No epicentro da História

Os grandes cafés da Europa Central

Em outubro passado, a Unesco reconheceu os cafés vienenses como um patrimônio imaterial. Com razão. A instituição dos cafés está para Viena como os botequins estão para o Rio. Sempre foram – e de certa forma continuam sendo – grandes espaços democráticos, onde pessoas de várias camadas sociais se encontram e discutem de tudo, do futebol, da música ou da arte aos grandes caminhos da humanidade.

Não só em Viena, mas também em várias capitais da Europa, os cafés são instituições. Visitei há pouco três cidades onde isso acontece, todas na Europa Central: a própria Viena, além de Praga e Budapeste. E descobri que, nesses lugares, uma ida a determinados cafés não é só a oportunidade de fugir do frio, saborear uma gostosa xícara de café e uma torta especial. É muito mais: é a sensação de estar no epicentro da História.

Em Praga, uma dessas instituições é o Café Louvre, na avenida Národní. Aberto em 1902, o Louvre fica no segundo andar de um prédio largo, de linhas clássicas, e chega-se a ele subindo por uma escadaria de mármore com corrimões em estilo art nouveau. Assim que você entra, vê-se diante de um dos grandes salões (são vários) cor de salmão, com arcadas e cortinas de tecido, dando para as salas de bilhar. O jogo de bilhar faz parte de alguns dos mais famosos cafés da Europa Central e muitos têm também um piano, para alegrar as tardes frias.Mas quem entra em um café como o Louvre tem outras coisas no que pensar. Porque aquelas paredes assistiram a revoluções, no bom e no mau sentido.

No início do século XX, o Louvre era frequentado pelo escritor Franz Kafka e por seu amigo Max Brod, ele próprio também escritor, além de responsável por difundir a obra de Kafka (este, ao morrer de tuberculose, aos 41 anos, deu ordens a Brod para que destruísse todos os seus manuscritos, e o amigo desobedeceu). Entre 1911 e 1912, quem frequentou muito o Louvre foi Albert Einstein, então professor na Universidade Germânica de Praga. Anos mais tarde, já nos anos 20, foi a vez do escritor tcheco Karel Capek, autor do livro cult “A guerra das salamandras”.

O Louvre também foi um ponto importante para o movimento de emancipação feminina na Praga da belle époque, tendo sido um dos primeiros cafés frequentados por mulheres. Mas em 1948, com a chegada dos comunistas ao poder, a história do Louvre foi interrompida: o café foi invadido, depredado (móveis foram atirados pela janela) e só seria reaberto em 1992, três anos depois da queda do Muro de Berlim.

Esta é, aliás, outra característica dos cafés da Europa Central: muitos deles ficaram fechados por quarenta, cinquenta anos, sendo reabertos nos mesmos moldes, com o mesmo nome e muitas vezes com o mesmo aspecto de antes, num movimento de nascimento-morte-renascimento que nos faz refletir sobre a estupidez (e a capacidade de se reinventar) do ser humano.

Outros dois cafés espetaculares da capital tcheca são o Slavia e o Europa, ambos resistindo, de um jeito ou de outro, há muitas décadas. O primeiro (fundado em 1884), embora ainda mais antigo do que o Louvre, foi totalmente redecorado nos anos 30 e por isso é em estilo art déco. Fica diante do Teatro Nacional e à beira do rio Moldava, que corta ao meio a cidade de Praga, da mesma forma como o Danúbio faz com Budapeste (aliás, as duas cidades têm geografias muito semelhantes).O estilo art déco talvez dê ao Slavia um ar mais moderno, mas o visitante pode estar certo de que ali também é um território histórico: o café foi um point literário importante na Praga de 1900, sendo frequentado, entre outros, por Kafka, Brod e Rainer Maria Rilke.

Já o Europa se mantém praticamente como nasceu, em 1906: em estilo art nouveau (como é o prédio inteiro do Hotel Europa, em cuja frente fica o café), mantém as mesmas paredes forradas de madeira escura e mármore cor de caramelo, as luminárias de cristal e cobre, o vão oval em torno do qual fica o mezanino, o piano. Há até um certo ar de decadência no ambiente, mas isso só faz com que você se sinta transportado para dez ou doze décadas atrás, quando naquelas mesas se sentavam os maiores escritores tchecos.

Terror e pâtisserie

Assim como Praga, Budapeste também está cheia de cafés históricos e charmosos. O mais antigo deles é a confeitaria Gerbeaud, fundada em 1858, e onde foi inventado o chocolate “língua de gato”. A Gerbeaud, com seus salões sempre lotados, fica na praça Vorosmarty, diante da saída do Metrô do Milênio, que passa sob a avenida Andrássy e é a linha de metrô mais antiga da Europa: foi inaugurada em 1896, quando Budapeste fez mil anos.

Na Gerbeaud, assim como em vários outros cafés e confeitarias da Hungria, come-se o famoso bolo Dobos, a mais tradicional pâtisserie húngara. O bolo foi criado em 1885 pelo chef József Dobos e os primeiros a prová-lo foram o então imperador Francisco José e sua mulher, a imperatriz Elizabeth, também conhecida como Sissi (aliás, grande frequentadora da Gerbeaud). A característica principal do bolo é um creme amanteigado – o pai do creme chantilly – que, segundo consta, foi “inventado” por Dobos quando um de seus assistentes se enganou e adicionou sal em vez de açúcar à manteiga da receita.

Outro lindo café da capital húngara é o Lukács, no número 70 da avenida Andrássy, mas este tem uma história bem menos açucarada. O Lukács fica a poucos metros do antigo prédio da polícia secreta húngara (Andrássy 60), onde hoje funciona o sensacional – e esmagador – Museu do Terror. Em 1949, depois que os comunistas tomaram o poder, o Lukács, que existia desde o fim do século XIX, refletindo o luxo da era dos Habsburgos e do Império Austro-Húngaro, foi confiscado à família à qual pertencia e passou a ser usado como uma espécie de clube exclusivo da polícia secreta. Durante anos, os agentes húngaros se aproveitaram dos salões de mármore e espelhos do Lukács, enquanto a poucos metros dali dezenas de prisioneiros definhavam nos porões da polícia secreta. É uma sensação estranha sair do Museu do Terror – que mostra as atrocidades tanto dos nazistas quanto dos comunistas – e parar no Lukács para um café. Chega a dar um arrepio.

Outro café húngaro que merece uma visita é o New York, no hotel do mesmo nome. (Erzébet korut, 9). Fundado em 1894, o New York é de uma suntuosidade impressionante, com afrescos no teto, sancas e detalhes de estuque dourado, colunas de mármore, sacadas de metal rendado, cadeiras de veludo vermelho e espelhos, muitos espelhos. Construído em estilo eclético, misturando o barroco e o renascentista italiano, foi um ponto de encontro de escritores e artistas na primeira década do século XX. Diz a lenda que, no dia de sua inauguração, o escritor Ferenc Molnár, junto com alguns amigos jornalistas, jogou as chaves do New York no rio Danúbio, para que ele ficasse aberto 24 horas por dia. Mas não adiantou: o café acabaria fechando as portas definitivamente durante a crise econômica dos anos 30. Chegou a ser reaberto em 1954 com o nome de Hungária, mas só seria reinaugurado como Café New York – em todo o seu antigo esplendor – em 2006.

Destruição e reconstrução

Agora, Viena. Quando se trata de cafés vienenses, é até difícil saber por onde começar. Escolho logo o mais tradicional e espetacular deles, o Café Central (Herrengasse, 14). Ele tem, como muitos cafés da Europa Central, uma história de ascensão, queda e renascimento, permeada por momentos históricos, guerras, crises, revoluções – e muita dor.

Inaugurado em 1876, é um dos mais belos cafés do mundo. É quase uma catedral gótica, com seu teto abobadado e o ambiente cheio de colunas. E sua saga valeu a publicação de um livro, “Das Café Central treasury” (Enciclopédia do Café Central), de Andréas Augustin, que conta desde a história de como o grão de café passou a ser conhecido em Viena, na invasão turca de 1683 (quando os turcos fugiram, deixando vários sacos da especiaria para trás), até os tempos de ouro da belle époque e do entreguerras, quando os cafés vienenses eram o palco onde fermentavam movimentos artísticos e revoluções. Na introdução do livro (que pode ser comprado no próprio Café Central), o autor avisa que ninguém deve se chatear se achar que está sendo ignorado pelo maître ao entrar em um café vienense.“É um resquício dos tempos em que, a cada três mesas de um café de Viena, havia pelo menos um ganhador do Prêmio Nobel”, diz Augustin. Não deve ser mentira: antes da Segunda Guerra, nada menos que onze prêmios Nobel tinham sido dados a austríacos (de 1938 para cá, foram apenas mais três).

Sim, Viena já foi o centro do mundo, e isso se percebe perfeitamente em um passeio por seus cafés. Havia, no fim do século XIX, cerca de 600 cafés na capital austríaca, e neles se reunia a nata da intelectualidade da época. O Café Central, por exemplo, foi frequentado por todos os principais artistas da Secessão, o movimento art nouveau austríaco, como Gustav Klimt, Egon Schiele, Kolo Moser, Oskar Kokoschka, Adolf Loos, Otto Wagner, muitos outros. Freud também não saía do Central, o mesmo se dando com Theodor Herzl, o fundador do Sionismo, que publicou seu livro “O Estado judeu” em 1896, em Viena. Também eram assíduos do café vários escritores austríacos, entre eles Karl Kraus e o boêmio Arthur Schnitzler, autor de “A ronda”.

Mas o Café Central foi palco também de muitas conspirações: no entreguerras, Trotsky, Lênin e Stalin – os três exilados na Áustria – iam muito lá. E um pintor obscuro foi visto, dizem, por entre as mesas do Central, tentando vender seus quadros (o que não conseguiu). Talvez por isso, partiu para outras empreitadas. Seu nome era Adolf Hitler.

O Café Central foi grande em tudo. É praxe entre os cafés europeus oferecer a seus clientes uma enorme variedade de jornais e revistas, que ficam dispostos sobre mesas ou em armações próprias de madeira. Mas talvez nenhuma casa tenha chegado a fazer o que fez o Central: em seu apogeu, eram tantos impressos oferecidos aos clientes (mais de 250 títulos) que o café mandou imprimir um catálogo listando-os.

Mas aí veio a Segunda Guerra. Em 1943 (“assim como a Áustria”, diz o livro), o Café Central acabou. A bela construção, que fora erguida em 1860 para ser a Bolsa de Valores e cuja parte de trás tem um pé-direito altíssimo, ficou abandonada durante décadas e foi até quadra de basquete. Só seria recuperada e reaberta como Café Central em 1982.

Mas o Central não é o único café tradicional de Viena. Eles são inúmeros. Quase todos têm uma história de morte e renascimento, com uma das raras exceções sendo o Café Landtmann (Dr. Karl Lueger Ring, 4), fundado em 1873 e jamais fechado, daí ser considerado o mais antigo da cidade. O Landtmann foi frequentado por muitos intelectuais e artistas, entre eles Freud e, mais recentemente, Marlene Dietrich, mas hoje seus salões estão bastante modificados em relação ao que foram na virada do século XIX para o século XX.

Outro ponto de encontro de artistas e escritores do final do século XIX era o Café Griensteidl (Michaelerplatz, 2), fundado em 1847. Mas este foi demolido e reconstruído anos depois, embora à semelhança do original. Em sua época de ouro, o Griensteidl era o café favorito da turma da “Jung Wien” (a Jovem Viena), formada por artistas e escritores.

Dois outros cafés vienenses têm histórias curiosas, o Museum e o Mozart. O Mozart (no térreo do Hotel Sacher, na Albertinaplatz, 2), por ter sido o lugar onde o escritor Graham Greene teve a inspiração para o roteiro do filme “O terceiro homem”, com direção de Carol Reed e Orson Welles no papel do desaparecido Harry Lime. O Café Mozart “aparece” no filme, mas na verdade as cenas foram filmadas em outro lugar porque o Mozart tinha sido quase totalmente destruído na guerra (“O terceiro homem” é de 1949). Já o Museum (Friedrichstrasse, 6), fundado em 1899, teve seu interior decorado pelo arquiteto Adolf Loos, um dos expoentes da Secessão. Por isso mesmo, foi muito frequentado por Gustava Klimt e toda a turma que revolucionou a arte austríaca no fim do século XIX. Só que em 1931 houve uma remodelação e o interior do café foi refeito por Josef Zotti. Em 2003, os donos resolveram restabelecer a decoração original de Loos, por considerá-la histórica. Mas os fregueses do Museum não gostaram, pois achavam a decoração de Zotti mais aconchegante. E foi tanta reclamação que – pasmem – o Museum fez nova reforma em 2010, restabelecendo a decoração de Zotti!

Esses ciclos de destruição e reconstrução dão um pouco a medida do que foi a vida na Europa Central no século XX, mas há ainda lugares que parecem não ter mudado nunca. Um desses lugares é o Café Hawelka (Dorotheergasse, 6). Entrar nele é um choque: há quem diga que, ao abrir a porta, sente-se entrar pelas narinas um cheiro de duzentos anos, misturando cigarro, bebida, casacos suados, fritura, tudo. Num primeiro olhar, o Hawelka é quase uma espelunca, mas em matéria de autenticidade não perde para ninguém. Está sempre fervilhando de gente e quem vai ao toalete tem de tomar cuidado para que sua cadeira vazia não seja levada para outra mesa. Outra coisa: quem pede a tradicional salsicha vienense, acompanhada de pão preto, pode se preparar para comer com a mão. A salsicha vem no prato, mas sem qualquer talher (e com apenas uma folhinha de guardanapo!). E se o freguês reclama, o garçom retruca, com um meio sorriso:

– Aqui, é assim que nós fazemos.

Os vienenses podem ter deixado de dar as cartas do mundo, mas continuam cheios de personalidade.

 

 

(Revista Florense)