Faz tempo que não vou ao Samba do Trabalhador, no Andaraí, liderado por meu querido Moacyr Luz. Tenho lido nos jornais que a roda está fazendo oito anos e comemorando com o lançamento de um DVD. Coisa boa. Estive lá no Renascença em uma das primeiríssimas edições (talvez a primeira, não tenho certeza), em 2005, e uma hora dessas vou aparecer de novo. Por conta da saudade dessa que é uma das rodas mais animadas e originais do Rio, remexi no meu baú de textos e descobri esse que reproduzo aqui embaixo. Ele foi escrito em 2009 para a revista “Serafina”, da Folha de S. Paulo, com o título de “Carioca trabalhador”. E continua valendo. Salve, Moa!

CARIOCA TRABALHADOR

“O Paulista não veio. Disseram que anda sumido, que está doente. Uma pena, pois sua aparição sempre foi um acontecimento: roupa branca engomada, chapéu de palhinha, sapato bicolor, o passo miúdo apoiado na bengala com castão de prata, à qual está sempre atada uma pequena garrafa de cachaça. Mas outras figuras tradicionais vão chegando. Dona Pipoca, Rubem Confete, Tia Jô, Zila do Saco. As duas últimas vêm a caráter, de torso, rendas e colares, porque é dia de Iemanjá e elas acabaram de desfilar no Afoxé Filhos de Ghandi (mais democrático do que o baiano, o bloco carioca aceita mulheres). Sentam-se sob a caramboleira, que, ao lado da lona azul e branca, dá sua sombra para poucos. Vai começar mais um Samba do Trabalhador.

Não é um programa para principiantes. Segunda-feira à tarde, no quentíssimo verão carioca, a quadra de cimento do Clube Renascença, no bairro do Andaraí, ferve. A impressão é de que faz 50 graus aqui. Mas ninguém se importa. Há uma alegria danada na cara das pessoas, inclusive dos músicos que estão em torno da mesa, na roda de samba liderada por Moacyr Luz.

É uma roda diferente de todas as outras, até pelo dia e hora em que acontece, em pleno dia de semana e às quatro da tarde. No início, em 2005, começava às duas, mas os organizadores fizeram uma concessão e empurraram o horário mais para frente. Não fez muita diferença. Todo mundo aqui aguenta bem o calor.

Esse nome que Moacyr Luz deu à roda, Samba do Trabalhador, parece ironia, mas é uma homenagem aos músicos, que trabalham a semana inteira e só têm a segunda para folgar e se divertir. E eles não são os únicos: alguém me conta que a quadra também recebe muitos atores, cabeleireiros, manicures – todo o pessoal que folga na segunda. Tudo muito natural, porque essa história de que carioca não trabalha já foi desmoralizada até pelo IBGE.

Logo, o vozeirão de Gabriel Cavalcante enche a quadra, enquanto se espalha no ar um delicioso cheiro de alho, dos quitutes que começam a ser preparados na cozinha: pastel, linguiça, frango a passarinho e os famosos caldinhos, de feijão, de ervilha, às vezes também de rabada e sururu. Lindos sambas de quadra ou partido alto vão sendo desfiados sob a lona, até que alguém puxa um pot-pourri de bossa nova, que soa bonito demais com aquela percussão pesada.

O Samba do Trabalhador é uma das melhores rodas de samba da cidade e que bom que aconteça (o ano inteiro) num lugar tão tradicional, o Renascença, reduto do movimento negro carioca. A negritude do clube está presente nas paredes, em coloridas pinturas naïves que retratam Zumbi, a Escrava Anastácia e Nossa Senhora Aparecida, além dos santos de fé, São Jorge e Cosme e Damião. Fico apreciando esses detalhes, sentada na varanda, ao lado do presidente do clube, Jorge Ferraz. Este, com sua elegância de príncipe, me conta que ano que vem o Renascença vai fazer 60 anos. Grande cozinheiro, Jorge é famoso pela feijoada que faz, com rabada dentro. Feijoada com rabada num calor de 50 graus?, pergunto. Ele ri do meu espanto e me explica que, com bom humor, nada faz mal. Olhando em volta e vendo aquele pessoal todo nas mesas, cantando e dando risada, eu me convenço. Alegria faz bem à saúde. E me vem uma vontade de ir lá fora e fincar na porta uma tabuleta, em reverência: Silêncio. Cariocas trabalhando.”

 

 

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