Conheço cariocas da gema que jamais foram ao Pão de Açúcar e ao Corcovado. Não chego a tanto, mas trazia no meu currículo uma falha: nunca ter subido o morro da Conceição. Essa lacuna foi preenchida outro dia com a ajuda de dois amigos, Manoel Mattos Filho, da Livraria Elizart (simpaticíssimo sebo da avenida Marechal Floriano), e Belmiro Fernandes, professor e pesquisador que conhece a história de cada uma das pedras seculares da Conceição. Foi uma aula de Rio Antigo.
A chuvinha fina que caía na hora do passeio não nos intimidou. Nem mesmo quando, olhando as ladeiras íngremes, cujo calçamento de pedra brilhava de umidade, ouvimos Belmiro contar, rindo, que a Rua do Escorrega não tinha esse nome em vão e que antes se chamava Ladeira do Quebra-bunda. Mas ele garantiu: era só pisar com cuidado que ninguém ia escorregar. Segundo Belmiro, antigamente era muito pior, porque as lavadeiras botavam as roupas para quarar nas pedras do calçamento e isso as tornava um verdadeiro sabão. E assim, sem medo de quebrar o que quer que fosse, lá fomos nós, ladeira acima, na companhia dos nossos mestres.
O morro da Conceição fica no bairro da Saúde, na região portuária que vai ser revitalizada. Dos quatro morros ocupados durante a fundação da cidade, restam apenas dois, o da Conceição e o de São Bento, onde fica o Mosteiro (os outros dois, do Castelo e de Santo Antônio, foram arrasados). Daí a importância de conhecer esse local histórico. Passear por ele, um emaranhado de vielas e escadarias (inclusive aquela escavada na rocha, que vai dar lá embaixo, a Pedra do Sal), é uma viagem não só no tempo, mas também no espaço. Temos a sensação de recuar séculos, só que não no Rio, mas em uma cidadezinha portuguesa. Os nomes pitorescos das ruas contribuem para reforçar a sensação: Beco das Escadinhas da Conceição, Rua do Escorrega, Rua do Jogo da Bola (não se refere a futebol, mas a uma espécie de bocha que se jogava no Rio no século 17), Ladeira do João Homem, Travessa do Sereno. Sem falar na paisagem, cheia de casinhas com portais de pedra, fachadas de azulejos e beirais de louça (embora muitas estejam precisando de restauração urgente).
No morro da Conceição, todo mundo se conhece e o nível de violência é zero, até porque a região é ocupada pelo Exército (no alto do morro ficam a Fortaleza da Conceição, o Museu Cartográfico e o Observatório do Valongo). Tivemos a sorte de entrar no forte e no museu (em geral, é preciso agendar), além de visitar vários ateliês do bairro, porque naquele dia se realizava o Projeto Mauá, semelhante ao Santa Teresa de Portas Abertas. O Museu Cartográfico fica no antigo Palácio Episcopal, construção belíssima inaugurada em 1674, no lugar da ainda mais velha capelinha de Nossa Senhora da Conceição, que deu nome ao morro (erguida em 1590 por um casal de portugueses devotos). O forte, que é de 1743, também está cheio de recantos pitorescos: caminhos de pedra, casamatas com vista espetacular para a baía e a masmorra onde ficaram presos três inconfidentes, inclusive Tomás Antônio Gonzaga. Há ainda, dentro do forte, o que se acredita ser um resquício da muralha original que protegeu a cidade em sua fundação, em 1565, mas o local ainda não está aberto a visitação.
Tudo isso meus amigos me contaram. Enfim, um grande passeio e, como eu disse, uma aula de história. Que acabou num cafezinho passado na hora, na própria casa do Belmiro (ele mora no morro da Conceição desde criança). Que tal?
Matéria feita em 2010 para a revista Serafina, da Folha de S. Paulo. Hoje, dedico o texto ao querido Manel, que morreu no início do ano.