Assim que chegou ao Rio para o feriado, minha amiga paulistana me telefonou. Queria que eu a levasse ao Samba do Trabalhador. É o nome da roda de samba que Moacyr Luz inventou e que se apresenta, toda segunda-feira, no clube Renascença, no Andaraí (o nome, do Trabalhador, não é ironia, mas referência aos músicos, que folgam nas segundas-feiras). Como não se deve perder a chance de ir a uma roda de samba em dia de semana, aceitei na hora.

Chegamos cedo e a quadra ainda não estava cheia. Por isso, pudemos ficar na mesa grande, onde os músicos se sentam nos intervalos, e onde são servidas as mais fulminantes iguarias. Já vi passar por ali coisas como moela com jiló, pés de galinha, testículos de boi e outros delírios da baixa gastronomia carioca. Menos de dez minutos depois, apareceram dois homens carregando uma gigantesca estrutura de ferro, quase do tamanho de um carro alegórico. Era um braseiro do qual, enfiado em um espeto, pendia um leitão inteiro. Quando acenderam o fogo, a fumaça tomou conta do ambiente. E os homens fortes levaram o leitão para uma varanda que fica num nível mais alto em relação à quadra. Assim, a fumaça não ia incomodar.

Enquanto o leitão rodava em seu espeto lá em cima, as mesas em torno de nós recebiam pratos e mais pratos lotados de torresmo, frango a passarinho e aipim frito. Falando aos gritos no ouvido uma da outra, porque o samba já estava a toda altura, eu e minha amiga comentávamos sobre as pessoas à nossa volta. Muitas estavam acima do peso – o que não era de se estranhar, com aquela dieta –, mas ninguém parecia se importar. “Aqui, o colesterol não existe”, falei. “Ninguém se incomoda com a balança”.

Era verdade. As pessoas, principalmente as mulheres, pareciam satisfeitas com o próprio corpo. Era notável, isso transparecia. A maioria usava roupas justas, sensuais, shortinhos minúsculos, blusas de frente única ou tomara-que-caia. A satisfação estava em cada gesto, volteio e rebolado.

E o samba ia ficando cada vez mais quente.     A quadra era uma multidão compacta, mais de duas mil pessoas. De onde estávamos, já não enxergávamos o tronco da enorme caramboleira, única árvore no pátio cimentado. E mal conseguíamos divisar os músicos da roda, embora eles estivessem em cima de um tablado. Mas vimos quando Teresa Cristina subiu para dar uma “canja”. E, espiando na ponta dos pés, vimos também o francês Nicolas Krassik tocando “Brasileirinho” ao violino, acompanhado por toda a percussão. E o desafio dos pandeiros – três pandeiristas tocando juntos e criando os mais fantásticos desenhos com um instrumento tão simples. E vibramos quando um velho passista da Mangueira, vestido de verde e rosa, subiu no tablado e começou a sambar como se saído de antigos carnavais.

De repente, meus olhos se fixaram na varanda para onde o leitão tinha sido levado. E lá estava o que restara dele: só o espinhaço. Tinham devorado o bicho inteiro! Passou então por mim uma gordinha de short, equilibrando nas mãos um prato cheio de lascas de uma carne dourada. Do leitão, claro. A moça estava acompanhada do namorado, que não largava a mão de sua cintura.

“Conheço mulheres lindas, magras, que vivem reclamando por não ter namorado”, suspirou minha amiga. “E ainda pagam 300 reais por cada sessão de análise”. Eu ri. E tornei a olhar em volta: aquele lugar era um espaço de prazer, de deleite – e, acima de tudo, de liberdade. Quem vai ao Renascença sabe que não estou exagerando. Lá não existe crise, mensalão ou petrolão. Lá o Brasil deu certo. E toda segunda-feira, durante algumas horas, é proibido não ser feliz.

 

Artigo publicado por mim no jornal Folha de S. Paulo em 19/05/2015

 

 

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