Quando o assunto é literatura inglesa do século XIX – e muitos são os mestres desse período –, temos de tirar o chapéu para uma família, a Brontë. Todos os membros desse clã de Yorkshire, na Inglaterra, tinham pendores literários e só uma coisa foi capaz de afastá-los de seu ofício: a morte. Dos quatro irmãos que chegaram à vida adulta, três foram grande escritoras – Emily, Anne e Charlotte – e o outro, o único homem, Branwell, era poeta, embora desconhecido.
A mais famosa das irmãs Brontë é Emily, autora de O morro dos ventos uivantes, mas Anne não fica nem um pouco atrás em matéria de qualidade. E Charlotte, autora deste livro que você tem nas mãos, Jane Eyre, é dona de um estilo arrebatador. Para mim, é a melhor das três.
E se você pensa que ler um romance escrito por uma mulher há quase duzentos anos é uma experiência “água-com-açúcar”, atenção: violência, ódios, maus-tratos a crianças, bigamia e loucura são alguns dos ingredientes desta obra-prima. Obra-prima, sim, sem exagero. Como muitos grandes escritores do século XIX – esse século tão fértil para a literatura, quando se firmaram o romance e o conto –, Charlotte Brontë tem um domínio absoluto da narrativa. Não há espaços frouxos, tudo se encaixa, o ritmo não cai.
Quando pensamos que está tudo bem, que é hora de relaxar, ela nos faz uma surpresa. Guiados pelas mãos firmes de Brontë, vamos acompanhar a saga da pequena órfã Jane, da infância até a vida adulta, quando precisará de toda sua fibra para superar as mais terríveis provações. Prepare-se. Você, leitor, vai rir e chorar com ela. E mais: será envolvido por sua história quase sem perceber.
Ler um livro escrito no século XIX é uma experiência parecida com viver – começa devagar.
Durante algum tempo, somos apenas apresentados, de maneira detalhada, aos personagens, aos lugares, a todo o meio-ambiente que servirá de pano de fundo para a história. Tudo parece feito como se os escritores tivessem todo o tempo do mundo (e tinham mesmo). Por isto, para mergulhar nesse universo literário, devemos ser generosos e nos deixar transportar para lá sem pressa, para esse novo tempo e espaço em que cenários e personagens são tecidos como uma tapeçaria de pontos finíssimos.
Mas não tenha dúvida: de repente, quando menos esperamos, descobrimos que já não somos nós mesmos, que já não estamos no século XXI, que agora de fato fazemos parte daquele mundo – tão diverso do nosso – e sentimos em toda intensidade os dramas e alegrias dos personagens que o compõem.
E, quando isso acontece, dá-se a sensação rara que só os grandes livros trazem: a vontade danada de chegar em casa porque o livro nos espera; a impossibilidade de parar de ler, embora haja sempre algum compromisso nos esperando ou alguém gritando que o jantar está na mesa; aquela avareza de que somos acometidos para que o livro não acabe tão cedo, economizando na leitura, lendo o mais devagar possível para retardar ao máximo a chegada do fim; e, quando não tem mais jeito e o livro acaba mesmo, aquela sensação de vazio, de estar desacompanhado. Aquela sensação de saudade.
Tudo isso aconteceu comigo quando li pela primeira vez Jane Eyre. A riqueza dos personagens é tal que, em pouco tempo, eles deixam de ser personagens e saltam para a vida real. Têm alma, estofo, verdade. São como qualquer um de nós, não importa se um ou dois séculos nos separem. E por isso mesmo são eternos.
No caso de Jane Eyre, essa sensação de realidade torna-se ainda mais forte se pensarmos que o livro se baseia, em grande parte, em experiências vividas pela autora: há muito de autobiografia, por exemplo, nas descrições terríveis que Charlotte Brontë faz dos primeiros anos de vida da pequena Jane Eyre.
Charlotte Brontë nasceu em Thornton, Yorkshire, em 1816. Filha de um clérigo da Igreja Anglicana, foi a terceira criança em uma família de seis filhos (cinco meninas e um único menino). Quando estava com cinco anos, Charlotte ficou órfã de mãe e seu pai botou uma tia para cuidar das crianças. Mas as quatro meninas mais velhas – Maria, Elizabeth, Emily e a própria Charlotte – foram mandadas para o colégio interno. E aí começou o drama maior.
O colégio clerical de Cowan Bridge, em Lanchashire, para onde elas foram, tinha condições tão adversas e um regime tão cruel, que duas das irmãs de Charlotte – Maria e Elizabeth – morreram de tuberculose. Foi Cowan Bridge a inspiração para o colégio de Lowood, criado por Charlotte Brontë para ambientar algumas das atribulações vividas por Jane Eyre. E esse é apenas um dos pontos de coincidência entre ficção e realidade, já que Charlotte também trabalhou como professora e também viveu um amor impossível, com um homem chamado Constantin Heger, que era casado.
O romance Jane Eyre foi publicado por Charlotte Brontë em 1847, sob o pseudônimo masculino (algo comum no século XIX) de Currer Bell e foi um enorme sucesso. Mas os anos seguintes não foram felizes para a autora: no espaço de apenas dois anos (1848,1849) seu irmão Branwell morreu de alcoolismo (há quem afirme que estava tuberculoso) e as duas irmãs que lhe restavam, Emily e Anne, também morreram – estas, sim, de tuberculose.
Sete anos depois, quando já estava com quase 40 anos, Charlotte se casou com Arthur Bell Nicholls e engravidou, mas jamais chegaria a dar a luz. Como uma heroína trágica, morreu grávida, em março de 1855, de causas não muito claras: alguns autores afirmam que foi desnutrição e desidratação provocadas pela náusea da gravidez, mas outros dizem que foi, também, tuberculose. A ser verdade, a mesma doença teria matado os seis filhos da família, como se fosse uma maldição. Que história, não? Parece coisa que a gente só encontra nos livros.
(Introdução do livro Jane Eyre – Editora BestBolso, 2011)