Há lá em casa uma coleção de desenhos de cartunistas brasileiros, de várias épocas. Todos eles são desenhos originais, conseguidos nas próprias redações ou através de amizade. Pois outro dia reparei que, num desses trabalhos, o fundo branco do papel estava ficando todo sarapintado. Fungos, claro. Os malditos fungos. Deveria haver uma lei contra os fungos. E os cupins. Enfim, contra todos esses seres invisíveis que se dedicam a destruir cultura. Porque a cultura, sempre tão ameaçada, ainda tem de se desdobrar para não ser comida por cupins, larvas, micróbios e lesmas. Isto, para não falar na ferrugem.
Ao ver aquelas pintas no papel, imediatamente pensei em mandar aplicar algum tipo de remédio contra fungo, mas logo me lembrei que, não faz muito tempo, ao tentar fazer isso com uma fotografia antiga de meu pai, foi pior a emenda do que o soneto e o retrato quase desapareceu. Veio-me então à mente outra solução, que me pareceu mais segura e eficiente: mandar copiar o desenho, retirar as pintas no computador, reimprimir e recolocar na moldura, novinho em folha.
Já ia me afastando do quadro (tudo isso eu pensava parada no meio da sala, olhando para o desenho), satisfeita com a solução encontrada, quando uma vozinha me soprou, lá do fundo da cabeça:
– Mas, nesse caso, terá deixado de ser um original.
Era verdade. Seria uma cópia. E cópias de cartuns saídos na imprensa estão por toda parte. O sentido de nossa pequena coleção reside justamente no fato de termos conseguido os originais. Copiado, o quadro não teria mais valor. Por que será que a solução de copiar me parecera tão perfeita?
Depois de refletir um pouco, entendi. É que, no mundo moderno, o original vai perdendo importância. E isso se deve em grande parte à esplêndida capacidade que o ser humano desenvolveu de fazer cópias. Copiamos tudo. Reproduzimos tudo. E tão bem que fica cada vez mais difícil distinguir o original de seus filhotes.
Isso acontece em todas as áreas e também – como não poderia deixar de ser – na arte. A questão foi abordada por Walter Benjamin em seu ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, de 1936, traduzido no Brasil por José Lino Grünewald e incluído em seu livro A idéia do cinema (editora Civilização Brasileira, 1969). Nesse ensaio, Benjamin ressalta que a obra de arte sempre foi suscetível de reprodução: em todos os tempos, discípulos copiaram as obras de seus mestres, ainda que a título de exercício, e os próprios mestres as reproduziam muitas vezes de forma a tirar disso algum proveito material.
Sempre houve, também, na história da humanidade, os falsários dispostos a copiar obras de arte para ganhar dinheiro, claro. Mas no princípio, devido às limitações das técnicas de reprodução, tudo era feito de forma precária. Os gregos, por exemplo, só conheciam duas técnicas de reprodução – a fundição e a cunhagem. Por causa disso, apenas seus bronzes, terracotas e moedas puderam ser reproduzidos em série.
Com a gravura da madeira, continua Benjamin, conseguiu-se pela primeira vez reproduzir o desenho, muito antes que a imprensa fosse inventada. Mas desde a litografia – e mais ainda com o advento da fotografia – houve uma mudança radical. Copiar, e copiar bem, se tornou possível, mas, mais do que isso, a cópia em si se tornou uma forma original de arte, passando a ter valor próprio.
Benjamin explica: no caso da fotografia, “graças a métodos como a ampliação ou a desaceleração, pode-se atingir a realidades ignoradas pela visão natural”. Ou seja, ao tirar a foto, o fotógrafo estaria fazendo arte. Mas ao revelá-la, poderia produzir uma outra obra de arte, derivada da primeira.
Hoje sabemos que tudo isso era apenas o começo e que o computador faria uma revolução dentro da revolução, abrindo um universo inteiro de possibilidades não só de copiar, mas também de inserir ou suprimir imagens, modificando realidades quase sem deixar traço.
Mas acho que podemos ir além: talvez, nesses tempos modernos, não apenas os originais das obras, mas o próprio objeto esteja perdendo importância. Somos hoje mais proprietários de idéias, conceitos e imagens do que jamais fomos. Nunca houve na história humana tanto controle sobre isso. A questão do direito de imagem virou quase uma doença moderna. E ao mesmo tempo parecemos ser cada vez menos donos de coisas.
Na música, por exemplo: as gravadoras enlouquecem com a facilidade de se capturar canções no ciberespaço e gravá-las dentro do computador ou nos minúsculos Ipods. Parece impossível fazer parar a sangria, deter essa tendência. E a longa caminhada da música gravada – do gramofone ao CD – está a ponto de chegar ao fim, pelo menos da maneira como a conhecemos. Porque, em breve, os CDs irão desaparecer. Não haverá mais o objeto em nossa sala, à espera de ser manuseado, escolhido, tocado. A música estará sempre na ponta de nossos dedos. Será só apontar e ouvir (e espero que isso jamais aconteça com os livros!).
É uma nova e impalpável maneira de se possuir coisas. Será o fim do objeto?
E essa idéia me remete mais uma vez ao ensaio de Benjamin, no ponto em que ele cita uma frase do poeta Paul Valéry (1871-1945), incrivelmente profética: “Tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal”.
Ele estava certo. Muito provavelmente no futuro (próximo), a arte se materializará e se desmaterializará diante de nós a um simples toque dos dedos.
(Revista Florense)