Como o Rio tem sido muitas vezes inspiração, e também cenário, para a literatura, vou começar este artigo comparando a cidade a uma personagem literária: Pearl (Pérola), filha de Hester Prynne, a adúltera criada por Nathaniel Hawthorne em “A letra escarlate”. Fruto de um relacionamento ilícito, na cidadezinha americana de Salem, uma comunidade puritana ao extremo, Pearl é, desde menina, de uma beleza incomum. À medida que cresce, vai se tornando mais e mais linda. E pior: feliz. Como ela ousa ser bonita e feliz, sendo uma criança maldita? É o que todos na comunidade de Salem se perguntam. A atitude da menina é vista como um escárnio.
O Rio, cidade feminina, é como Pearl: reúne em si beleza e maldição. Talvez todos nós, cariocas ou não, tenhamos inveja do Rio, a mesma inveja que se tem de uma mulher bonita demais. Por isso não perdemos uma chance de falar mal da cidade: sua beleza é um acinte. O poeta Ezra Pound, ao se deparar com Veneza, exclamou: “O que teremos de pagar por tanta beleza?” É um sentimento parecido que nos invade diante da paisagem carioca. Tamanha beleza tem de ter um preço.
Essa exuberância toda faz com que o Rio esteja sempre na ponta do nariz do Brasil. Aparece primeiro. Tudo que acontece aqui repercute mais. Se ocorre no Rio um crime semelhante a outro que um dia aconteceu em uma cidadezinha do Paraná ou de Alagoas – ou mesmo, admitamos, em São Paulo – é o crime carioca, e nenhum outro, que ganhará as manchetes internacionais. Já pensaram se o assassinato do surfista Ricardinho tivesse sido no Arpoador?
Talvez seja esse o preço que a cidade paga por tanta beleza.
Ninguém pode negar que a paisagem é o ponto focal, o cerne de onde se espraia nosso comportamento em relação ao Rio, aí incluídos o amor e o ódio. Morando ou não, tendo ou não nascido aqui, ninguém consegue ficar imune à paisagem carioca. Não há quem, entre nós, não tenha vivido situações em que, de repente, se pega olhando de boca aberta para um pôr do sol, para uma cadeia de montanhas com todos os tons de azul e verde, para um mar rebrilhando com a luz da manhã.
Se toda a beleza que nos rodeia alimenta nosso despeito, é ela também que nos inspira, seja qual for nosso métier. É muito difícil para um artista – escritor, pintor, músico, qualquer um que viva aqui – não se deixar influenciar por um entorno tão poderoso, e tão peculiar. Você goste ou não, o Rio é uma cidade única. E de um jeito ou de outro acabará se imiscuindo em sua criação.
Para ficar restrita apenas ao universo da palavra escrita, que é o meu, o Rio inspirou, entre outras coisas, um gênero literário – a crônica. A crônica sempre foi uma força dentro da literatura brasileira. Como já disse Luis Fernando Verissimo (ele próprio um cronista), um caso como o do capixaba Rubem Braga, que tem uma reputação literária sólida sem jamais ter escrito outra coisa que não crônica, talvez seja único no mundo. E o cenário de Braga foi um só: o Rio.
O Rio tem sido inspiração e cenário para Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Ribeiro Couto, Luiz Edmundo, Olavo Bilac, Antonio Maria, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Sergio Porto, Elsie Lessa, Clarice Lispector, Carlos Heitor Cony, Aldir Blanc – a lista é imensa e não cabe em um só parágrafo.
O PASSADO É SEMPRE MELHOR
O Rio também está presente em tudo o que eu faço, e não por acaso acabo de estrear, em parceria com minha filha, Julia Romeu (outra carioca da gema), uma comédia musical passada na Belle Époque carioca, “Bilac vê estrelas”. Baseada em livro homônimo de Ruy Castro – outro carioca de carteirinha, embora nascido longe –, “Bilac vê estrelas” retrata as aventuras do poeta Olavo Bilac no Rio de 1903, a cidade do Prefeito Pereira Passos, do bota-abaixo, do momento em que as construções coloniais e os morros insalubres eram arrasados para fazer nascer uma Paris à beira-mar. Muita gente era a favor, mas muita gente também era contra. Alguma semelhança com o Rio de agora? Toda.
Mais de cem anos depois, cá estamos, em meio a essa grande trincheira em que se transformaram as ruas do Rio – com obras do metrô, dos BRTs, dos VLTs, das instalações olímpicas, dos novos museus, da reformulação do Porto – reclamando e resmungando. O carioca nunca está satisfeito.
“Ah, como o Rio devia ser maravilhoso na Belle Époque”, dizem uns. E outros: “Ou então nos anos dourados, nos anos 50 e 60”. Mas se dermos uma folheada em revistas, jornais e documentos dessas épocas, já encontraremos muita gente com saudades de outros tempos. O passado é sempre melhor. E isso por dois motivos: porque o filtro do tempo doura a pílula; e também porque, em geral, quem está reclamando fala de um tempo em que ele próprio era jovem.
O QUINTAL É TUDO
Outra razão para a relação de amor e ódio do carioca para com o Rio é a sensação de propriedade. Minha filha tem uma amiga, Amanda Giordano, cuja mãe mora em Brasília há anos. Outro dia, Amanda contava como vinha tentando convencer a mãe a voltar a morar no Rio, agora que está aposentada. A mãe resistia: “Vou ficar com saudade do meu quintal” (lá, ela mora em casa, não em apartamento). Amanda reagiu:
“Que bobagem, mãe! Para que você quer um quintal aqui? No Rio, a cidade inteira é o quintal.”
É exatamente isso. Nós, cariocas, encaramos a cidade como uma extensão de nossa própria casa. Essa é também uma das razões que nos dão o direito de falar mal dela. Esse espaço comum, com suas belezas e mazelas – ele nos pertence. Por isso, fazemos as maiores festas ao ar livre; por isso, todos os bares e restaurantes querem ter mesas no meio da rua; por isso, nos subúrbios, muita gente insiste em botar cadeiras na calçada para apreciar a tarde, mesmo que as balas zunam sobre suas cabeças.
Houve um momento, na década de 90 e no início dos anos 2000, em que a insegurança parecia ter ido longe demais. Alguns falavam em ir embora da cidade e a violência estava no centro de tudo, tomando o lugar da paisagem. De alguns anos para cá, porém, temos vivido uma situação diferente, com a realização de grandes eventos, a diminuição da sensação de violência e a reocupação dos morros pelo cidadão. Isso é importantíssimo. Muitos de nós jamais tínhamos entrado em uma favela, ou comunidade. Hoje, as pessoas sobem o morro para ir a bares, restaurantes, festas e até para assistir à queima de fogos no Ano Novo. Isso, somado à expansão do transporte público e à criação de espaços de criação nos subúrbios cariocas – como as arenas culturais ou o Parque de Madureira –, nos dá uma sensação nova: a de que estamos reintegrando e reocupando nosso velho quintal.
Matéria minha que saiu no Caderno Rio 450 do jornal Valor Econômico, de 13 de fevereiro de 2015
Link para o vídeo sobre o assunto, publicado no site do Valor:
http://www.valor.com.br/video/4076535342001/especial-rio-450-anos-os-cariocas