É uma fria manhã de novembro e estou parada diante da TerrorHáza – a Casa do Terror, em Budapeste. Não sei bem o que vou encontrar lá dentro. Só sei que é um museu, e que no prédio funcionou a sede das polícias políticas da Hungria, tanto no regime nazista quanto no comunista. Rua Andrássy, 60, do lado direito de quem desce da Praça dos Heróis em direção ao Danúbio.
É uma construção cinzenta, de aparência sóbria, quase comum. Mas, ao olhar a fachada, um nome surge em meu pensamento: Inês. Inês, de nome tão forte, Inês, que não é morta, mas que foi ao Inferno e voltou para contar a história, como personagem de Dante. Inês Etienne Romeu, ex-guerrilheira da Var-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), ex-companheira de luta armada da presidente Dilma Roussef (por quem foi condecorada). Inês, que ficou presa durante quase nove anos e passou três meses na casa de tortura do delegado Sérgio Paranhos Fleury, em Petrópolis. A única, entre os prisioneiros, que saiu viva de lá. É nela que penso.
No corredor da entrada, de teto abobadado e colunas, vejo que em sua extremidade há dois estandartes: um preto, outro vermelho, um trazendo a cruz gamada do Partido Nazista Húngaro, outro a estrela-símbolo do comunismo. E, dobrando à esquerda, chego ao saguão principal.
A visão que tenho é um choque. No pátio interno, iluminado por uma clarabóia, o chão é um espelho d’água, uma espécie de piscina rasa de granito preto. Sobre ela, bem no centro, está pousado – sem que eu possa imaginar como foi parar ali – um tanque de guerra. Um tanque de verdade, o metal cinzento amassado, parecendo desgastado por uma batalha, por muitas batalhas, suas esteiras paradas sobre a água e o canhão apontado para o alto da construção de três andares.
Olho para cima, na direção da luz. A única parede cega do pátio é, toda ela, de alto a baixo, forrada por rostos, em alto-contraste. Homens e mulheres. As vítimas do terror. A cenografia criada ali tem o efeito de um soco no peito. O visitante já forma, de saída, uma ideia do que virá. Baixo então a vista para o folheto que tenho nas mãos, apanhado de um suporte de acrílico na entrada. E leio, ao acaso, uma frase: “Por tempo demais, por muitas décadas, passamos por aquele prédio de olhos baixos, com passos apressados, sabendo que suas paredes escondiam crimes monstruosos, um mar de sofrimento”, dizia. Talvez isso explique o que estou sentindo. O lugar parece ser mais do que um museu. É um memorial, um santuário. Por isso Inês está ali comigo.
Conheci Inês Etienne Romeu em 1977, presa no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, condenada a prisão perpétua. Na época, a situação já tinha melhorado bastante para os presos políticos (a Anistia viria dali a dois anos) e a ala do presídio onde Inês vivia era confortável. Mas, sempre que olhava para ela – com seu jeito alegre, o humor ferino –, nas visitas mensais ou quinzenais que lhe fazíamos (eu era casada com o irmão dela, Paulo), não conseguia deixar de pensar no que Inês tinha passado.
Inês foi presa em 1971, em São Paulo, e durante três meses esteve desaparecida. Foi dada como morta e a família já procurava seu corpo quando ela reapareceu, destroçada, pesando pouco mais de 30 quilos. É possível que seu reaparecimento tenha sido uma tentativa, por parte dos paramilitares, de forjar uma fuga e afinal assassiná-la, mas algo deu errado no plano: Inês foi presa, dessa vez oficialmente, e isso a salvou. Só assim pôde um dia contar a história. E revelar onde estivera, durante aqueles três meses, entre 8 de maio e 11 de agosto de 1971. A casa de tortura de Petrópolis.
Petrópolis, Budapeste. Milhares de quilômetros, dois hemisférios, épocas diversas. Eu me sinto dividida, estou aqui e lá, enquanto continuo minha visita ao museu húngaro.
Na primeira sala da TerrorHáza, repleta de monitores, onde se desenrolam cenas de atrocidades, de terror e dor, há também uma divisão: os monitores estão enfileirados em duas paredes, uma vermelha, outra negra. Nazismo, comunismo. Dois regimes antípodas, mas igualados na opressão.
O prédio da rua Andrássy já era usado pelo Partido Nazista Húngaro desde 1937, mas foi só em 1944, quando Hitler ocupou o país e os nazistas tomaram o poder, que começaram as torturas em seus porões. Já os comunistas tiveram mais tempo. Assim que os tanques soviéticos entraram em Budapeste, em 1945, eles tomaram o prédio, e a polícia secreta do novo regime de força se instalou ali. O controle soviético sobre a Hungria – reforçado após a revolta frustrada de 1956 – só terminaria completamente em 19 de junho de 1991, quando o último soldado russo, Viktor Silov, cruzou a fronteira e foi embora.
As salas se sucedem, muitas delas envolvendo o visitante com sons e imagens que são uma viagem no tempo. Diante de uma mesa de reuniões, sob uma luz azulada e irreal, a figura sombria de Ferenc Szálasi, líder do Partido Nazista Húngaro, discursa. Em um salão de paredes escuras, cujo chão é um gigantesco mapa da Europa, há vários cones espetados, como piões, que são na verdade vitrines. E, dentro delas, há objetos que pertenceram aos prisioneiros húngaros levados para os campos soviéticos de trabalhos forçados. Missais, lenços, cordões, cartões de identificação, objetos banais e por isso mesmo pungentes em sua humanidade.
E há também a sala dos julgamentos: paredes, chão, bancos, toda ela, de cima a baixo, forrada de páginas de dossiês e processos, mostrando que a burocracia também tortura, também mata. Os monitores dessa sala exibem vídeos dos julgamentos sumários feitos após a revolta de 1956, incluindo o do ex-primeiro ministro húngaro Imre Nagy, que a princípio foi conivente com os soviéticos, mas depois tentou lutar pela libertação da Hungria e morreu por causa disso.
Seguindo as instruções do folheto que tenho nas mãos, percorro o museu de cima para baixo, do terceiro andar para o térreo. Quando chego ao nível da rua outra vez e já me preparo para ir embora, percebo que ainda falta um andar a ser visitado: o subsolo. É lá que ficam as celas. Os porões da tortura.
Quando o museu Casa do Terror foi inaugurado, em 2002, o prédio da rua Andrássy já tinha deixado de abrigar a polícia política há quase quarenta anos. Não havia mais as celas subterrâneas. Mas a reconstrução foi perfeita.
A umidade transpira das paredes, o lugar tem um cheiro peculiar. Percorro seus corredores com o coração fechado, a respiração difícil. Há sombras por toda parte. Nas solitárias, nas celas de paredes encardidas, nos cubículos forrados com sacos de algodão – para que o som seja abafado. Tudo é real, o lugar nos envolve. Há um impacto. Na TerrorHáza, há muita informação, mas há também sentimento, de forma que o visitante saia de lá comprometido com o que viu. Não há como ficar imune. O lugar é um libelo em favor da liberdade de expressão. Contra a tortura, a bestialidade humana.
Cruzo um gradil. E o pensamento em Inês volta com mais força. Lembro do dia de sua libertação, em agosto de 1979. A multidão do outro lado do portão de ferro, os repórteres, os manifestantes. Toda a família tinha entrado para sair junto com ela. Quando cruzamos o portão, muitos de nós chorávamos. Inês, não. Lá dentro, ouvi quando ela disse que não ia chorar, porque chorar seria uma demonstração de fraqueza. E ela saiu caminhando serena, sorrindo, batendo palmas.
Dois anos depois, reunidas as provas necessárias, ela viria a público revelar a localização da Casa de Petrópolis, divulgar a tortura sofrida, denunciar o médico que a mantivera viva para que os interrogatórios continuassem. Na ocasião, as Forças Armadas soltaram nota dando a entender que era uma tentativa de revanchismo. Exército, Marinha e Aeronáutica de um lado e, do outro, uma mulher sozinha. Uma sobrevivente.
Volto à superfície, a visita acabou. De volta à rua Andrássy, olho para o prédio cinza, para a marquise onde há imensas letras vazadas, ao contrário. Quando o sol se projeta por ali, aparece escrita na fachada a palavra “terror”. Hoje, quando a discussão sobre a punição aos torturadores do regime militar tem voltado à pauta no Brasil, eu me pergunto se não seríamos um país melhor se tivéssemos transformado a casa de tortura de Petrópolis em uma TerrorHáza.
(Folha de S. Paulo)