Cena 1: numa noite chuvosa, uma mulher jovem, arrastando a filha pequena pela mão, atravessa um pátio escuro, um estacionamento quase deserto. As duas parecem inquietas. A mulher divisa o próprio carro, lá longe, e apressa o passo. Mas de repente, percebe a presença de um homem, que está à espreita. As duas, mãe e filha, saem correndo, em desespero. Mas não gritam, tudo está mergulhado no mais completo silêncio.
Cena 2: uma menina caminha sozinha por um descampado quando vê cair do céu, lentamente, uma folha de papel em branco. Logo, a cena é substituída por outra, em que as pessoas lotam as ruas de uma cidade. Todas olham para cima, admiradas, e vêem cair do céu folhas de papel em branco. Milhares delas. Mais uma vez, tudo se dá em silêncio. Há nessa cena uma sugestão inquietante, que me faz lembrar do 11 de setembro em Nova York, quando folhas da papel ou seus fragmentos choveram sobre a cidade depois que as torres gêmeas foram pulverizadas.
Cena 3: como num filme de ficção científica, baseado em George Orwell ou H. G. Wells, vejo várias pessoas tentando entrar ou sair dos vagões de um trem, mas noto que cada uma delas está algemada a outra pessoa, um duplo seu, alguém com quem está fadada a compartilhar a vida. Esse “outro” ao qual as pessoas estão acopladas precisa ser arrastado, é um estorvo. Qualquer movimento desses seres estranhos e siameses se torna assim penoso, aflitivo. É um mundo de pesadelo. E, como sempre, silencioso.
Cena 4: um jovem de aspecto muito frágil está perdido numa floresta, no meio de uma tribo selvagem. Tenta, a custo, estabelecer contato com os nativos. Expressa-se por mímica, procura sorrir, mas noto que seu semblante revela uma tensão: sabe que se não tiver sucesso, sua vida corre perigo. De repente, algo dá errado. Os selvagens cercam o jovem com olhares gulosos e ele já não tem dúvida de que está entre canibais. Sai correndo em desespero. Tudo isso se dá sem que um único som seja emitido.
Cena 5: uma família está lanchando na cozinha. Primeiro, só os pais, depois também os filhos, que vão chegando. Têm todos um ar de grande satisfação. Mas não notam que no fogão, atrás deles, surge um perigo: uma chama, pequena a princípio, mas que logo se irá alastrando. A família continua lanchando, sem nada perceber. Toda a cena se dá, como as outras, em silêncio. O fogo se encorpa, vai tomando tudo. E eles ali, inocentes, felizes. As chamas começam a devorar a cozinha, mas não há fumaça, não há cheiro. É um fogo alienígena, traiçoeiro. Quando a família perceber, será tarde demais.
Essas cinco cenas que acabo de descrever poderiam ser, cada uma delas, o começo de um filme de terror ou ficção científica, daqueles bem trash, ou filme B, como chamam os cinéfilos. Um filme mudo, porque a ausência de som é um ponto comum entre todos, embora não o único. A outra coincidência é que, em todos os casos, são cenas que transmitem inquietação. O mundo que mostram não é um mundo tranquilo, charmoso e pacificado. Ao contrário. É um território de terrores sutis, à espreita. Em alguns casos, há a sugestão de desastre iminente. Em outros, a cena é permeada por um sentimento de absurdo, de algo que não se encaixa – o que também traz incerteza.
Mas nenhuma dessas cenas pertence a um filme de terror. São anúncios. Simples e inocentes anúncios de TV.
E se são mudos é porque é assim que os vejo, com o botão do controle-remoto no off – pois tenho o hábito de tirar o som da televisão na hora do intervalo comercial (eles gritam demais!).
Tudo bem, você dirá, são brincadeiras. Mas por que essa aura tão desagradável? Já houve quem me dissesse que as cenas me parecem mais inquietantes porque eu as assisto sem som. Não sei, pode ser. Mas o fato é que elas me incomodam. Ainda mais porque fazem parte do cotidiano de todos nós, entram por nossas retinas diariamente, até várias vezes por dia. Tive um acupunturista que me dizia para tomar cuidado com aquilo que me entra pelos olhos, nariz e boca.
“É tudo alimento”, dizia.
Às vezes, assistindo aos comerciais de TV, penso nele. E tenho a sensação de que o mundo se transformou numa grande história de terror – de filme B.
(Revista Seleções)