No mistério do papel em branco – da tela em branco – com o qual se depara pela primeira vez, a mulher reflete. Pensa no fluxo primeiro, o jorro, a sangria que lhe aflorou à pele, o veio de ouro e prata, a veia de sangue e dor, tudo o que brotou da terra e da carne e se transmutou em palavras. Um dia, um menininho holandês ia passando junto a um dique e encontrou um pequeno orifício. Achou que precisava fazer alguma coisa. Se colocasse ali o dedo, evitaria que o buraco se alargasse mais e o dique viesse abaixo. Ficou quieto, esperando, até que alguém passasse. Virou herói. Com ela, com a mulher, se dera o contrário: um dia, sem saber por quê, ela tirara o dedo e deixara correr a enxurrada, irrefreável. Palavras, palavras, letras, um amontoado de letras.
E agora aquele silêncio enorme.
A mulher passeia de um lado a outro da sala, como uma fera. Letras, letras. De repente seus olhos se prendem à lombada de um livro. Um livro entre os muitos livros de sua estante pessoal, aquela onde estão os títulos que lhe são mais caros, que fazem parte de sua vida e de sua história. A lombada que lhe chamou atenção contém uma palavra que agora há pouco lhe rondava a cabeça: “letra”.
“A letra escarlate”, de Nathaniel Hawthorne.
Por isso, só por isso, tira o livro da estante e começa a folheá-lo, até parar diante de um trecho sublinhado:
“O brilho mortiço do carvão em brasa é essencial para produzir um efeito que tentarei descrever. Ele lança por toda a sala uma leve tintura, de um vermelho pálido que se derrama por paredes e teto, cintilando também no reflexo da mobília polida. Essa luminosidade morna se funde à espiritualidade fria dos raios de luar, assim dando vida, coração e sensibilidades de uma ternura humana às formas que parecem surgir à nossa volta. Ela converte as imagens de gelo em homens e mulheres. Olhando através do espelho – perscrutando suas profundezas assombradas –, vislumbramos o brilho bruxuleante do carvão que se extingue e os raios de luar sobre o assoalho, com uma repetição de cintilação e sombra que está um grau além da realidade, quase tocando a imaginação. Se então, numa hora como essa, e tendo tal cena diante de si, um homem sentado sozinho não tiver sonhos estranhos, nem puder transmutá-los de forma a parecerem reais – então ele não deve jamais tentar escrever romances.”
Palavras, letras – encanto. E a mulher se sente de repente cheia de coragem, assaltada por uma vontade enorme de escrever.