A editora Objetiva acaba de lançar o livro “Heloisa Seixas — Crônicas para ler na escola“, reunindo textos escritos por mim nos últimos anos. São 64 textos, em sua maioria “contos mínimos” publicados na revista Domingo do Jornal do Brasil (entre 1999 e 2006) e também crônicas feitas para a revista Seleções. Uma pré-seleção foi feita por mim e pela Daniela Duarte e passada à organizadora, Regina Zilberman, que os agrupou por assunto, fazendo um trabalho muito bom. Muita gente está elogiando a minha foto na capa do livro, mas a explicação é uma só: ela foi feita por um fotógrafo competentíssimo, meu querido Bruno Veiga. A foto foi feita em novembro do ano passado.
Aqui, reproduzo uma das crônicas do livro. Chama-se “Ausência” e é um texto que fiz para a Domingo quando da morte brutal do jornalista Tim Lopes, assassinado por traficantes há dez anos. Foi publicada em junho de 2002, mês que era para ser só de festa, mês em que o Brasil acabaria ganhando a Copa do Mundo. Mas aconteceu aquela tragédia com Tim. Na década de 80, tínhamos trabalhado juntos no jornal O Globo.
Esse texto tem uma peculiaridade: com a exceção do último parágrafo, ele foi feito inteiro sem o uso de adjetivos.
Eis a crônica:
Ausência
Ela queria fazer uma história de festa, uma história de céus e flores, de verões sem fim, uma história de areias, onde houvesse sempre luz e brisa e cheiros. Queria uma história de amor, de recordações, uma história, quem sabe, de criança ou velho, que alegrasse a manhã. Ou queria talvez uma história de noites, de passos e arrepios, de inquietações, mas desde que fossem sobressaltos sem sangue, onde até nos fantasmas dormisse alguma beleza, um fascínio qualquer.
Mas ali, diante da tela, sentia um vazio, uma paralisia, cuja razão não podia alcançar. Era um impasse. Alguma coisa faltava, alguma coisa se fora. Não sabia o que era. E não tinha idéia de por onde enveredar para descobrir.
Cismou e cismou, sem sair do lugar. Afinal, baixou os olhos das telas para as mãos que repousavam no teclado. Sentiu a perplexidade daqueles dedos, cuja inércia a surpreendia. Levantou-se, foi até a janela. Olhou a paisagem, buscando a resposta. Fechou os olhos, sentiu o sol, mas não encontrava em lugar algum aquilo que – sabia, sabia sem vacilar – dela se perdera.
Voltou. Caminhou até a cozinha, sempre buscando, sempre sentindo falta, mas ainda acreditando. Olhou em torno, observou a casa. Não havia nada fora do lugar, nada que significasse uma pista, que lhe desse as respostas. E, com um gesto de ombros, acabou por desistir.
Mas de repente, quando já nem esperava, descobriu.
Descobriu o que faltava e por que suas mãos se tinham partido. Descobriu o que era aquela ausência, que enchera com sua presença a sala, a vida, tudo ao redor.
Ela estava escrevendo de uma forma como jamais fizera em sua vida: sem adjetivos. Eles tinham desaparecido.
Não estavam mais com ela, para onde teriam ido? Ela os perdera, isso era um fato. Ficou olhando as letras, palavras e frases, vendo nelas apenas uma pergunta. Por que a tinham deixado assim, como se cruzasse agora um leito de rio sem água, só feito de pedras? E de repente lhe vieram à mente as palavras do poeta João Cabral, sua secura, seu quase rancor, falando do sertão. “Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma”. A beleza de uma poesia que guarda em cada verso um deserto. Sem adjetivos – porque a alma do sertão, de tanto sofrer, há muito se enrijeceu.
E ela compreendeu afinal o que acontecera: os adjetivos se tinham endurecido. Pois que era hora, sim, de usá-los, mas não aqueles a que ela se acostumara. Nada de azul , marinho, sensual, suave. Nada de vaporoso, anelado, gentil, completo. Era hora de outros. E ela abriu a porta para que corressem, conspurcando o papel como se fora terra, plantando seu horror nos campos onde não mais crescia a relva: cruel, hediondo, pavoroso, assassino, traficante, sanguinário, revoltante, corrupto, intolerável, torpe. Era a ferida que latejava – por trás da festa.