Há poucas semanas falei aqui de pedras. Pedras destruídas, História desfeita. O assunto era a cidade de Palmira, na Síria, e suas ruínas milenares sendo dinamitadas pelos fanáticos do Estado Islâmico. Pois bem, viajei. Estive fora por uma semana ou pouco mais e, na volta, revendo os jornais que se acumularam, o que encontro? Nossas próprias pedras sofrendo.

Um lindo calçamento de pé-de-moleque – aquelas pedras irregulares, arredondadas, que formavam os caminhos coloniais – foi descoberto no Centro do Rio, durante as escavações para a implantação da linha de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos. Como leio os jornais em ordem cronológica, vi primeiro a notícia do achado e me entusiasmei com a beleza daquelas pedras de duzentos anos. Tinham acabado de aflorar à superfície, depois de tantos anos sufocadas pela cidade – porque as cidades sempre crescem em camadas, que se sobrepõem umas às outras.

Admirei sua superfície polida, a força da argamassa que as unia, e imaginei, como sempre faço, vidas e histórias de pessoas que tinham pisado ali. Fiquei também me perguntando se os operários escavariam um trecho maior, para seguir o rastro daquele caminho descoberto. Já pensava em um longo trecho, todo envidraçado, sobre o qual pudéssemos caminhar, ou que pudéssemos apreciar da janela do trenzinho. Porque as pedras, por sua permanência, sempre têm muitas coisas a contar.

Lembrei de uma ruazinha que existe em Munique, na Alemanha, chamada Viscardigasse. Há, na Odeonsplatz, importante praça da cidade, um monumento chamado Feldherrnhalle, uma construção de aparência soturna, que lembra um templo da Antiguidade, com suas colunas imensas formando três arcos. Durante o nazismo, o lugar era um monumento aos mortos do Putsch de Munique. Era ali que Hitler discursava e era ali, também, que aconteciam as cerimônias de formatura dos soldados das SS. Dia e noite, dois guardas ficavam de vigília no alto do monumento e todos que passassem pela Odeonsplatz eram obrigados a erguer o braço na saudação nazista. A única maneira de não fazer isso sem ser preso era evitar a frente do Feldherrnahalle e tomar a viela que fica atrás do monumento – a Viscardigasse. Assim, a ruela se transformou em um símbolo da liberdade. Hoje, o chão de pedras da Viscardigasse tem um trecho pavimentado em bronze, para marcar o significado do caminho alternativo. Nos dias mais claros, o caminho dourado brilha sob o sol.

As pedras são assim – guardam histórias e História. Sua aspereza e rigidez têm muito a ensinar. A educação pela pedra, escreveu João Cabral, e os poetas, mais do que ninguém, conhecem a essência das coisas.

Pois é. Mas aqui, com nossas pedras, aconteceu o que eu menos esperava. Ao continuar a leitura dos jornais atrasados, vi, em choque, que o caminho colonial tinha sido destruído. Uma escavadeira feriu de morte as pedras centenárias, arrancou-as todas, muito provavelmente para não atrapalhar as obras. E, como prêmio de consolação, fomos informados de que um pedaço delas será reconstruído e colocado em exposição, em algum lugar, um dia.

Ai, poeta, que tristeza. Pobres pedras. Duzentos anos resistindo, sufocadas, à espera de uma chance de vir à tona e mostrar sua beleza antiga – e o que acontece?

Nós somos assim: não respeitamos as pedras porque não temos amor ao passado.

 

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