O poeta que morreu de amor pela morte
O escritor americano Ambrose Bierce, que morreu no início do século passado, tinha uma obsessão: em diversas de suas histórias, ele descrevia um homem caminhando sozinho por uma floresta ou um deserto e que de repente desaparecia sem deixar rastro. Como se tivesse resvalado numa fenda do tempo ou sido tragado por um universo paralelo, esse homem sumia para sempre. Era uma morte sem corpo e sem testemunhas. Num dia qualquer de 1913, quando estava com 71 anos, Bierce, que além de escritor era jornalista, anunciou que iria embrenhar-se pelo México a fim de documentar a revolução de Pancho Villa – e nunca mais foi visto. Como seus personagens, desapareceu para sempre. Uma morte sem corpo e sem testemunhas.
Experiências como esta, ainda que nem sempre com um desfecho tão dramático, são comuns entre criadores, que muitas vezes falam de coisas que ainda não aconteceram. No ano passado, escrevi um “Conto mínimo” sobre isso depois de assistir na televisão a um documentário sobre as vítimas do World Trade Center. Entre elas, estava um jovem escultor, cujas peças de bronze eram imagens de homens com o corpo todo cravado de estacas e de aviões, como se ele previsse a própria morte. Muitos anos antes dele, em 1948, o jornalista E. B. White, em artigo feito para a revista “Holiday” e intitulado “Aqui está Nova York” (que saiu recentemente em livro no Brasil pela José Olympio), escrevia:
“A cidade, pela primeira vez em sua história, ficou destrutível. Uma simples revoada de aviões pouco maiores do que gansos pode rapidamente acabar com essa ilha da fantasia, queimar as torres, desmoronar as pontes, transformar as galerias do metrô em câmaras letais, cremar milhões. A suspeita da mortalidade faz parte agora de Nova York: no som dos jatos sobre nossas cabeças, nas manchetes pretas da última edição.”
Esse estranho poder de premonição – ou seja lá que nome tenha – está presente, em maior ou menor grau, na vida dos que lidam com qualquer forma de arte. Mas talvez poucos exemplos sejam mais contundentes do que o do poeta e crítico Mário Faustino, cuja morte completa este mês quarenta anos. O único livro de poemas que ele deixou, agora em nova edição, já trai no título (O homem e sua hora) a preocupação com a morte, um de seus temas centrais. Mas Faustino foi muito além. Ele, cujo corpo jovem seria destroçado no ar, na explosão de um avião sobre os Andes, na madrugada de 27 de novembro de 1962, fez de certas imagens uma obsessão – imagens que remetem, inevitavelmente, ao tipo de morte que o esperava.
Quando Faustino morreu, seus leitores se espantaram ao ver como ele parecia prever nos mínimos detalhes o que aconteceria, principalmente nos versos de dois de seus poemas mais famosos: “Mito” e “Sinto que o mês presente me assassina”. No primeiro, ele dizia:
“Os cães do sono ladram/ Mas dorme a caravana de meu ser;/ Ser em forma de pássaro/ Sonora envergadura/ Ruflando asas de ferro sobre o fim/ Dos êxtases do espaço,/ Cantando um canto de aço nos pomares/ Onde o tempo não treme,/ Onde frutos mecânicos/ Rolam sobre sepulcros sem cadáver;/ E sonho outros planaltos/ Por mim sobrevoados na procela;/ E sonho outras legendas/ Em mim argamassadas pelo vento,/(…)/ Globo de ásperos pólos,/ Continentes de medo/ E mares onde o sangue é trilha e nódoa;/(…)/ E enquanto nuvens quedam/ De incenso carregadas, de semente/ Levanto-me e estrangulo/ O ato de nascer que me divide/ Em morna derrisão/ Disforme difidência de um presságio;/(…)/ Os cães do sono calam/ E cai da caravana um corpo alado/ E o verbo ruge em plena/ Madrugada cruel de um albatroz/ Zombado pelo sol”.
Em “Sinto que o mês presente me assassina” – poema cujo título é por si só inquietante – Faustino é ainda mais direto:
“Sinto que o mês presente me assassina,/ Corro despido atrás de um cristo preso,/ Cavalheiro gentil que me abomina/ E atrai-me ao despudor da luz esquerda/ Ao beco de agonia onde me espreita/ A morte espacial que me ilumina”.
Morte que continua sendo anunciada em outros poemas, como aquele que dá título ao livro:
“Eis a quinta estação, quando um mês tomba,/ O décimo-terceiro, o Mais-que-agosto,/ Como este dia é mais que sexta-feira/ e a Hora mais que sexta e roxa”.
E mesmo nos poemas que parecem tratar de questões diversas o leitor é atingido de quando em quando por pontadas de origem imprecisa, como se a morte se infiltrasse nos versos.
“Fiz de um saco de prata o meu campo de sangue./ Meu desespero é brejo onde os restos borbulham” ou “Lá vi o pó do espaço me enrolando/ Em turbilhões de peixes e presságios”.
Ou ainda:
“(…) bestas, bestas/ Aladas pairam, à hora de o futuro/ Fazer-se flama, e a nuvem derreter-se/ Em cinza de presente (…)”.
São trechos que parecem permeados de premonições, às vezes perdidos no meio dos versos, como : “no céu donde a noite rui”, “mortalhas no oriente, e no nascente” ou “o arcanjo incendiado”. Reduzindo ainda mais, a sensação inquietante parece mesmo emanar de palavras soltas, como “morte”, “noite”, “cinzas”, “pássaros”, “alado”, que surgem e ressurgem nos poemas de Faustino, reforçando a impressão de um presságio.
Num de seus muitos estudos sobre a obra do poeta, de quem foi o maior amigo e responsável pela sobrevivência de sua memória, o crítico Benedito Nunes observa que “na concepção poética de Mário Faustino há uma permanente interação entre a poesia e a realidade”. Segundo Nunes, o poeta só admite uma substância, a palavra, através da qual “o mundo se verbaliza e o verbo se ‘mundifica’”. E é esse arco ligando poesia e realidade, tão transparente em Faustino, que talvez explique as antevisões contidas em seus versos. Como se, rompidas as barreiras de tempo e espaço, passado e presente, papel e real, a morte do poeta existisse desde sempre. E, mais do que isso, como se ele estivesse tão consciente da própria morte que dela se regozijasse. O que talvez explique os belos versos finais de seu poema “Romance”:
“Tão fino o Anjo, e a Besta/ Onde montei tão serena,/ Que posso, Damas, dizer-vos/ E a vós, Senhores, tão servos/ De outra Festa mais terrena – Não morri de mala sorte,/ Morri de amor pela Morte”.
(Revista Argumento)