Todo carioca que se preze sempre alimentou o sonho de um dia assistir à demolição do elevado da Praça Quinze. É impossível não olharmos com uma pontinha de rancor para aquele monstro de cimento (por mais que atenda às necessidades dos motoristas), de colunas brutas, escurecidas, rasgando um sítio histórico tão bonito. Se seu único pecado tivesse sido acabar com o mercado que existia naquela região – e do qual resta hoje apenas uma torre, onde funciona o restaurante Albamar –, já seria pecado suficiente. Mas ele fez mais do que isso: ensombreceu o cenário da chegada da Corte Portuguesa, apequenando construções como o Paço Imperial, a antiga Sé, o Convento do Carmo, o Arco do Telles e o Chafariz do Mestre Valentim.

Não importa. A força daquela região histórica é tal que podemos muito bem passear pelo antigo Terreiro do Paço sem olhar para o elevado – e fingir que ele não existe. Ali, à medida que caminhamos pelas calçadas de pedra, o presente parece dissolver-se. Apesar da correria e do barulho, do vai-e-vem de ônibus, carros e gente, dos prédios altos, com seus vidros escuros – como o da Universidade Cândido Mendes, que se debruça sobre o convento onde vagou um dia Dona Maria, a Louca – a História sai sempre ganhando.

O exemplo mais forte é o próprio Paço Imperial, o palácio no qual o Príncipe Regente Dom João (que no futuro, já coroado, se tornaria Dom João VI) foi morar ao chegar à cidade em 1808 e onde recebia o povo para a cerimônia do beija-mão. Com a reforma feita no início dos anos 1980, o Paço tornou a ficar muito parecido com o que era ao ser construído, ainda no século dezoito. E das escavações surgiram fornos e paredes de óleo de baleia que hoje ficam à mostra, para quem quiser viajar ao passado.

Também foi numa reforma – para construção de um mergulhão, por onde passam os ônibus – que foi descoberto, junto ao Chafariz do Mestre Valentim, o antigo cais, com suas rampas e escadarias de pedra, que tinham ficado debaixo da terra durante muitas décadas. Quem se debruça sobre a amurada e espia o velho cais lá embaixo (é curioso ver como as cidades vão sendo construídas em camadas, sobrepondo-se umas às outras ao longo dos séculos) quase pode ver Dona Carlota Joaquina, com seu buço e sua cara contrariada, saltando do barco e pisando em terras brasileiras pela primeira vez, com a cabeça infestada de piolhos.

No outro extremo da praça ficam as duas velhas igrejas de nome parecido, a Igreja da Ordem Terceira do Monte do Carmo e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, a mais importante. Restaurada para os festejos dos 200 anos da chegada da Corte, a velha Sé foi palco da coroação de Dom João VI e dos imperadores Pedro I e Pedro II. Também ali as escavações durante a reforma trouxeram à luz pedaços de louças e outros objetos que hoje estão expostos e que contam um pouco do que era a vida no Rio colonial.

Fechando o quadrilátero, há o Arco do Telles, intacto apesar do incêndio de 1790, que destruiu quase todo o quarteirão. Parar para observar sua arcada de pedra nos faz voltar ao tempo em que a Travessa do Comércio se chamava Beco do Telles e a rua Primeiro de Março, ali do lado, era a Rua Direita. As ruas tinham nomes engraçados, como rua da Cadeia (hoje Assembleia), do Cano (Sete de Setembro), do Fogo (Andradas), do Hospício (Buenos Aires), do Piolho (Carioca). No passado, era assim. Esse tempo para o qual nos transportamos ao caminhar pela Praça Quinze. Aliás, pelo Terreiro do Paço.

 

Matéria feita para a revista Serafina, da Folha de S. Paulo, em março de 2010, quando a derrubada do Elevado da Perimetral ainda era um sonho distante. A foto é de fevereiro de 2014. Nós vencemos.

 

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