular entre os criadores de versos de grande beleza ou impacto na poesia brasileira. Pena que, talvez por desconhecimento, não tenha incluído nenhum verso de Aldir Blanc, talvez o mais carioca dos nossos poetas.

Outro dia, enquanto ouvia um disco de Moacyr Luz, Mandingueiro, comecei a acompanhar as letras pelo encarte e então – só então – senti penetrar em mim a beleza de alguns versos. A canção era o Choro das ondas, parceria de Luz e Aldir, e os versos eram:

Do teu corpo saciado/

Debruçado sobre mim/

Brotam risos estrelados/

Iguais ao som de um bandolim./

Entre as pernas, em teus pêlos,/

Um rubor de flamboyant/

Faz tua ilha Paquetá de manhã.

Fiquei com Aldir na cabeça. Juntei então todos os discos que pude, contendo suas parcerias (com João Bosco, Moacyr Luz, Guinga e muitos outros – até Glenn Miller!) e comecei a folhear os encartes. Peguei também o livro de letras Blanc A poesia de Aldir (Irmãos Vitale editores, coordenação de Roberto Moura, produção de Luciano Alves). É um festival de pedras-de-toque – e foi me dando uma vontade danada de propor seu nome para o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

Sem querer, acabei “estudando” os versos de Aldir e fiz, meio de brincadeira, uma divisão temática que me levou a quatro itens essenciais em sua obra: (1) imagens líricas; (2) ode aos malditos; (3) nonsense; e (4) alma suburbana. As imagens líricas são inúmeras – e belíssimas. Como em Maçã tatuada (com Moacyr Luz):

A pele onde um homem que é nada/

Pensa que é capaz de tudo/

Ou em Cegos de luz (com Ivan Lins):

Teu vulto me incendeia,/

Minha luz te escurece,/

Toda treva clareia/

E o amor, que é cego, agradece/

Ou, ainda, em Quatro tempos (também com Luz):

Meu samba virou cavalo branco/

Galopando em colcheias pelo prado/

Semínimas flores se espalhando/

Na clave de um sol transfigurado/

No lirismo de Aldir, há muitas imagens que, como em Choro das ondas, trazem uma Paquetá idílica que deve ter feito parte de sua vida. A referência mais óbvia é a “queda de patins em Paquetá”, na história de amor que acaba em tédio, em Latin lover (com João Bosco). Mas há outra de grande delicadeza em Santo Amaro (com Luiz Cláudio Ramos e Franklin Correa da Silva Neto):

Pra cada dor um sol maior /

Um lá sereno, a harmonia do Ameno/

O amor do Resedá/

Eu, funcionário aposentado,/

Coração não conformado/

Antigo e novo, feito lua em Paquetá/

É claro que os conceitos estão misturados nas músicas e, por exemplo, se há lirismo no fascínio de um homem por uma mulher, ele pode conter uma gota de absurdo, uma pitada de maldito. Como em Simples e absurdo, com Guinga:

O olho claro no cabelo cor da noite,

Rio branco feito açoite no olhar de paranóia./

Aqui é cúmplice o que é simples e absurdo:/

Esmeralda no veludo, onça negra com jibóia/

Há também lirismo e maldição na linda Aquário (com Moacyr Luz no primeiro disco deste, de 1988):

Quando ele me invade/

Num desejo calmo e frio/

Eu que delirava/

Com a brutalidade e o cio/

Ofereço a face/

E adoto um disfarce/

De rancor e pena/

No quarto, Maria/

Na calçada, Madalena/

Na verdade, os personagens malditos estão por toda parte na obra de Aldir. São seus doces fantasmas, seus mais íntimos parceiros. E é ele próprio quem diz:

Fiz essa canção pela solidão e a tristeza do palhaço (…)/

Pro ilusionista que se enforcou na estola e viu na cartola o mar…/

Pro atirador que voltou a faca contra a própria jugular/

(de Pequeno circo íntimo, com Ivan Lins e Paulo Emílio).

E é ele também quem confessa:

Quem me vê sentado/

Atrás dessa mesa de escriturário,/

não vê o tarado, o louco, sanguinário, /

o bárbaro sem véu, o estripador cruel/

– só para nos revelar que faz tudo isso por amor (em Retrato cantado, com Márcio Proença).

O nonsense é outra marca de Aldir, presente inclusive em seu verso mais famoso:

Caía a tarde feito um viaduto/

(e pode haver maior “pedra-de-toque”?).

Essa utilização de metáforas inusitadas nos transmite uma certa inquietude, uma sensação de ruptura e, num primeiro momento elas podem parecer absurdas, mas trazem consigo uma enorme carga lírica. “Sou rolimã numa ladeira”. “É um risco-Brasil de mulher”. “Sou a sétima corda e passo devagarinho um Rodouro no coração”. “Meu peito é uma lona armada, nostalgia não paga entrada”. “O terno  branco parece prata”. “Estrela é só um incêndio na solidão”.

Mas talvez nenhuma característica seja mais marcante em Aldir do que sua alma suburbana. Ela se confessa em Carta de pedra (com Guinga):

Prezado amigo, escrevo pra esclarecer/

Que, mesmo antes de nascer,/

Meu coração se fez humano por ser suburbano/

E está em muitas de suas mais conhecidas parcerias com João Bosco: no camelô que vem vender anel, cordão, perfume barato na cena do crime. Nos pais-de-santo, paus-de-arara, passistas, flagelados, pingentes, balconistas que povoam seus versos. No falso brilhante, na ponta do torturante band-aid no calcanhar e também na sobrancelha feita a lápis, no perfume da Coty, no discurso de agradecimento da Miss Suéter.

E, se é suburbano, o coração de Aldir Blanc é sobretudo carioca. É o que ele mostra em Canário da terra (com João de Aquino): Bomba de Flit, baile no Elite, schinite…

Taí minha herança, e dela não abro mão:/

Canário da terra é meu coração./

Sou do Rio de Janeiro, brasileiro…/

Ou em Só dói quando eu Rio (com Moacyr Luz):

Só fico à vontade,/

Na minha cidade,/

Volto sempre a ela/

Feito criminosa/

Doce e dolorosa,/

A minha história escorre aqui/

E é essa mesma alma carioca e suburbana de Aldir que nos chega carregada de humor (outra marca dele), presente principalmente em seus sambas, que são inúmeros e deliciosos. Mais uma vez os conceitos se misturam, havendo quase sempre um tempero de nonsense em meio às tiradas de humor. Como nesses versos de Praça Mauá: que mal há?, cuja melodia lembra um samba-enredo de antigamente:

Em São Francisco da Prainha eu gostei/

De uma cabocla da Pedra do Sal/

Que, incentivada pela grande Nora Nei,/

Tentou a vida de cantora ali na Rádio Nacional/

Seu nome: Conceição, feito a igreja/

Fazia um peixe com cerveja/

Atrás da Sacadura Cabral/

São associações impensáveis, mas que nele surgem com grande naturalidade (seu nome: Conceição, feito a igreja), e são também imagens que refletem o espírito carioca, fazendo de Aldir um dos grandes cronistas do Rio. E, como em seu coração suburbano o que não falta é batuque, encerro esta crônica-artigo-resenha (aqui, também, os conceitos se misturam) com os versos de Gotas de samba (outra com Moacyr Luz), que parecem falar da própria obra de Aldir. Nesse sentido, são versos  proféticos:

Samba é sangue em gota/

Na pedra dura/

Não pensando em ficar, perdura./

 

 

(Revista Argumento)