Há muito tempo que aquela casa de telhado normando, cercada de vegetação e muros de pedra, me chamava atenção. Parecia uma casa particular, reminiscente dos tempos em que o entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas tinha mais casarões do que prédios, mas eu sabia muito bem que não, que ali na verdade funcionava um museu, um centro de cultura: a Fundação Eva Klabin. Só que, por um motivo ou por outro, ainda não tinha ido lá. Até que a hora chegou.

Foi em grande estilo. Era noite de lua cheia e haveria um sarau nos jardins. Sob um friozinho outonal (nunca é inverno no Rio) e um céu limpo de julho, percorri o caminho de pedras que beira o lago de carpas. Em volta, uma vegetação densa, exuberante, exótica, na qual se percebe de imediato as mãos de um mestre: o jardim da casa, embora não tenha sido originalmente concebido por ele, recebeu muitas plantas por sugestão de Burle Marx, que era grande amigo de Eva Klabin. É um jardim pequeno, mas tem um efeito surpreendente, que é o de nos transportar de imediato para um ambiente de silêncio e calma. Alguma coisa na disposição daquelas plantas faz o barulho do trânsito, ali do lado, desaparecer como por encanto.

Sob um toldo retrátil, mesinhas tinham sido espalhadas para receber os convidados, que assistiriam à apresentação do conjunto vocal Os Cariocas, cantando, com sua afinação impecável, os clássicos da bossa nova. Tudo perfeito. Mas da casa em si, que àquela hora da noite não estava aberta à visitação, pude apenas vislumbrar alguns ambientes através das vidraças. E decidi voltar durante o dia para conhecer o museu.

É uma surpresa. Dentro daquela casa comparativamente modesta, desconhecida de muitos cariocas, há um acervo extraordinário, cobrindo mais de três mil anos de história da arte. É bastante variado, incluindo arte oriental, ocidental, greco-romana, egípcia. Dentro desta última há peças impressionantes, como um rosto de esquife da Oitava Dinastia. Em madeira incrustada de marfim e ébano, o rosto de olhos negros e expressivos parece querer nos comunicar alguma coisa, pensamento que emana do fundo dos tempos: a peça tem três mil e quinhentos anos.

Um retrato feito por Tintoretto, a Madona atribuída inicialmente a Boticelli (mas que estudos posteriores mostraram pertencer a um de seus colaboradores, provavelmente Filippino Lippi), o cartão para tapeçaria de Giovanni Romanelli (de 1639) que cobre toda uma parede, quadros de Lasar Segall (inclusive um retrato de Eva Klabin quando criança) e de Camille Pissarro (único impressionista exposto) são alguns dos destaques do acervo. Há também belas esculturas, como as tânagras gregas, a Madona de marfim (França, século Quatorze) e a dramática Santa Teresa de Ávila em madeira (Áustria, século Dezoito). Em meio a um acervo tão clássico, o visitante se depara de repente com uma instalação de ampolas emanando luz, enquanto o ambiente é envolvido por vozes, que não se sabe bem de onde vêm. É o projeto Respiração, de Daniela Thomas e Lilian Zaremba, uma intervenção de arte contemporânea que certamente agradaria a Eva Klabin.

Eva Klabin (1903-1991) era mulher sem preconceitos, que gostava de tudo em matéria de arte. A personalidade dela é um dos destaques do lugar, pois todos os cômodos da casa estão como eram quando ela vivia lá. Na introdução do livro “A coleção Eva Klabin”, o curador Marcio Doctors faz uma observação interessante: diz que, apesar de estar à beira da Lagoa, lugar tão luminoso, dentro da casa parece ser sempre noite. Perfeito para uma mulher que sempre foi notívaga (seus jantares às 3h da manhã ficaram famosos) e era apaixonada por literatura policial. Verdadeira Lady Dark.

 

Matéria feita para a revista Serafina, da Folha de S. Paulo, em agosto de 2010.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *