Primeiro, eu o conheci através de um livro. Ia passeando por entre as estantes de uma livraria quando dei com dois exemplares colocados de pé, lado a lado, um mostrando a capa, o outro a contracapa. E foi justamente esta última que me fez parar. Porque ali estava, diante de mim, o rosto da boneca de biscuit da minha infância, virado de cabeça para baixo, olhando-me com seus olhos muito abertos – que pareciam mortos. Aqueles olhos de cristal, as pestanas pintadas na louça, a boca vermelha entreaberta deixando entrever os dentes pequeninos (que sempre me pareceram feitos da mesma substância dos botões). Tudo ali me fez voltar no tempo, enchendo meu coração de horror e fascínio. Só depois de alguns segundos, tirei o livro da estante e comecei a folheá-lo. E descobri um universo inteiro, feito de retalhos, de restos, reflexo distorcido da nossa própria vida, do cotidiano pequeno e insignificante pelo qual tanto lutamos – inutilmente.

Estou falando de Farnese de Andrade, esse grande artista da estranheza.

Pois ele agora me reapareceu, tornando a me assombrar. Sonhei com ele. Ou melhor, sonhei com seu mundo feito de pedaços, de fragmentos, de bonecas de olhos mortos. Um lugar lindo e assustador. Estranho que no sonho, como na vida, fosse Carnaval. Um Carnaval feito só de clóvis, de mascarados terríveis, os mesmos que sempre me horrorizaram.

Farnese de Andrade. A estranheza do nome se estende à pessoa, que afinal conheci em um documentário sobre ele, tempos depois de ter visto o livro. O filme me mostrou seu rosto e sua voz, a personalidade deslocada. No filme, Farnese confessa que gosta de gatos, mas não de gente e que jamais se imaginaria tendo filhos, o que me fez pensar imediatamente em Machado de Assis: Não transmiti a nenhuma criatura o legado da minha miséria.

Farnese está morto e, como Brás Cubas, não deixou descendentes. Mas deixou, sim, como legado suas obras ímpares, únicas, composições reunindo gamelas, armários, cadeiras, caixas, vidros, mas reunindo sobretudo restos, memórias, fragmentos de vidas. São obras que nos deixam marcas. E fazem sonhar.

Em meio a conchas, imagens de santos e pedaços de ossos, cada boneca de olhar perdido ou corpo calcinado, cada rosto que nos mira dos retratos desbotados parece nos gritar sempre a mesma e angustiada pergunta. A pergunta que um clóvis, virando-se com seus olhos vazados, me fez, do fundo do meu estranho sonho de Carnaval: por que estamos aqui?

 

 

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